Mayer
Guinzburg teve finalmente de começar a trabalhar. Arranjou um
emprego com o pai de Leib Kirschblum, um homem muito velho, que tinha
uma pequena loja no Bom Fim, chamada “A Preferida”. Vendia
miudezas: retroses, cadarços, elásticos novelos de lá, retalhos de
percal, peças de lingerie.
A
loja era uma espécie de porão escuro, fresco no verão, mas gelado
no inverno. Entrava-se por uma porta baixa, passava-se por cestos de
retalhos e chegava-se ao balcão do fundo. Lá estava Mayer
Guinzburg, fitando a rua com os olhos mortiços. O pai de Leib
Kirschblum ficava na caixa, cochilando; ao mais leve ruído
despertava assustado: “Pronto, senhor! Queria?... Mayer! Mayer!”.
— “Não é ninguém seu Kirschblum” — resmungava Mayer numa
voz ácida. No inverno de 1933 o velho ficou doente; o Dr.
Finkelstein proibiu-o de ir à loja. Mayer Guinzburg teve de tomar
conta do armarinho; não era muito difícil, já que os fregueses
eram raros.
De
manhã ele abria a loja muito cedo; às vezes, a neblina que vinha da
Redenção invadia o estabelecimento e, na semi-obscuridade, Mayer
tinha a impressão de estar meio afogado, flutuando num mar. De vez
em quando, mexia nas caixas de botões, arrumava as prateleiras.
Pouco a pouco, a modorra voltava a dominá-lo e ele via, de pé sobre
o balcão, muitos homenzinhos sorrindo para ele. A princípio Mayer
detestava as minúsculas criaturas e tentava afugentá-las, brandindo
o metro de madeira amarela. Aos poucos, porém, foi se acostumando
principalmente quando notou que ouviam com atenção seus resmungos e
pareciam mesmo apoiá-lo. “Aquele velho sujo: capitalista
explorador.” Os homenzinhos aprovavam com a cabeça. “Se pudesse,
sugava o sangue dos trabalhadores!.” Os homenzinhos aplaudiam. “É
preciso lutar!.” Aplausos, aplausos. Entrava uma freguesa; os
homenzinhos sumiam. Mayer vendia, de má vontade, um pedaço de
elástico.
Aos
poucos foi descobrindo outros habitantes na loja; atrás de uma peça
de cretone morava uma aranha de corpo pequeno e patas longas e
delicadas, que se movia com desenvoltura sobre a prateleira; no
rodapé havia um pequeno buraco por onde assomava às vezes uma
cabecinha de camundongo; e finalmente dentro de uma caixa vazia Mayer
encontrou certo inseto cujo nome não sabia; era maior que uma
formiga e menor que uma barata, de cor indefinida. Estes eram seus
companheiros, nas longas tardes vazias.
“Se
o velho Kirschblum morresse” — pensa Mayer — “Eu poderia
fechar a loja e começar — aqui mesmo — uma vida inteiramente
nova”. O pequeno pátio dos fundos — por enquanto, um sujo lugar,
cheio de caixas de papelão, pedaços de madeira e latas enferrujadas
— será aproveitado. Mayer Guinzburg o liberará de toda a sujeira;
e a terra que se revelar será trabalhada com carinho: virada, de
maneira a enterrar a crosta velha e permitindo que aflore a matéria
fresca; e semeada. Agradecida, retribuirá: logo estarão brotando,
espevitadas, as espertas folhinhas. Por toda a parte, plantas; por
toda a parte, menos junto ao mastro, onde Mayer Guinzburg hasteará
todas as manhãs a bandeira de Nova Birobidjan. Quanto à casa, será
esvaziada de toda a mercadoria; retroses, cadarços, elásticos,
novelos de lã, retalhos de percal, peças de lingerie serão
arrojados a uma área de cimento; acumulados em gigantesca pira,
serão incendiados; e, na fumaça negra que se erguerá ao céu,
Mayer Guinzburg verá sua libertação.
— Nos
poros da sociedade — gritará — nunca mais! Para a frente, forças
produtivas! A casa será redividida; uma parte será o Palácio da
Cultura; em outra funcionará o Comitê Político, em outra a redação
de “A Voz de Nova Birobidjan”. Neste grande empreendimento Mayer
Guinzburg terá aliados: a Camarada Aranha, o Camarada Rato e o
Camarada Inseto. Mayer Guinzburg gostará da Camarada Aranha, do
Camarada Rato, mas não gostará do Camarada Inseto; não saberá por
que, mas não gostará. Se esforçará para gostar, mas não gostará.
Fará autocrítica a respeito, mas não gostará. Talvez porque o
Camarada Inseto permaneça indefinido: nem bem formiga, nem bem
barata; e esta ambiguidade, Mayer Guinzburg sabe, poderá no futuro
se expressar sob a forma de desvios ideológicos. De uma grande
tribuna, sob o retrato de Rosa de Luxemburgo, Mayer discursará: —
O Camarada Inseto incide em graves erros! Despertam-no destes sonhos
alguns fregueses — raros, porém exigentes. Mayer atende-os,
contrariado. “Quando chegará a hora?” — perguntava-se.
De
repente. Chegou de repente, numa tarde de inverno. Ele estava sentado
atrás do balcão, meio afogado no tédio, quando foi sacudido por
uma espécie de choque. Levantou-se, foi até a porta e fechou-a.
Voltou-se para as prateleiras e disse, com voz firme: — Iniciamos
agora a construção de uma nova sociedade.
Os
homenzinhos aplaudiram. Mayer tirou o casaco, arregaçou as mangas.
Ia começar a limpeza do local, quando bateram à porta. A princípio
ele fingiu não ouvir; mas as batidas se repetiam de maneira tão
frenética que ele acabou abrindo a porta.
Era
Leia, chorando.
— Meu
pai morreu, Mayer.
Meio
ano depois se casaram.
Moacyr
Scliar, in O exército de um homem só
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