O
poema é uma mensagem que o poeta envia para si mesmo a respeito de
algo que desconhece. Ele a lacra em um envelope – o poema. Quando
chega ao leitor, a mensagem também continua indecifrável; por mais
que tente, ele não consegue abri-la. Tudo o que lhe resta são as
palavras. Ler um poema é tentar rasgar um envelope inviolável.
Os
poetas escrevem no escuro, mas alguns, além disso, escrevem de olhos
vendados. Lacrados em si mesmos, recusam-se a ver. A escrita se
torna, então, a luta para inventar um sexto sentido que substitua a
visão mutilada. Eis o que chamam de poesia. Sempre penso que esse é
o caso do português Mário de Sá-Carneiro. Sua poesia (que releio
em Os melhores poemas de Mário de Sá-Carneiro, Global
Editora) é o resultado de uma cegueira sobreposta a outra cegueira.
Por isso é tão enigmática. Por isso também é tão apaixonante.
Arrisco
uma primeira hipótese: o grande personagem da poesia de Mário é a
ausência. Personagem esquivo, ele não comparece aos versos que o
celebram. Só aparece em negativo – como um ausente. É como se o
mais famoso convidado de uma festa cancelasse, subitamente, sua
presença. Ou o craque mais celebrado fugisse de um jogo decisivo. De
que mais falar senão dessa ausência tão sentida? É sobre ela que
Mário escreve. Não sobre algo que tem, mas sobre algo que não tem.
Na
primeira carta da longa correspondência que manteve com Fernando
Pessoa, datada de outubro de 1912 e enviada de Paris, um enfastiado
Mário, já na primeira linha, anuncia: “Francamente não tenho
nada de interessante a dizer-lhe”. Desembarca na França para
estudar Direito na Sorbonne. Quatro anos depois, aos 25 anos de idade
e com cinco frascos de arseniato, suicida-se. Assim que chega a
Paris, em outra carta ao amigo e numa antecipação do ato final,
escreve: “Hoje sou o embalsamamento de mim próprio”. Dias antes
de cometer suicídio, na última carta a Pessoa, anuncia seu desejo
de lançar-se embaixo de um trem. Mas quem acreditaria em um homem
para quem a ausência era tudo? Morrer não seria, para ele,
ausentar-se da ausência?
Curiosamente,
sua morte nunca foi registrada em Lisboa, onde, portanto, o poeta
continua oficialmente vivo. Também a burocracia, às vezes, é
sábia. Como fixar uma vida que se pauta pela negação? E pior: como
anunciar a morte de alguém que, para si mesmo, nunca existiu? As
duas medidas parecem desnecessárias, e o próprio Mário se
encarregou de registrar isso em versos. A poesia é um recurso mágico
que permite dar forma ao que desconhecemos.
Em
“Como eu não possuo”, poema escrito em 1913, Mário se pergunta:
“Serei um emigrado doutro mundo/ Que nem na minha dor posso
encontrar-me?”. Repenso minha primeira hipótese: reduzir sua
poesia a sentimentos negativos, como a tristeza e o sofrimento, é,
ainda, recusá-la. Aproximo-me, então, da segunda hipótese. Para
Mário, não basta ter; pois ter ainda não é possuir. Mais à
frente, escreve: “Se tivera um dia,/ Toda sem véus, a carne
estilizada/ Nem mesmo assim – ó ânsia – eu a teria...”. Esses
versos apontam o objeto de sua poesia, que já não é algo que se
ausenta, ou se recusa, e que um dia, quem sabe, se poderá ter; mas
algo para sempre perdido. Não é a carne que não se tem, mas o
desejo de possuí-la. Poeta da ausência? Talvez dizendo melhor:
poeta do desejo.
Não
a ausência disso ou daquilo, mas ausência do próprio desejo. O
poeta pode ter tudo, mas ainda assim nada terá. Parece um homem a
quem, já enfastiado depois de um longo banquete, se oferece um
assado suculento. Não lhe falta o assado (o objeto), mas lhe falta o
desejo de devorá-lo. Essa posição intermediária entre sujeito e
objeto deixa Mário quase sempre “a ponto de”. Dizendo de outra
forma: transforma-o em um fantasma que ronda entre as coisas, quase
as toca, mas sempre falha. Em “Quase”, também de 1913, ele
sintetiza: “Um pouco mais de sol – eu era brasa./ Um pouco mais
de azul – eu era além”. Falta-lhe justamente “um pouco mais”,
e esse passo a mais é o desejo, sem o qual nenhum contato com o
mundo é possível.
“Na
minh’alma tudo se derrama”, ele descreve em outro verso,
apontando a origem do sofrimento. Também o suicídio talvez se
explique com os versos finais: “Pra atingir, faltou-me um golpe de
asa.../ Se ao menos eu permanecesse aquém...”. Ao aquém do mundo,
isto é, ao nada, só se retorna com a morte. Aproximo-me,
lentamente, de uma terceira hipótese: Mário, poeta do nada. Já que
não consegue desejar, prefere abrir mão da posição intermediária,
onde as coisas o chamam. Ele as ouve, sabe que deve ir – mas não
consegue se mover, já que algo (a ausência do desejo) o impede. O
que lhe resta, então, não é o vazio, resultado de uma ausência,
mas o nada, lugar onde ninguém esteve.
Em
Mário de Sá-Carneiro a poesia se torna uma escavação. Para
escrever, em vez de construir, ele arranca. “Desço-me todo, em
vão, sem nada achar/ E a minh’alma perdida não repousa.” A
poesia é uma prótese que preenche uma ausência? Não: ela é mais
um adereço que sinaliza algo que nunca existiu. Que outra coisa é a
língua, arbitrária e alheia, senão um substituto do inexistente?
“Nada tendo, decido-me a criar”, Mário escreve. Constrói-se,
então, fora de si, com a consciência de que a linguagem é tudo –
mas nós somos outra coisa.
A
consciência desse abismo entre o ser e a língua conduz um perplexo
Mário, no mesmo poema, à terrível pergunta: “Onde existo que não
existo em mim?”. Não é a ausência ou a falta do desejo que o
impedem de encontrar. O que busca é o nada. Na dança em torno do
nada se faz poeta. A poesia já não é prótese ou fantasia, mas
objeto autônomo, que o poeta arranca de si.
A
poesia de Mário de Sá-Carneiro afirma o poder da invenção. Ou
temos a coragem de inventar a vida, ou vida não haverá. Em “A
partida”, poema de 1913, assim resume sua condição de poeta:
“Afronta-me um desejo de fugir/ Ao mistério que é meu e me
seduz./ Mas logo me triunfo”. A expressão é clara: “me
triunfo”. O poeta é aquele que vence a si mesmo. Que apesar de
nada ter e de nada desejar, aproveita-se disso para existir.
José
Castello, in Sábados inquietos
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