Fotograma do filme As vinhas da ira
Quarenta quilômetros de Castle a Paden,
e o sol passara o zênite, começando a descer. A tampa do radiador
começou a oscilar e o vapor escapou-se-lhe entre as frestas. Próximo
a Paden havia uma construção à margem da estrada e duas bombas de
gasolina defronte dela; e ao lado, diante de uma cerca, uma bica de
água e uma mangueira. Al dirigiu o Hudson de maneira que o radiador
do caminhão ficasse bem junto da bica. Assim que parou, um homem
corpulento, de rosto e braços vermelhos, ergueu-se de uma cadeira
colocada atrás das bombas de gasolina e veio ao seu encontro. Vestia
calças de lona marrom, suspensórios e uma camiseta de malha; e
tinha sobre os olhos uma viseira de cor prata. O suor gotejava de seu
nariz e de sob os olhos, formando pequenos fios nos vincos do
pescoço. Aproximou-se lentamente do caminhão, a cara fechada,
truculenta.
— Querem comprar alguma coisa?
Gasolina, ou quê? — perguntou.
Al já tinha saltado e estava
desatarraxando a tampa do radiador que estava envolta em vapor,
utilizando-se da ponta dos dedos para que o vapor quente não lhe
queimasse a mão quando brotasse em jato forte.
— Preciso de gasolina, seu.
— Tem dinheiro?
— É claro. Pensa que estamos
mendigando?
A expressão truculenta abandonou as
faces do homem.
— Bom, então tá certo. Pode se servir
da água. — E tratou de explicar: — A estrada tá cheia de gente
e todo mundo quer água e suja a privada e, que diabos, rouba o que
pode e não compra coisa nenhuma. Não têm dinheiro pra comprar
nada. Mendigam um galão de gasolina e vão-se adiante.
Tom pulou colérico do caminhão e
postou-se em frente ao homem da bomba de gasolina.
— Nós pagamos, tá compreendendo? —
disse exaltado. — Você não tem o direito de nos interrogar, nem
de falar com a gente desse jeito, ouviu? Meta-se com a sua vida!
— Não tô me metendo com ninguém —
escusou-se o homem, depressa. Sua camiseta já estava ensopada de
suor. — Podem tirar água à vontade. E servir-se do banheiro, se
quiserem.
Winfield já tinha achado o bico da
mangueira e agora encostava-o à boca, e deixava que a pressão da
água lhe lavasse a cabeça e o rosto. Depois deixou a água
escorrer.
— Tá quente — disse.
— Não sei onde vamos parar — disse o
homem da bomba de gasolina, com um jeito de quem não tinha a
intenção de atingir os Joad. — Cinquenta a sessenta carros cheios
de gente passam por aqui todos os dias, para o Oeste, carregando
filhos e troços à beça. Aonde é que eles vão desse jeito? Que é
que eles vão fazer?
— Vão fazer o mesmo que nós — disse
Tom. — Procurar um lugar pra viver. É só isso, nada mais.
— Bem, eu não sei onde isso vai parar
assim. Não sei, mesmo. Olhe eu, por exemplo. Também estou aqui
tentando cuidar da minha vida. O senhor pensa que algum dos carros
grandes e novos que passam por esta estrada para na minha bomba? Para
coisa nenhuma! Vai direitinho à cidade, onde tem aqueles postos
pintados de amarelo da companhia de gasolina. Eles não param em
lugar que nem esse. Aqueles que param, é pra pedir coisas, nada de
comprar.
Al tinha afrouxado a tampa do radiador,
que, impelida por um forte jato de vapor, voou bem alto. Um som cavo,
murmurante, subiu pelo tubo. No alto da carroceria, o cachorro,
sofredor, foi se esgueirando para a traseira do caminhão, gania
timidamente e olhava para baixo, em direção à água. Tio John
subiu e carregou-o para baixo, segurando-o firmemente pela pele do
pescoço. Por um instante, o animal ficou estacado, pernas retesadas,
depois correu à poça d’água que se formara junto ao bico da
mangueira. Pela estrada deslizavam os carros, cintilando ao calor, e
o vento quente que levantavam na corrida atingia o posto de gasolina.
Al enchia o radiador de água.
— Não é que eu me queira aproveitar
da gente rica — continuou o homem do posto. — Mas preciso manter
o meu negócio. E aqueles que param aqui só vivem esmolando gasolina
ou então querem fazer trocas. Posso mostrar, estão aí naquele
quarto dos fundos, aquela porção de troços que tenho recebido em
paga de gasolina e óleo: camas, berços, panelas e frigideiras. Uma
família trocou até a boneca de uma filha por um galão de gasolina.
Que é que eu vou fazer com esses troços todos? Abrir uma loja de
quinquilharias? Um sujeito queria me dar até os sapatos em troca de
um galão de gasolina. E se eu não fosse um camarada direito, até
as... — Ele olhou para a mãe e não continuou a frase.
Jim Casy jogara água sobre a cabeça e
as gotas lhe caíam ainda pela testa ampla; seu pescoço musculoso e
sua camisa estavam molhados. Dirigiu-se para o lado de Tom:
— É assim mesmo, eles não têm culpa
— disse. — Você gostaria de vender até a cama em que dorme por
um pouco de gasolina?
— Eu sei que a culpa não é deles.
Todos com quem conversei têm razões mais do que boas pra se meterem
na estrada. Mas onde é que o país vai parar desse jeito? É o que
eu queria saber. Aonde é que tudo isso nos vai levar? Um homem já
não pode ganhar a vida decentemente. Nem as terras se pode cultivar
mais. Eu lhe pergunto: como é que isto vai acabar? Não faço a
menor ideia. E ninguém, dos que interroguei a respeito, soube me
dizer nada. Um sujeito aí quis vender até os sapatos pra poder ir
mais uns cem quilômetros adiante. Francamente, não sei, não
compreendo nada.
