terça-feira, 2 de abril de 2019

Conhecimento é poder

A maioria das pessoas tem dificuldade para digerir a ciência moderna porque sua linguagem matemática é de difícil entendimento ao nosso intelecto e suas descobertas muitas vezes contrariam nosso senso comum. Dos 7 bilhões de pessoas no mundo, quantas entendem realmente mecânica quântica, biologia celular ou macroeconomia? A ciência, entretanto, desfruta de enorme prestígio por causa dos novos poderes que nos concede. Presidentes e generais podem não entender física nuclear, mas entendem o que as bombas nucleares são capazes de fazer.
Em 1620, Francis Bacon publicou um manifesto científico intitulado Novum Organum [Novo instrumento], no qual afirmou que “conhecimento é poder”. A real prova de fogo do “conhecimento” não é se é verdadeiro, mas se nos dá poder. Os cientistas geralmente presumem que nenhuma teoria é 100% correta. Em consequência, a verdade não é um bom parâmetro de teste para o conhecimento. O parâmetro real é sua utilidade. Uma teoria que nos permite fazer novas coisas constitui conhecimento.

Com o passar dos séculos, a ciência nos ofereceu muitas ferramentas novas. Algumas são ferramentas mentais, como aquelas usadas para prever taxas de mortalidade e crescimento econômico. Ainda mais importantes são as ferramentas tecnológicas. A conexão forjada entre ciência e tecnologia é tão forte que hoje as pessoas tendem a confundir as duas. Tendemos a pensar que é impossível desenvolver novas tecnologias sem pesquisas científicas e que as pesquisas têm pouco sentido se não resultarem em novas tecnologias.
Na verdade, a relação entre ciência e tecnologia é um fenômeno muito recente. Antes de 1500, ciência e tecnologia eram campos totalmente separados. Quando Bacon associou os dois no início do século XVII, foi uma ideia revolucionária. Durante os séculos XVII e XVIII, suas relações se estreitaram, mas o nó só foi atado no século XIX. Mesmo em 1800, a maioria dos governantes que quisessem um exército forte e a maioria dos magnatas que quisessem um negócio próspero não se dava ao trabalho de financiar pesquisas em física, biologia ou economia.
Não pretendo afirmar que não exista exceção a essa regra. Um bom historiador pode encontrar precedentes para tudo. Mas um historiador ainda melhor sabe quando esses precedentes não passam de curiosidades que obscurecem o grande cenário. De modo geral, a maioria dos governantes e empresários pré-modernos não financiava pesquisas sobre a natureza do universo a fim de desenvolver novas tecnologias, e a maioria dos pensadores não tentava traduzir suas descobertas em dispositivos tecnológicos. Os governantes financiavam instituições educacionais cuja função era disseminar o conhecimento tradicional com o propósito de sustentar a ordem existente.
Aqui e ali, as pessoas desenvolviam novas tecnologias, mas estas geralmente eram criadas por artesãos não instruídos usando tentativa e erro, e não por estudiosos realizando uma pesquisa científica sistemática. Os fabricantes de carroças construíam as mesmas carroças, feitas dos mesmos materiais, ano após ano. Eles não reservavam um percentual de seus lucros anuais para pesquisar e desenvolver novos modelos de carroças. Ocasionalmente, o desenho da carroça era aprimorado, mas quase sempre graças à engenhosidade de algum carpinteiro local que nunca havia posto os pés em uma universidade e nem sequer sabia ler.
Era assim no setor público e também no setor privado. Enquanto os Estados modernos convocam seus cientistas para apresentar soluções em quase todas as áreas da política nacional, de energia e saúde a descarte de resíduos, os reinos antigos raramente faziam isso. O contraste entre passado e presente é mais pronunciado na fabricação de armas. Quando, em 1961, o presidente Dwight Eisenhower, prestes a deixar o cargo, alertou sobre o poder crescente do complexo militar-industrial, ele deixou de fora uma parte da equação. Deveria ter alertado seu país sobre o complexo militar-industrial-científico, porque as guerras de hoje são produções científicas. As forças militares do mundo iniciam, financiam e dirigem uma grande parte das pesquisas científicas e do desenvolvimento tecnológico da humanidade.
Quando a Primeira Guerra Mundial se transformou em uma guerra de trincheiras interminável, ambos os lados convocaram cientistas para sair do impasse e salvar a nação. Os homens de branco atenderam o chamado, e dos laboratórios saiu um fluxo constante de novas superarmas: aeronaves de combate, gás venenoso, tanques, submarinos, metralhadoras, peças de artilharia, rifles e bombas cada vez mais eficazes.
A ciência exerceu um papel ainda maior na Segunda Guerra Mundial. No fim de 1944, a Alemanha estava perdendo a guerra, e a derrota era iminente. Um ano antes, os italianos, aliados da Alemanha, haviam derrubado Mussolini e se rendido aos Aliados. Mas a Alemanha continuou lutando, embora os exércitos britânico, norte-americano e soviético estivessem se aproximando. Uma razão pela qual os soldados e civis alemães acharam que nem tudo estava perdido é que eles acreditaram que os cientistas alemães estavam prestes a virar o jogo com as chamadas armas milagrosas, como o foguete V2 e o avião a jato.
Enquanto os alemães estavam trabalhando em foguetes e jatos, nos Estados Unidos o Projeto Manhattan conseguiu desenvolver bombas atômicas. Quando a bomba ficou pronta, no início de agosto de 1945, a Alemanha já havia se rendido, mas o Japão continuava lutando. As forças norte-americanas estavam prontas para invadir suas ilhas. Os japoneses juraram resistir à invasão e lutar até a morte, e havia todas as razões para acreditar que essa não era uma ameaça vazia. Os generais norte-americanos disseram ao presidente Harry S. Truman que uma invasão do Japão custaria a vida de 1 milhão de soldados norte-americanos e estenderia a guerra pelo menos até 1946. Truman decidiu usar a nova bomba. Duas semanas e duas bombas atômicas depois, o Japão se rendeu incondicionalmente, e a guerra chegou ao fim.
