Parou
para espiar a vitrine. Sapatos e bolsas, pretos, amarelados, marrons,
azuis. Não estava interessado em sapatos e bolsas. Olhava por olhar.
Passava todos os dias por ali, cada dia observava uma vitrine, uma
loja, um balcão, um canto. Costumava também olhar para cima. Assim
tinha descoberto coisas que outros não viam. Um beiral antigo,
esquecido na fachada de um prédio. Uma cornija. Uma grade, uma
janela com vidros desenhados, vaso de flores, gaiola com pássaros,
retrato pregado numa veneziana, números no alto de portais, rostos
atrás de vidraças, aquários. Levava esbarrões, xingos, o que
faz aí parado, bestalhão, pô, nesta cidade tem de tudo, até gente
parada de boca aberta. Não ligava, falavam por falar. Para ter
alguma coisa contra o que reclamar.
Enquanto
admirava a vitrine, ouviu os passos. Era a primeira vez que prestava
atenção no ruído dos passos. Virou-se, observando os pés do povo.
Os sapatos batiam no calçamento; uns arrastavam os pés; outros
saltitavam; uns pareciam flutuar. O que o impressionava mesmo era o
barulho. Não, não era o barulho, percebeu. Era o silêncio, dentro
do qual os passos sobressaíam. Silêncio espesso dentro da tarde. De
tal modo que ele podia, com nitidez, distinguir cada ruído. O dos
passos, o das vozes, o dos murmúrios (mesmo das pessoas que falavam
sozinhas), dos chamados, das máquinas de escrever por trás das
paredes, dos apitos dos guardas, de nomes gritados, sussurrados,
chamados, de músicas que se confundiam, como se as letras fossem
coisas absurdas, sem sentido algum, de motores engrenando,
funcionando, buzinas, choros, soluços, zumbidos. Seu ouvido captava
e selecionava, como um aparelho estereofônico, capaz de enviar para
alto-falantes diversos, sons de instrumentos diferentes.
O
silêncio pareceu incômodo ao homem acostumado dentro da cidade
barulhenta, irritadiça, insuportável. O seu dia a dia era
constituído por um barulho só, homogêneo, que se integrara à sua
vida. Algo de que ele dependia, fazia falta ao seu organismo. Só
conseguia pensar, trabalhar com eficiência, dentro daquele conjunto
de ruídos absorventes que lhe davam a certeza de que a cidade
marchava, a pleno vapor, e ele era parte dela, um acréscimo. E que
sem ele, e sem ele – o outro – numa escala infinita, esta cidade
iria parar, quebrando toda uma estrutura.
Então,
aquele silêncio distinto, imenso vazio dentro da tarde, provocou
nele primeiro um sentimento de desconforto. Em seguida, veio a
insegurança, a dúvida sobre sua situação. Estava na sua própria
cidade, ou caíra de repente dentro de um pesadelo? Quando o homem
duvida, o seu mundo cai em ruínas, desaparecem os pontos de apoio,
os suportes familiares e ele se balança como boneco João-teimoso.
O
desconforto surgiu e ele teve vontade de gritar. Mas, se gritasse,
iriam achar que ele estava louco. Loucos são eliminados dos grupos
normais. Ele queria gritar. O ar que enchia o seu corpo precisava ser
expelido. Sentia-se como o pneu que suporta vinte e duas libras e
está com trinta e cinco, a ponto de estourar. Os músculos do seu
peito, a carne toda, doíam, dentro da tensão. Então, gritou. Ouviu
o grito com nitidez dentro do silêncio que abrigava os ruídos da
tarde. Olhou assustado para as pessoas e foi como se elas estivessem
surdas. Nem se viraram. Gritou de novo, percebendo que o primeiro
grito fora mais um urro, só para expulsar a massa de ar. E gritou. E
gritou de frente para uma moça de amarelo. E a moça gritou. E os
dois gritaram juntos, e sorriram. Viram outros sorrindo.
Gritaram
os dois; e eram três. Gritaram os quatro; e eram cinco. Gritaram
todas as pessoas naquela quadra. As que passavam, as que passeavam,
as que olhavam vitrines, as que olhavam para o chão, as que entravam
e saíam dos prédios. Gritavam, e o grito ecoou pela rua. Foi
respondido. Gritaram na esquina. Na outra esquina. Na praça.
Gritaram dentro dos ônibus, dos carros, no interior dos cinemas e
dos escritórios. Gritaram nos mictórios e nas lanchonetes, nos
bancos e doçarias.
No
fim da tarde, quando o sol se pôs, não havia mais ruídos, em
silêncio, apenas o grito, uniforme, uníssono, unânime, solidário,
de seis milhões de pessoas.
Grito
sem fim, enquanto a noite descia.
Ignácio
de Loyola Brandão, in Cadeiras proibidas
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