Tirou a viseira prateada da fronte,
limpando a testa com ela.
E Tom também tirou o boné e enxugou o
suor com ele. Foi até a mangueira, molhou o boné, torceu-o e
colocou-o novamente na cabeça. Mãe tirou um copo de folha de
flandres de entre a carga do caminhão, encheu-o de água e levou-o
ao avô e à avó, que ainda estavam sentados no veículo.
Encostou-se às barras laterais do caminhão, ofereceu o copo ao avô,
que molhou os lábios e sacudiu a cabeça dizendo que não queria
mais. Seus olhos alquebrados miraram a mãe, doloridos e desvairados,
até que um instante depois o brilho da inteligência tornou a
sumir-se deles.
Al pôs o motor em movimento e foi em
marcha à ré até a bomba de gasolina.
— Bom, enche o tanque — disse. —
Deve caber uns sete, mas quero só seis pra que não entorne
gasolina.
O homem da bomba dirigiu a mangueira para
o orifício do tanque.
— Francamente — foi falando — não
sei como é que este país vai acabar. Mesmo com o seguro-desemprego
e tudo.
Casy disse:
— Eu já percorri este país. E todo
mundo me fez esta pergunta. Onde vamos parar? Acho que não vamos
parar em lugar nenhum. Estamos sempre a caminho. Sempre indo. Por que
é que ninguém pensa sobre isso? É um movimento que não acaba
nunca. O pessoal anda, anda sempre. Nós sabemos por que, e sabemos
como. Caminhamos porque somos obrigados a caminhar. É o único
motivo por que todos caminham. Porque querem alguma coisa melhor do
que têm. E caminhar é a única oportunidade de se obter essa
melhoria. Se querem e precisam, têm que ir buscar. A fome tira o
lobo da toca. Eu já percorri o país todo e ouvi muita gente falar
como você fala.
O homem do posto encheu o tanque. O
ponteiro do medidor marcou a quantidade do combustível pedido.
— Sim, mas aonde nos vai levar tudo
isso? É o que eu quero saber.
Tom interrompeu-o, irritado:
— Você é que nunca vai saber disso. O
reverendo já te explicou, e você continua a repetir suas perguntas
bestas. Conheço muita gente como você. Não querem saber de nada,
mas vivem repetindo a mesma ladainha: onde vamos parar? A você isso
não interessa. O pessoal sai de sua terra, vai pra cá e pra lá.
Talvez você também morra de uma hora para outra, mas nem quer
pensar nas coisas. Conheço muita gente assim. Não querem saber de
nada. Só vivem cantando a mesma cantiga: onde vamo parar?
Ele olhou a bomba de gasolina, que era
velha e enferrujada, e o barraco construído atrás, de madeira
velha, em que se viam ainda os buracos dos pregos usados nela pela
primeira vez salientando-se na pintura amarela já desbotada, que
pretendia imitar a dos grandes postos da cidade. Mas a pintura não
conseguia ocultar os buracos dos pregos antigos, nem as velhas
rachaduras na madeira, e a pintura não podia ser renovada. A
imitação não passava de uma grosseira tentativa e o dono sabia
disso muito bem. No interior do barraco, de porta aberta, Tom viu as
latas de óleo, havia só duas, e sobre um balcão havia bombons
velhos e barras de alcaçuz que o tempo tornara escuras e cigarros.
Viu a cadeira quebrada e a tela de proteção contra moscas, com um
buraco enferrujado ao centro. E o quintal desarranjado, que devia ser
coberto de cascalho, e, atrás, um campo de cereais, secando e
morrendo sob os raios do sol inclemente. Ao lado da casa, o pequeno
sortimento de pneus usados e de pneus recauchutados. E, pela primeira
vez, notou as calças ordinárias e mal lavadas do dono da barraca, o
gordo homem da bomba de gasolina, e sua camiseta ordinária e a
viseira prateada sobre os olhos.
— Eu não queria ofender o senhor —
falou. — É o calor, sabe? O senhor também não tem nada. De
qualquer maneira, daqui a pouco o senhor estará indo embora. Para o
senhor, não são os tratores, para o senhor são os grandes e novos
postos de serviço das cidades. O senhor vai acabar indo embora
também.
O homem do posto foi diminuindo a
ginástica com que acionava a alavanca da bomba e parou de vez,
enquanto Tom falava. Encarou-o, preocupado:
— Afinal de contas, como é que você
sabe que nós também estamos nos preparando para ir para o Oeste?
Casy foi quem lhe deu a resposta:
— É porque todos estão indo para lá.
Veja eu, por exemplo; antes lutava com todas as minhas forças contra
o demônio, porque pensava que o demônio era o inimigo. Mas agora é
outra coisa muito pior que o demônio o que está dominando o país,
uma coisa que não acabará enquanto a gente não acabar com ela.
Você já viu como se agarra um monstro de Gila? Aquele lagarto
grande e venenoso do Novo México, sabe? Ele cerra os dentes com uma
força extraordinária e pode-se cortá-lo em dois, que a cabeça
ainda fica agarrada. Corte-lhe o pescoço, e a cabeça ainda fica
presa. A gente tem que enfiar a ponta de uma chave de fenda na cabeça
dele para que as presas se abram e soltem a carne, mas mesmo assim o
veneno vai gotejando no buraco aberto pelos dentes dele. — Ele
estacou e olhou Tom de lado.
O gordo fixou desanimado os olhos no
chão. Sua mão recomeçou a movimentar a alavanca da bomba.
— Não sei mesmo onde vamos parar —
disse com brandura.
John Steinbeck, in As vinhas da
ira
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