Mas a ciência não se resume a armas ofensivas: também exerce um importante papel em nossas defesas. Hoje, muitos norte-americanos acreditam que a solução para o terrorismo é tecnológica, e não política. Bastaria destinar outros milhões à indústria da nanotecnologia, pensam, e os Estados Unidos poderiam enviar moscas-espiãs biônicas a cada caverna afegã, fortificação iemenita e acampamento norte-africano. Com isso, os herdeiros de Osama bin Laden não seriam capazes de preparar uma xícara de café sem que uma mosca-espiã da CIA transmitisse essa informação vital para a sede central em Langley. Bastaria destinar outros milhões à neurociência, e cada aeroporto poderia ser equipado com scanners de ressonância magnética cerebral ultrassofisticados que imediatamente seriam capazes de identificar pensamentos de raiva e de ódio no cérebro das pessoas. Isso funcionaria? Quem sabe. É sábio desenvolver moscas biônicas e scanners capazes de ler pensamentos? Não necessariamente. Seja como for, enquanto você lê estas linhas, o Departamento de Defesa dos Estados Unidos está transferindo milhões de dólares para laboratórios de neurociência e nanotecnologia para trabalhar nessas ideias e em outras similares.
Essa obsessão por tecnologia militar – de tanques e bombas atômicas a moscas-espiãs – é um fenômeno surpreendentemente recente. Até o século XIX, a grande maioria das revoluções militares foi produto de mudanças organizacionais, e não de mudanças tecnológicas. Quando duas civilizações estranhas se encontravam pela primeira vez, as diferenças tecnológicas às vezes exerciam um papel importante. Mas, mesmo em tais casos, poucos pensavam em criar ou acentuar deliberadamente tais diferenças. A maioria dos impérios não se ergueu graças à magia tecnológica, e seus governantes não davam muita atenção a melhorias tecnológicas. Os árabes não derrotaram o Império Sassânida graças a arcos ou espadas superiores, os seljúcidas não tinham qualquer vantagem tecnológica sobre os bizantinos, e os mongóis não conquistaram a China com a ajuda de alguma superarma. Na verdade, em todos esses casos os eliminados desfrutavam de tecnologias civil e militar superiores.
O exército romano é um exemplo particularmente bom. Foi o melhor exército de sua época, mas, em termos tecnológicos, Roma não tinha vantagem alguma sobre Cartago, sobre a Macedônia ou sobre o Império Selêucida. Sua vantagem se apoiava em organização eficiente, disciplina rígida e grandes reservas de força humana. O exército romano nunca instaurou um departamento de pesquisa e desenvolvimento, e suas armas continuaram mais ou menos as mesmas por séculos a fio. Se as legiões de Cipião Emiliano – o general que destruiu Cartago e derrotou os numantinos no século II a.C. – tivessem aparecido de repente 500 anos depois, na época de Constantino, o Grande, Cipião teria tido uma boa chance de derrotar Constantino. Agora imagine o que aconteceria com um general séculos atrás – por exemplo, Napoleão – se ele liderasse seu exército contra um batalhão modernamente armado. Napoleão foi um brilhante estrategista, e seus homens eram profissionais excelentes, mas suas habilidades seriam inúteis diante dos armamentos modernos.
Como em Roma, também na China antiga, a maioria dos generais e filósofos não achava que fosse seu dever desenvolver novas armas. A invenção militar mais importante na história da China foi a pólvora. Mas, até onde sabemos, a pólvora foi inventada por acidente, por alquimistas taoistas à procura do elixir da vida. O destino da pólvora é ainda mais revelador. Alguém poderia pensar que os alquimistas taoistas teriam levado a China a dominar o mundo. Na verdade, os chineses usaram o novo composto principalmente para fabricar fogos de artifício. Mesmo quando o Império Song ruiu diante de uma invasão mongol, nenhum imperador iniciou um Projeto Manhattan medieval para salvar o império inventando uma arma apocalíptica. Foi só no século XV – cerca de 600 anos depois da invenção da pólvora – que os canhões se tornaram um fator decisivo nos campos de batalha da África e da Ásia. Por que levou tanto tempo para que o potencial letal dessa substância fosse usado para fins militares? Porque ela surgiu em uma época em que nem reis, nem estudiosos, nem mercadores pensavam que novas tecnologias militares pudessem salvá-los ou enriquecê-los.
A situação começou a mudar nos séculos XV e XVI, mas outros 200 anos se passaram antes que a maioria dos governantes manifestasse algum interesse em financiar a pesquisa e o desenvolvimento de novas armas. A logística e a estratégia continuaram a ter um impacto muito maior no resultado das guerras do que a tecnologia. A máquina militar napoleônica que esmagou os exércitos das potências europeias em Austerlitz (1805) foi equipada com mais ou menos os mesmos armamentos que o exército de Luís XVI havia usado. O próprio Napoleão, apesar de ser um soldado de artilharia, tinha pouco interesse em novas armas, embora cientistas e inventores tentassem persuadi-lo a financiar o desenvolvimento de máquinas voadoras, submarinos e foguetes.
A ciência, a indústria e a tecnologia militar só se entrelaçaram com o advento do sistema capitalista e da Revolução Industrial. Mas, assim que se consolidou, essa relação transformou o mundo rapidamente.
Yuval Noah Harari, in Sapiens: uma breve história da humanidade

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