sábado, 27 de abril de 2019

Desolados

Uma senhora carregando um pequinês, outra, mais velha, carregando a si mesma com a mesma pose. Sentaram à mesa ao lado da nossa. Não, não, o pequinês não quis fazer amor com o meu calcanhar, esta é outra história. Aristocracia francesa ao ponto da caricatura, possivelmente mãe e filha. Deixaram o peixe pedido no prato e a mais velha disse ao garçom que o ponto de cozimento estava errado. La cuisson, um daqueles parâmetros sagrados pelos quais os franceses estabelecem a justeza de tudo, não era a que ela tinha determinado. E o garçom cometeu um erro. O garçom não disse desolê.
O ponto da cuisson não serve apenas para a carne, que pode vir sangrando, rosada, ao ponto ou (há gosto para tudo) bem passada, mas também para o peixe, e neste caso sua definição requer mais tempo e um vocabulário ainda mais minucioso. E o maître obviamente não transmitira as instruções corretas ao chef, ou transmitira e o chef não ligara. Mas quando veio a madame, mulher do chef e dono do restaurante, saber o que tinha havido, nossa vizinha disse que perdoava tudo. Perdoava o peixe errado, pois afinal o chef era obrigado a pensar no gosto dos turistas (nós) e perdoava, estava subentendido, a invasão da França pelos bárbaros e o declínio generalizado de critérios num mundo em crise. Só não perdoava o garçom não ter dito, nem uma vez, desolê.
Os franceses se declaram desolê por qualquer coisa. Você os deixa desolados, desconsolados, arrasados com o menor pedido que não podem atender, ou com a menor demonstração de decepção ou desconforto. É uma declaração tão forte de contrição e empatia que, mesmo automática e distraída, deixa você sem ação. O que mais você pode pedir de quem está pensando no suicídio por sua causa? Desolê absolve tudo. Desolê encerra tudo. E o garçom negou mesmo um desolê protocolar pelo mau cozimento do peixe.
As duas recolheram as suas coisas e saíram do restaurante com mercis que eram agulhadas. O mais indignado era o pequinês.
Luís Fernando Veríssimo, in A mesa voadora

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