E
como as páginas dos jornais estivessem mais sujas de sangue que as
que embrulham o peso de carne nos açougues, eu resolvi desligar e
buscar um pouco de beleza no mundo. Olhei minha nova casa em torno,
toda caiada de branco, modesta em seu recolhimento, e os belos
arraiolos no piso de tábuas, e fui espiar meu escritório ainda
incompleto, pintado de amarelo-acácia, e vi minha mesa de trabalho
com a Smith Corona em posição de sentido e o maço de folhas
quadriculadas à minha espera para o artigo, o poema, a canção. À
esquerda, o Pequeno dicionário , de mestre Aurélio, o tubo plástico
de cola-tudo, a caixa de clipes e o copinho de couro ornado em cobre
com as esferográficas e os lápis prontos para tudo. Pedi um café e
sentei-me, tomado de grande paz. Vinha daquele ambiente um silêncio
tão antigo; aquela casa era a tal ponto a representação de outras
em que eu nunca tinha estado - como o reflexo ao infinito de uma
imagem num espelho - que eu poderia dizer naquele instante como
viviam e pensavam os homens mais remotos no tempo. Foi então que vi,
através da janela, a pedra dos Dois Irmãos, na luz pura da manhã
na Gávea; e ela estava de tal modo precisa em seus contornos, tão
íntegra em sua estrutura milenar, que sorri para ela e ela me
correspondeu sensível à onda de percepção que eu irradiava.
Senti
como se estivesse nascendo naquele momento. Uma vida nova, passada a
limpo, me esperava em direção a um Norte mais nítido, a uma morte
mais próxima e sem alternativa. Mas aquela casa me protegia, e
dentro dela uma mulher se esforçava por me fazer feliz. Aquelas
folhas de papel me esperavam também, intocadas, e era minha
obrigação escurecê-las de ideias, histórias, sortilégios
capazes, talvez, de fazer alguém parar no seu cotidiano e se pôr a
sonhar. Era bela a minha missão. “E sou um poeta”, pensei, “um
homem dotado de um dom mágico com relação às palavras; a bem
dizer, um encantador de palavras, com a habilidade de ordená-las no
seu caos e fazê-las significar, torná-las cruéis, pungentes,
desesperadas, ou boas, úteis, generosas; com o poder de interpretar
para alguém o milagre de um sentimento ignorado; de dar expressão
ao inexprimível; de associar ideias, cores, sons aparentemente
contrastantes; de emprestar sentido e beleza ao terrível paradoxo da
vida...” E senti como nunca dantes a necessidade de uma disciplina
física e mental que pudesse ajudar meu corpo a tornar-se cada dia
mais apto para usufruir, meu espírito mais lúcido para receber, meu
coração mais simples para dar.
Pensei
em seres lindos semeados ao longe do meu caminho, que comeram o pão
que o diabo amassou, e nem por isso se deixaram envenenar pelo
ressentimento; pelo contrário, a cada sofrimento vivido pareciam
crescer em consciência, amor e perdão - e como que deles emanava
uma paz. Pensei que alguns desses seres já se foram, transpuseram o
muro do silêncio, e suas imagens, fixadas na eternidade, continuam a
transmitir-me esse recado de perdão. Perdoar... Transcender o
efêmero de cada sentimento, de cada ressentimento, e tentar
compreender o ser humano em sua fragilidade, em sua transitoriedade e
inabilidade intrínseca para demarcar os limites de sua solidão; em
sua inútil e permanente mania de viver esbanjando a própria morte:
a única coisa de que é realmente possuidor. Ah, que conquista tão
bela, a do perdão... - e não o perdão autocomplacente; mas o
perdão punitivo, o que responsabiliza aquele que perdoa, como o de
Sócrates com seus juízes, o de Cristo com a adúltera, o da mulher
que ama com o homem que acabou de traí-la. O amor que transcende.
Que
seres difíceis de digerir se tornaram os cosmonautas, em seu mundo
mecânico e pasteurizado... Tomara que tenham êxito em sua badalação
cósmica, que nos tragam, de preferência, antibióticos contra a
guerra e não vírus contra a paz, que possam olhar o espaço
invertido, com perdão da palavra, em noite de terra-cheia, e ver
também, como nós vemos de cá, o Santo Guerreiro vencendo o Dragão
da Maldade - que já não é sem tempo! E sobretudo que ao voltarem -
e faço votos do fundo do meu coração - não comecem com muitas
explicações cibernéticas quando ouvirem Frank Sinatra ou Ella
Fitzgerald cantar velhas baladas como “Blue Moon” e outras
do mesmo lunário em louvor da outrora bela e mágica Silene, a que
apaixonou Endimião, e a quem tudo o que se pode dizer hoje em dia é
que não lhe cairia mal um face peeling. Porque, ou muito me
engano, ou uma grande onda romântica deve vir por aí, em contagem
regressiva, em reação aos pops & ops, hips & trops,
concs & struts, de que já está todo o mundo cheio.
Depois
de todas essas considerações, umas pertinentes, outras ímper,
peguei meu carro e fui até a Barra, visitar um antigo cosmonauta:
meu amigo Zanine. Zanine é um construtor terrestre, no mais amplo
sentido da palavra, isto é, não apenas de casas, mas de sua própria
vida. Gosta de fazer tudo com as mãos, ou orientando as de seus
obreiros como se fossem o prolongamento das suas. Ele ama a terra, a
pedra, a areia, a água, o barro cozido, a madeira nua, a cal branca,
o ferro batido, a mulher baiana. É um artista no que planeja como
visão de conjunto, e um artesão na pureza e simplicidade do que faz
- com tudo o que essa palavra contém de beleza e sensualidade.
Fórmica com ele não tem vez. Zanine acabou de construir uma bela
casa - a sua casa - onde mora com a mulher e a filhinha, a
alto cavaleiro do mar: um marzão que é uma bestialidade, povoado de
ilhas toscas e peixes ferozes. O crepúsculo que Zanine me ofereceu
esse dia, naquele horizonte imenso, era de dar vontade de ter asas.
Aliás, voavam por ali tudo balõezinhos de julho, retardatários,
que por não serem impulsionados por nenhum foguete - no que muito
bem obravam - acabaram por cair no mar, em obediência a uma antiga
lei de física, qual seja a da gravidade dos corpos, que, diga-se de
passagem, qualquer dia é bem capaz de fazer uma falseta a um desses
cosmonautas que teimam em desrespeitá-la.
Para
mim não há nada mais inocente que essas revistas pseudo-eróticas
que andam por aí. As moças nuas, em off-set, parecem-me de
tal modo cândidas, malgrado o esforço em contrário dos fotógrafos,
que para mim constituem verdadeiros breves contra a luxúria.
Já o mesmo não pode ser dito da natureza: pelo menos tal como ela
se me oferecia, ao voltar da Barra. Pois imaginem que ao olhar o céu
rubro do crepúsculo (eu diria melhor: ruborizado!) constatei, nada
mais, nada menos - veja só! - que a tarde estava com a Lua toda de
fora…
Vinicius
de Moraes, in Prosa
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