E
nada. Nenhuma lembrança testamentária, uma pastilha que fosse, com
que do todo em todo não parecesse ingrato ou esquecido. Nada.
Virgília tragou raivosa esse malogro, e disse-mo com certa cautela,
não pela coisa em si, senão porque entendia com o filho, de quem
sabia que eu não gostava muito, nem pouco. Insinuei-lhe que não
devia pensar mais em semelhante negócio. O melhor de tudo era
esquecer o defunto, um lorpa, um cainho sem nome, e tratar de coisas
alegres; o nosso filho por exemplo...
Lá
me escapou a decifração do mistério, esse doce mistério de
algumas semanas antes, quando Virgília me pareceu um pouco diferente
do que era. Um filho! Um ser tirado do meu ser! Esta era a minha
preocupação exclusiva daquele tempo.
Olhos
do mundo, zelos do marido, morte do Viegas, nada me interessava por
então, nem conflitos políticos, nem revoluções, nem terromotos,
nem nada. Eu só pensava naquele embrião anônimo, de obscura
paternidade, e uma voz secreta me dizia: é teu filho. Meu filho! E
repetia estas duas palavras, com certa voluptuosidade indefinível, e
não sei que assomos de orgulho. Sentia-me homem.
O
melhor é que conversávamos os dois, o embrião e eu, falávamos de
coisas presentes e futuras. O maroto amava-me, era um pelintra
gracioso, dava-me pancadinhas na cara com as mãozinhas gordas, ou
então traçava a beca de bacharel, porque ele havia de ser bacharel,
e fazia um discurso na Câmara dos Deputados. E o pai a ouvi-lo de
uma tribuna, com os olhos rasos de lágrimas. De bacharel passava
outra vez à escola, pequenino, lousa e livros debaixo do braço, ou
então caia no berço para tornar a erguer-se homem. Em vão buscava
fixar no espírito uma idade, uma atitude: esse embrião tinha a meus
olhos todos os tamanhos e gestos: ele mamava, ele escrevia, ele
valsava, ele era o interminável nos limites de um quarto de hora,
baby e deputado, colegial e pintalegrete.
As
vezes, ao pé de Virgília, esquecia-me dela e de tudo; Virgília
sacudia-me, reprochava-me o silêncio; dizia que eu já lhe não
queria nada. A verdade é que estava em diálogo com o embrião; era
o velho colóquio de Adão e Caim, uma conversa sem palavras entre a
vida e a vida, o mistério e o mistério.
Machado
de Assis, in Memórias póstumas de Brás Cubas
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