domingo, 17 de março de 2019

Édipo em Londres

Acreditamos, em geral, que somos “vítimas” de nossas sensações. Sensações são as reações espontâneas do corpo aos golpes desferidos pelo mundo exterior, pensamos. Guardam, portanto, o caráter de efeito, ou consequência, ou ainda de defesa. Acreditamos que “sofremos” disso ou daquilo – de uma visão turva, de uma audição deficiente etc. Tudo o que resta é tratar, ou atenuar, esse sofrimento, concluímos.
O neurologista inglês Oliver Sacks, de 77 anos, acredita, ao contrário, que somos na verdade “autores”, e não “vítimas”, de nossas sensações. Ele desenvolve sua tese em O olhar da mente (Companhia das Letras, tradução de Laura Teixeira Motta). Não me arriscaria a escrever sobre um ensaio de neurologia, não guardasse a tese de Sacks – ainda que baseada em argumentos e observações estritamente médicos – aspectos fortemente literários. Neles me deterei, deixo logo claro.
Penso que o ensaio de Oliver Sacks confirma certa concepção singular do mundo oferecida pela literatura e que, quase sempre, é contraposta às explicações supostamente mais dignas de crédito da ciência, da filosofia ou da religião, e por elas desautorizada ou, pelo menos, diminuída. Tento explicar – se é que consegui, de fato, entender o livro que acabo de ler. Estou convencido de que o livro do neurologista inglês interessa muito aos escritores e aos leitores de literatura, em geral tidos como pessoas fantasiosas e arredias aos “fatos da vida”.
Tudo começou no dia em que o neurologista recebeu um exemplar de Touching the rock, livro de um certo John Hull, catedrático de ensino religioso na Inglaterra. O autor teve uma catarata aos 13 anos de idade, sofreu ao longo de 35 anos com níveis crescentes de cegueira e finalmente, em 1983, aos 48 anos, ficou totalmente cego. Seu livro é o diário meticuloso de seu sofrimento.
Mas não é só o diário de uma doença: é, ainda, o relato de seu avanço gradual rumo ao que o próprio Hull chama de “cegueira profunda”. Com o agravamento da cegueira, ele perdeu não só imagens e memórias visuais, mas a própria ideia do que é “ver”. Noções banais como “aqui”, “ali” e “defronte” deixaram de ter, para ele, qualquer significado. Também desapareceu a ideia de que os objetos têm uma aparência ou características específicas que os distinguem uns dos outros.
Homem de forte fé religiosa, Hull logo emprestou a essa experiência uma conotação mística. Depois de comparar seu diário à escrita de São João da Cruz, o frade espanhol célebre por sua poesia mística, Oliver Sacks conclui que, para John Hull, a cegueira profunda passou a ser “um mundo autêntico e autônomo, um lugar todo especial”. Quase como um “outro mundo” – e aqui a relação do caso neurológico com a literatura começa a se esboçar. Afirma Hull que, na cegueira profunda, o sujeito passa a “ver com o corpo todo”. Ele argumenta: a atenção antes destinada à visão é deslocada para outros sentidos, mudança que concede a quem a experimenta um novo tipo de poder. É como se as energias antes destinadas à visão se desviassem para outras direções, emprestando aos sentidos uma potência que os homens normais desconhecem.
Essa experiência transforma o cego não em um deficiente, mas, paradoxalmente, em alguém que “vê mais”. Isso significa dizer que ele se torna o inventor de novas formas de visão – inventor singular, já que em cada homem essa transposição (ou invenção) se manifesta de uma maneira. “A descrição de Hull pareceu-me um exemplo perfeito de como um indivíduo privado de uma forma de percepção pôde redirecionar-se para um novo centro”, diz Sacks. Refere-se à plasticidade do cérebro, mas podia estar pensando na arte.
Alguns anos depois, o neurologista recebeu uma carta do psicólogo australiano Zoltan Torey, que, após um acidente de trabalho, se tornou cego aos 21 anos de idade. Ele deixou cair um plugue em um tambor de ácido na fábrica química em que trabalhava. “A última coisa que vi com total clareza foi uma centelha de luz no jorro de ácido que engolfaria meu rosto e mudaria minha vida”, escreve. Em sua carta, Torey relata o desenvolvimento posterior do que chama de um “olhar interior” – uma nova capacidade de trabalhar com imagens mentais –, o que lhe permitia realizar atividades impossíveis para os cegos, como trocar as calhas do telhado sozinho. Mais tarde, escreveu um livro, Out of darkness, em que relata sua espantosa experiência.
Sacks narra outros casos semelhantes, entre eles o do filósofo Martin Milligan, que teve os dois olhos removidos aos 2 anos de idade por causa de tumores malignos e que, com o tempo, desenvolveu uma técnica pessoal que lhe permite “ouvir” objetos silenciosos, como postes ou carros estacionados com motor desligado, pois “sendo ocupantes do espaço, eles adensam a atmosfera, quase certamente por causa do modo como absorvem e/ou ecoam os sons de meus passos e outros pequenos sons”.
Ainda surpreso com os casos que relata, Sacks fecha seu livro com uma constatação importante. Escreve: “A linguagem, a mais humana das invenções, pode possibilitar o que, em princípio, não deveria ser possível”. Em outras palavras: ela cria o impossível. A conclusão de Sacks me conduz direto ao coração da literatura, que nos permite “ver” coisas que não existem, ou em ângulos desconhecidos, ou de perspectivas impraticáveis. A isso chamamos, banalmente, de invenção – certos de que falamos do poder arbitrário e das regras fluidas da imaginação. Ocorre que a imaginação não é gratuita, tampouco a invenção – mesmo a mais espantosa delas – é arbitrária. Motivos secretos estão sempre a latejar no interior dos poemas ou das ficções.
Quando escrevemos um conto ou versos, agimos como o cego que, porque não pode ver, inventa uma nova maneira de “ver”. Daí que a literatura tem, sempre, um laço secreto com a cegueira: é justamente para enfrentar essas partes cegas da existência e transformá-las que os escritores escrevem. Édipo já sabia disso. Nada há de gratuito em seu trabalho: estão sempre a fabricar substitutos – e, na maior parte vezes, nem sabem nomear o que lhes falta.
José Castello, in Sábados inquietos

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