quarta-feira, 24 de abril de 2019

Honra e glória da pesca baleeira

Há certas empreitadas em que uma desordem cuidadosa é o método mais eficaz. Quanto mais mergulho neste assunto da pesca baleeira e faço avançar minha pesquisa até as suas mais remotas fontes, muito mais me impressiona a sua grande respeitabilidade e antiguidade; especialmente quando encontro tantos semideuses, heróis e profetas de todos os tipos, que, de um jeito ou de outro, lhe conferiram distinção, sou arrebatado pela ideia de que eu mesmo pertenço, embora como subalterno, a uma muito ilustre confraria.
O audaz Perseu, um dos filhos de Júpiter, foi o primeiro baleeiro; e, pela honra eterna da nossa profissão, seja dito que a primeira baleia atacada pela nossa irmandade não foi morta por nenhum motivo sórdido. Aqueles eram tempos cavalheirescos da nossa profissão, quando nos armávamos apenas para socorrer os necessitados, e não para abastecer as lamparinas dos homens. Todos conhecem a bela história de Perseu e Andrômeda; como a adorável Andrômeda, a filha de um rei, estava presa a um rochedo à beira-mar, e quando o Leviatã estava a ponto de levá-la embora Perseu, o príncipe dos baleeiros, avançou intrépido, arremessou o seu arpão contra o monstro, e salvou e se casou com a donzela. Foi uma proeza artística admirável, raras vezes realizada pelos melhores arpoadores dos dias de hoje; uma vez que o Leviatã foi morto ao primeiro arremesso. E que ninguém duvide deste conto arqueu, pois na antiga Jope, hoje Jafa, na costa da Síria, em um dos templos pagãos, por muitos séculos, viu-se o esqueleto imenso de uma baleia, que as lendas da cidade e todos os seus habitantes afirmavam ser os ossos do monstro que Perseu tinha matado. Quando os romanos tomaram Jope, o mesmo esqueleto foi levado para a Itália em triunfo. O que parece mais extraordinário, sugestivo e importante nesta história é o seguinte: foi a partir de Jope que Jonas se fez ao mar.
Semelhante à aventura de Perseu e Andrômeda – de fato, certas pessoas acreditam que indiretamente dela se origine – é a famosa história de São Jorge e o dragão; cujo dragão eu sustento que era uma baleia; pois em muitas crônicas antigas as baleias e os dragões se confundem de modo estranho, e amiúde se tomam uns pelos outros: “És como um leão das águas, e como o dragão do mar”, diz Ezequiel, querendo claramente dizer uma baleia; na verdade, algumas versões da Bíblia usam essa palavra. Além disso, seria uma diminuição da glória da sua proeza se São Jorge tivesse encontrado apenas um réptil terrestre rastejante, em vez de ter lutado contra um monstro das profundezas. Qualquer homem poderia ter matado uma serpente, mas somente um Perseu, um São Jorge, um Coffin teriam a valentia de enfrentar bravamente uma baleia.
Não deixemos que essas pinturas modernas nos enganem; pois ainda que a criatura encontrada pelo valoroso baleeiro de outrora esteja representada vagamente com a forma de um grifo, ainda que a batalha esteja pintada na terra e o santo a cavalo, se considerarmos a ignorância enorme daqueles tempos, quando a verdadeira forma da baleia não era conhecida pelos artistas; e se considerarmos que, como no caso de Perseu, a baleia de São Jorge deve ter saído do mar para a praia; e se considerarmos que o animal que São Jorge cavalgava poderia ser apenas uma foca enorme, ou um cavalo marinho; levando-se tudo isso em conta, não parecerá incompatível com a lenda sagrada, nem com os desenhos mais antigos da cena, interpretar que o assim chamado dragão não é outro senão o grande Leviatã. De fato, se colocada diante da verdade mais estrita e transparente, essa história se parece com a do ídolo dos filisteus, um peixe, bicho e ave, chamado Dagon, que ao ser colocado diante da arca de Israel, lhe caíram a cabeça de cavalo e as duas palmas das mãos, restando apenas o coto ou sua parte de peixe. Tal e qual, pois, um dos nossos nobres, mesmo sendo baleeiro, é o guardião tutelar da Inglaterra, e por legítimo direito, nós, arpoadores de Nantucket, deveríamos ser alistados na mui nobre Ordem de São Jorge. Por isso, os cavaleiros daquela venerável companhia (nenhum dos quais, ouso dizer, jamais teve de enfrentar uma baleia, como o seu grande patrono) nunca deveriam olhar com desdém para um nativo de Nantucket, visto que, mesmo nas nossas roupas de lã e nas calças de marinheiro, temos mais direito à insígnia de São Jorge do que eles.
Quanto a admitir Hércules entre nós ou não, isso por muito tempo me deixou na dúvida: pois, embora de acordo com a mitologia grega, esse antigo Crockett e Kit Carson, esse executor robusto de grandes feitos tenha sido engolido e expelido por uma baleia, é discutível se isso o torna um baleeiro. Em nenhum lugar está escrito que ele lançou um arpão contra o peixe, a não ser, de fato, que o haja feito de dentro. Não obstante, pode ser considerado um tipo de baleeiro involuntário; de qualquer modo, se ele não pegou, foi pego por uma baleia. Reivindico-o pois para o nosso clã.
Mas, segundo as melhores autoridades contraditórias, essa história grega de Hércules e a baleia é considerada uma derivação da história hebraica ainda mais antiga de Jonas e a baleia; e vice-versa; certamente são muito parecidas. Se reivindico o semideus, por que não o profeta?
Não são apenas os heróis, santos, semideuses e profetas os incluídos no rol da nossa ordem. Nosso grão-mestre ainda não foi nomeado; pois, como os monarcas de outrora, as origens da nossa irmandade remontam simplesmente aos próprios grandes deuses. A história oriental maravilhosa do Sutra deve ser contada, a que nos apresenta o terrível Vixnu, uma das três personalidades da divindade dos hindus; que nos apresenta esse divino Vixnu como o nosso Senhor - Vixnu, que na primeira das suas dez encarnações terrenas distinguiu e santificou a baleia para todo o sempre. Quando Brama, ou o deus dos deuses, segundo o Sutra, depois de uma das dissoluções periódicas, resolveu recriar o mundo, deu à luz Vixnu, para que presidisse a sua obra; mas os Vedas, ou livros místicos, cuja leitura atenta parecia indispensável a Vixnu antes de iniciar a criação, e que, portanto, deviam conter algo na forma de sugestão prática para jovens arquitetos, esses Vedas estavam no fundo do mar; então Vixnu encarnou numa baleia e mergulhou nas profundezas das águas para resgatar os volumes sagrados. Pois, então, não era esse Vixnu um baleeiro? Alguém que monta um cavalo não é chamado de cavaleiro?
Perseu, São Jorge, Hércules, Jonas e Vixnu! Eis um belo elenco! Que círculo, senão o dos baleeiros, poderia ter um começo desses?
Herman Melville, in Moby Dick

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