Acreditamos,
em geral, que somos “vítimas” de nossas sensações. Sensações
são as reações espontâneas do corpo aos golpes desferidos pelo
mundo exterior, pensamos. Guardam, portanto, o caráter de efeito, ou
consequência, ou ainda de defesa. Acreditamos que “sofremos”
disso ou daquilo – de uma visão turva, de uma audição deficiente
etc. Tudo o que resta é tratar, ou atenuar, esse sofrimento,
concluímos.
O
neurologista inglês Oliver Sacks, de 77 anos, acredita, ao
contrário, que somos na verdade “autores”, e não “vítimas”,
de nossas sensações. Ele desenvolve sua tese em O olhar da mente
(Companhia das Letras, tradução de Laura Teixeira Motta). Não me
arriscaria a escrever sobre um ensaio de neurologia, não guardasse a
tese de Sacks – ainda que baseada em argumentos e observações
estritamente médicos – aspectos fortemente literários. Neles me
deterei, deixo logo claro.
Penso
que o ensaio de Oliver Sacks confirma certa concepção singular do
mundo oferecida pela literatura e que, quase sempre, é contraposta
às explicações supostamente mais dignas de crédito da ciência,
da filosofia ou da religião, e por elas desautorizada ou, pelo
menos, diminuída. Tento explicar – se é que consegui, de fato,
entender o livro que acabo de ler. Estou convencido de que o livro do
neurologista inglês interessa muito aos escritores e aos leitores de
literatura, em geral tidos como pessoas fantasiosas e arredias aos
“fatos da vida”.
Tudo
começou no dia em que o neurologista recebeu um exemplar de Touching
the rock, livro de um certo John Hull, catedrático de ensino
religioso na Inglaterra. O autor teve uma catarata aos 13 anos de
idade, sofreu ao longo de 35 anos com níveis crescentes de cegueira
e finalmente, em 1983, aos 48 anos, ficou totalmente cego. Seu livro
é o diário meticuloso de seu sofrimento.
Mas
não é só o diário de uma doença: é, ainda, o relato de seu
avanço gradual rumo ao que o próprio Hull chama de “cegueira
profunda”. Com o agravamento da cegueira, ele perdeu não só
imagens e memórias visuais, mas a própria ideia do que é “ver”.
Noções banais como “aqui”, “ali” e “defronte” deixaram
de ter, para ele, qualquer significado. Também desapareceu a ideia
de que os objetos têm uma aparência ou características específicas
que os distinguem uns dos outros.
Homem
de forte fé religiosa, Hull logo emprestou a essa experiência uma
conotação mística. Depois de comparar seu diário à escrita de
São João da Cruz, o frade espanhol célebre por sua poesia mística,
Oliver Sacks conclui que, para John Hull, a cegueira profunda passou
a ser “um mundo autêntico e autônomo, um lugar todo especial”.
Quase como um “outro mundo” – e aqui a relação do caso
neurológico com a literatura começa a se esboçar. Afirma Hull que,
na cegueira profunda, o sujeito passa a “ver com o corpo todo”.
Ele argumenta: a atenção antes destinada à visão é deslocada
para outros sentidos, mudança que concede a quem a experimenta um
novo tipo de poder. É como se as energias antes destinadas à visão
se desviassem para outras direções, emprestando aos sentidos uma
potência que os homens normais desconhecem.
Essa
experiência transforma o cego não em um deficiente, mas,
paradoxalmente, em alguém que “vê mais”. Isso significa dizer
que ele se torna o inventor de novas formas de visão – inventor
singular, já que em cada homem essa transposição (ou invenção)
se manifesta de uma maneira. “A descrição de Hull pareceu-me um
exemplo perfeito de como um indivíduo privado de uma forma de
percepção pôde redirecionar-se para um novo centro”, diz Sacks.
Refere-se à plasticidade do cérebro, mas podia estar pensando na
arte.
Alguns
anos depois, o neurologista recebeu uma carta do psicólogo
australiano Zoltan Torey, que, após um acidente de trabalho, se
tornou cego aos 21 anos de idade. Ele deixou cair um plugue em um
tambor de ácido na fábrica química em que trabalhava. “A última
coisa que vi com total clareza foi uma centelha de luz no jorro de
ácido que engolfaria meu rosto e mudaria minha vida”, escreve. Em
sua carta, Torey relata o desenvolvimento posterior do que chama de
um “olhar interior” – uma nova capacidade de trabalhar com
imagens mentais –, o que lhe permitia realizar atividades
impossíveis para os cegos, como trocar as calhas do telhado sozinho.
Mais tarde, escreveu um livro, Out of darkness, em que relata
sua espantosa experiência.
Sacks
narra outros casos semelhantes, entre eles o do filósofo Martin
Milligan, que teve os dois olhos removidos aos 2 anos de idade por
causa de tumores malignos e que, com o tempo, desenvolveu uma técnica
pessoal que lhe permite “ouvir” objetos silenciosos, como postes
ou carros estacionados com motor desligado, pois “sendo ocupantes
do espaço, eles adensam a atmosfera, quase certamente por causa do
modo como absorvem e/ou ecoam os sons de meus passos e outros
pequenos sons”.
Ainda
surpreso com os casos que relata, Sacks fecha seu livro com uma
constatação importante. Escreve: “A linguagem, a mais humana das
invenções, pode possibilitar o que, em princípio, não deveria ser
possível”. Em outras palavras: ela cria o impossível. A conclusão
de Sacks me conduz direto ao coração da literatura, que nos permite
“ver” coisas que não existem, ou em ângulos desconhecidos, ou
de perspectivas impraticáveis. A isso chamamos, banalmente, de
invenção – certos de que falamos do poder arbitrário e das
regras fluidas da imaginação. Ocorre que a imaginação não é
gratuita, tampouco a invenção – mesmo a mais espantosa delas –
é arbitrária. Motivos secretos estão sempre a latejar no interior
dos poemas ou das ficções.
Quando
escrevemos um conto ou versos, agimos como o cego que, porque não
pode ver, inventa uma nova maneira de “ver”. Daí que a
literatura tem, sempre, um laço secreto com a cegueira: é
justamente para enfrentar essas partes cegas da existência e
transformá-las que os escritores escrevem. Édipo já sabia disso.
Nada há de gratuito em seu trabalho: estão sempre a fabricar
substitutos – e, na maior parte vezes, nem sabem nomear o que lhes
falta.
José
Castello, in Sábados inquietos
Nenhum comentário:
Postar um comentário