sexta-feira, 22 de março de 2019

Transubstanciação do amor

O irracional tem um papel imprescindível no nascimento do amor, bem como na sensação do amor - a impressão de se fundir, de se dissolver. O amor é uma forma de comunhão e de intimidade: o que poderia melhor exprimi-lo do que o fenômeno subjetivo da dissolução, do colapso de todas as barreiras da individualização? Afinal, o amor não é, junta e paradoxalmente, o universal e o singular por excelência? A verdadeira comunhão apenas pode realizar-se por meio do individual. Eu amo um ser, mas como ele é o símbolo do todo, participo da essência do todo, inocente e inconscientemente. Esta participação universal supõe a especificação do objeto, o individual abre-se ao universal. A difusão e a exaltação do amor surgem de um pressentimento, da presença irracional na alma do amor, que alcança então o seu paroxismo. O verdadeiro amor é um pico do qual a sexualidade em nada participa.
A sexualidade não atinge também os seus cumes? Não procura um paroxismo único? Este curioso fenômeno que é o amor, apesar disso, expulsa a sexualidade do centro da consciência - tanto que se concebe amor sem sexualidade. O ser amado cresce em nós, purificado e perseguido, com uma auréola de transcendência e de intimidade, que torna a sexualidade marginal, senão de fato, ao menos subjetivamente. Entre os sexos, não há amor espiritual, mas uma transfiguração carnal em que a pessoa amada identifica-se tanto conosco que nos dá a impressão de espiritualidade. Somente então surge a sensação de dissolução, em que a carne sofre um estremecimento total e cessa de ser resistência e obstáculo para queimar de um fogo interior, para se fundir e se perder.
Emil Cioran, in Nos cumes do desespero

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