quinta-feira, 21 de março de 2019

A cabeça do cachalote - um exame comparativo

Eis aqui, então, duas grandes baleias, com as cabeças emparelhadas; aproximemo-nos delas e unamos a elas nossas próprias cabeças.
Na grande ordem dos Leviatãs in-fólio, o Cachalote e a Baleia Franca são de longe os mais notáveis. São as únicas baleias regularmente caçadas pelo homem. Para o nativo de Nantucket, elas representam os dois extremos das variedades conhecidas da baleia. Como as suas diferenças exteriores se observam melhor nas cabeças; e como as cabeças de uma e de outra estão balançando agora no costado do Pequod; e como podemos ir à vontade de uma a outra, pelo simples atravessar do convés: – onde, gostaria eu de saber, você conseguiria oportunidade melhor de estudar Cetologia na prática?
Em primeiro lugar, chamará sua atenção o contraste geral entre as cabeças. Em sã consciência, as duas são imensas; mas há uma certa simetria matemática no Cachalote que à Baleia Franca lamentavelmente falta. Há mais personalidade na cabeça do Cachalote. Contemplando-o, involuntariamente se reconhece nele uma enorme superioridade, a da dignidade que o permeia. No presente caso, também, tal dignidade ganha realce pela cor de sal e pimenta de sua testa, índice de idade avançada e larga experiência. Em suma, ele é o que os pescadores tecnicamente chamam de “baleia grisalha”.
Observemos agora o que é menos desigual nessas cabeças – nomeadamente, os dois órgãos mais importantes, o olho e o ouvido. Bem atrás, na parte lateral da cabeça, embaixo, perto de cada articulação do maxilar da baleia, se olhar com atenção, você verá, por fim, um olho sem cílios, que pensaria ser o olho de um potro jovem; tão fora de proporção que está em relação à magnitude da cabeça.
Ora, dessa posição lateral dos olhos da baleia, é claro que ela não consegue ver nenhum objeto que esteja à sua frente, assim como não pode ver o que está exatamente atrás. Em resumo, a posição dos olhos da baleia corresponde à posição das orelhas do homem; e você pode imaginar, por si, como seria se você tivesse que olhar os objetos de lado, com as orelhas. Descobriria que só tem domínio de uns trinta graus de visão para a frente da linha reta perpendicular à vista; e mais uns trinta graus para trás. Se seu inimigo figadal estivesse andando em sua direção em linha reta, com um punhal na mão em plena luz do dia, você não conseguiria vê-lo, assim como não o veria se o estivesse assaltando por trás. Em suma, você teria duas costas, por assim dizer, mas também, ao mesmo tempo, duas frontes (frontes laterais): pois o que faz o rosto de um homem – o que, de fato, senão seus olhos?
Além disso, na maior parte dos animais dos quais consigo me lembrar, os olhos estão colocados de modo a fundir imperceptivelmente seu poder visual, produzindo uma imagem, e não duas, no cérebro; a posição peculiar dos olhos da baleia, efetivamente separados como são por muitos pés cúbicos de cabeça sólida, que se impõem entre eles como uma imensa montanha separando dois lagos no vale; essa, é claro, deve separar inteiramente as impressões que cada órgão independente recebe. A baleia, por isso, deve enxergar uma imagem distinta de um lado, e uma outra imagem distinta do outro lado; enquanto entre eles tudo deva ser escuridão profunda e nada. Com efeito, pode-se dizer que o homem olha para o mundo de uma guarita com dois caixilhos unidos servindo de janelas. Mas para a baleia os dois caixilhos foram postos separados, criando duas janelas separadas, que lamentavelmente lhe prejudicam a visão. Essa característica dos olhos da baleia é algo que sempre se deve ter em mente na pesca; e que deve ser lembrado pelo leitor em cenas que virão a seguir.
Uma questão curiosa e intrigante poderia ser levantada no que concerne a esse assunto da visão do Leviatã. Mas devo me contentar em fazer apenas uma alusão. Desde que os olhos de um homem se abram para a luz, o ato de ver é involuntário; ou seja, ele não pode deixar de ver mecanicamente os objetos que estão diante dele. Não obstante, a experiência de qualquer um lhe ensinará que, embora possa perceber um conjunto indiscriminado de coisas num relance, lhe é quase impossível examinar com atenção e exatidão duas coisas diferentes – não importando quão grandes ou pequenas – ao mesmo tempo; não importando que estejam lado a lado e tocando uma a outra. Mas se você separar os dois objetos, colocando ao redor de cada um deles um círculo de uma escuridão profunda; então, para poder ver um deles, para que sua mente possa entrar em contato com ele, o outro objeto será totalmente excluído de sua consciência coetânea. Como se passa isso, então, com a baleia? Em verdade, seus dois olhos devem agir simultaneamente por si mesmos; mas seria seu cérebro tão mais completo, associativo e astuto do que o do homem, de modo que possa, ao mesmo tempo, examinar com atenção dois cenários diferentes, um de um lado e o outro na direção exatamente oposta? Se for possível, então isso é uma das maravilhas da baleia, como se um homem fosse capaz de fazer simultaneamente demonstrações de dois problemas diferentes de Euclides. Se estritamente investigada, não há nenhuma incongruência nessa comparação.
