sexta-feira, 12 de abril de 2019

O aríete

Antes de deixar, por ora, a cabeça do Cachalote, gostaria que você, na condição de fisiologista prudente, apenas – particularmente – reparasse no aspecto da fronte, em toda sua coesão e calma. Gostaria que a examinasse agora com o único objetivo de fazer uma avaliação inteligente e nada exagerada da força de aríete que possa estar contida ali. É uma questão crucial; pois ou você aceita esse evento como inquestionável, ou permanece descrente para todo o sempre de um dos fatos mais estarrecedores, porém verdadeiros, que receberam registro nos autos da história.
Observe que, em sua posição comum de nado, a testa do Cachalote fica num plano quase totalmente vertical em relação à água; observe que a parte inferior de sua testa se inclina bem para trás, como se fosse um abrigo para o encaixe comprido que recebe a verga de sua mandíbula inferior; observe que a boca dele está por completo embaixo da cabeça, mais ou menos como se sua própria boca estivesse inteiramente sob seu queixo. Ademais, observe que a baleia não tem um nariz externo; e que o nariz que tem – o orifício do jato – fica no topo de sua cabeça; observe que seus olhos e orelhas ficam do lado da cabeça, a aproximadamente um terço do comprimento de seu corpo a partir da cabeça. Com isso, você deve ter percebido que a testa da cabeça do Cachalote é uma parede insensível e desprovida de aberturas, sem um único órgão ou protuberância frágil de qualquer espécie. Além disso, lembre-se de que apenas na parte inferior extrema da testa, inclinada para trás, existe algum vestígio de osso; e de que, antes de chegar a uns vinte pés da testa, você não encontrará um pleno desenvolvimento do crânio. Portanto, essa massa imensa e desossada é somente uma almofada. Como será revelado, enfim, seu conteúdo constitui-se, em parte, do óleo mais refinado; entretanto, agora você será informado da natureza da substância que reveste de modo tão inexpugnável toda essa aparente efeminação. Nalgum lugar acima, descrevi como a gordura envolve o corpo da baleia, à maneira da casca que envolve a laranja. Assim se dá com a cabeça; mas com esta particularidade: perto da cabeça, tal invólucro, embora não tão espesso, se faz de uma dureza desossada, inimaginável para alguém que jamais tenha tocado nele. O arpão mais afiado, a lança mais incisiva atirada pelo mais forte dos braços humanos, nela ricocheteiam impotentes. É como se a testa do Cachalote fosse pavimentada com cascos de cavalos. Não creio que qualquer sensibilidade exista ali.
Considere ainda uma outra coisa. Quando dois avantajados e carregados navios mercantes da rota da Índia se empurram e se espremem nas docas, o que é que os marinheiros fazem? Não colocam entre eles, no ponto de contato, nenhuma substância rija como ferro ou madeira. Não, eles suspendem ali um enchimento grande e redondo de estopa e cortiça, enrolado no mais espesso e duro couro de boi. Este, valente e livre de dano, recebe a compressão que teria arrebentado escoras de carvalho e alavancas de ferro. Isso basta para demonstrar o fato óbvio a que me refiro. Mas, somando-se a esse fato, ocorreu-me a hipótese de que, como o peixe comum tem uma bexiga natatória, capaz de aumentar ou diminuir à vontade; e como o Cachalote, tanto quanto sei, não dispõe de tal recurso; considerando a maneira de outro modo inexplicável com que ora afunda inteiramente sua cabeça abaixo da superfície, ora nada com a cabeça bem elevada para fora da água; considerando a elasticidade jamais obstruída de seu invólucro; considerando a especialíssima parte interna de sua cabeça; ocorreu-me a hipótese, repito, de que seus misteriosos e alveolares favos pulmonares possam ter uma, até o presente momento, desconhecida e insuspeitada relação com o ar exterior, de modo a serem suscetíveis à expansão e contração atmosférica. Se assim for, imagine quão irresistível é tal poder, que conta com a contribuição do mais inalcançável e destrutivo de todos os elementos.
Agora, atenção. Impelindo de modo implacável essa parede insensível, inexpugnável, invencível, e essa coisa que flutua dentro dela; ali nada, por trás de tudo isso, uma gigantesca massa de vida, que só pode ser adequadamente calculada como lenha empilhada – em cordéis; e que obedece a uma única vontade, como o menor inseto. De modo que, quando, mais adiante, eu explicar em detalhes todas as peculiaridades e concentrações de energia escondidas pelo corpo desse monstro expansível; quando eu mostrar algumas de suas mais ordinárias proezas craniais; creio que você renunciará a toda a incredulidade ignorante e estará pronto para aceitar isto: que ainda que o Cachalote arrebentasse uma passagem através do Istmo de Darien, misturando o Atlântico ao Pacífico, você não perderia um fio de cabelo. Pois, se não reconhecer uma baleia, você será apenas um provinciano e sentimentalista diante da Verdade. Mas a Verdade cristalina é uma coisa com a qual só as salamandras gigantes se deparam; como são pequenas, então, as chances de um provinciano! O que aconteceu com o jovem infirme que levantou o véu da temível deusa em Sais?
Herman Melville, in Moby Dick

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