Talvez seja apenas um capricho ocioso, mas sempre me pareceu que as extraordinárias hesitações de movimento que algumas baleias demonstram quando cercadas por três ou quatro botes; a timidez e a propensão a temores estranhos, tão comuns em tais baleias; penso eu que tudo isso indiretamente advém da perplexidade fatal de sua vontade, que certamente está ligada à sua visão dividida e diametralmente oposta.
Mas o ouvido da baleia é tão curioso quanto seus olhos. Se você está inteiramente alheio à sua raça, você poderia persegui-lo nessas cabeças por horas a fio e nunca descobri-lo. O ouvido não tem nenhum lobo externo; e dentro do próprio buraco você mal consegue fazer passar uma pena, tão incrivelmente diminuto ele é. Está localizado um pouco atrás do olho. Em relação aos ouvidos, há uma diferença importante a ser observada entre o Cachalote e a baleia franca. Enquanto no primeiro o ouvido tem uma abertura externa, o ouvido da última é totalmente coberto por uma membrana, e por isso quase imperceptível do lado de fora.
Não é curioso que um ser tão imenso quanto a baleia veja o mundo com um olho tão pequeno, e escute o trovão com um ouvido menor do que o de uma lebre? Mas se seus olhos fossem tão grandes quanto as lentes do grande telescópio de Herschel; e seus ouvidos tão amplos quanto os pórticos das catedrais; teria por isso um alcance maior da visão ou ficaria com o ouvido mais apurado? De modo algum. – Por que, então, você procura “ampliar” sua mente? Aprimore-a.
Viremos ao contrário, então, com quaisquer alavancas e motores a vapor que tenhamos à mão, a cabeça do Cachalote; em seguida, subindo ao topo com uma escada, espiemos sua boca; e não estivesse seu corpo completamente separado dela, com uma lamparina poderíamos descer à grande caverna de Kentucky Mammoth de seu estômago. Mas fiquemos por aqui, perto deste dente, e procuremos saber onde estamos. Que boca de compleição mais linda e casta! Do chão ao teto, revestida, ou melhor, envolta numa membrana branca reluzente, brilhante como o cetim das noivas.
Mas agora saiamos e olhemos para esse portentoso maxilar inferior, que se parece com a tampa estreita e comprida de uma enorme caixa de rapé, com a dobradiça numa extremidade, em vez de estar num dos lados. Se você a ergue, para que fique no alto e exiba suas fileiras de dentes, parece mais uma terrível ponte levadiça: como, ai!, provam ser para muitos dos valentes da pesca, que tais escápulas empalam com força brutal. Mas muito mais terrível é de se observar quando, braças abaixo da superfície da água, você surpreende uma baleia furiosa, seu flutuar ali em suspenso, com sua prodigiosa mandíbula, de uns quinze pés de comprimento, descaindo de seu corpo em ângulo reto, afigurando-se tal como o pau da bujarrona de um navio. Essa baleia não está morta; está apenas sem vigor; enfraquecida, talvez; melancólica; e tão sorumbática que as articulações de sua mandíbula relaxaram, deixando-a ali numa espécie de desajeitado apuro, um descrédito para toda a sua tribo, que, sem dúvida, deve amaldiçoá-la com trismos.
Na maioria dos casos, essa mandíbula – facilmente destravada por um artesão experiente – é decepada e içada ao convés com o propósito de extrair os dentes de marfim e de fazer um suprimento do branco e rijo osso de baleia, com o qual os pescadores elaboram variados artigos interessantes, incluindo bengalas, cabos de guarda-chuvas e pegadeiras para açoites de montaria.
Com um demorado e aborrecido içamento, a mandíbula é arrastada a bordo, como se fosse uma âncora; e quando chega a hora certa – alguns dias depois do outro trabalho –, Queequeg, Daggoo e Tashtego, todos dentistas respeitáveis, metem-se a arrancar os dentes. Com uma afiada pá de corte, Queequeg realiza incisões na gengiva; em seguida, a mandíbula é atada a arganéus e, estando a talha presa ao cordame do alto, ele arranca esses dentes, como bois de Michigan puxam pedaços de carvalhos velhos para fora das florestas selvagens. Em geral, são ao todo quarenta e dois dentes; nas baleias velhas, estão todos bem gastos, mas sem cáries; nem preenchidos com nossas obturações artificiais. A mandíbula por fim é serrada em placas, que são empilhadas como vigas para a construção de casas.
Herman Melville, in Moby Dick

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