domingo, 3 de fevereiro de 2019

O padre surdo

Escrevo como Deus: direito mas sem pauta. Quem me ler que desentorte as palavras. Alinhada só a morte. O resto tem as duas margens da dúvida. Como eu, feito de raças cruzadas. Meu pai, português, cabelos e olhos loiros. Minha mãe era negra, retintinha. Nasci, assim, com pouco tom na pele, muita cor na alma.
Falo de Deus com respeito mas sem crença. Em menino, não entrei em igreja nem sequer para banho de batismo. Culpa de meu pai. Reza, dizia ele, só serve para estragar calças. Em sua suspeita a igreja devia ser lugar pouco saudável.
Pois mal se entra nela, dois passos dados e já se cai de joelhos!?
Na escola, o padre me ponteirava: esse deve ser filho das chuvas. Não comparece em catequese, nem há doutrina que se lhe conheça. E aconselhava os restantes miúdos a me guardar afastamento:
Fruto estragado deve sair do saco.
O conselho era seguido. Me evitavam. Hoje sei que não era por obediência ao padre. Eu estava só por razão de minha raça. Como escrito de Deus que a chuva manchara. Sim, o professor tinha razão: eu era filho da chuva.
E é em chuva que estou lembrando minha vida. Sempre e sempre começo no estrondo que sacudiu a minha infância. A bomba chegou num livro postal, rebentou como rasgão no mundo. Não houve sangue senão em mim. Escorriam-me quentes fios pelo pescoço. Limpei-me no rosto a procurar a fonte desse sangue. Me custou a descobrir: aquilo me brotava era de dentro, por via das orelhas.
No alvoroço nem me notaram. Havia gritos, chamas, meus irmãos. Dias depois, me queixei dos zumbidos: só então eles viram que eu deixara de escutar. Meus ouvidos tinham morrido.
Minha mãe deitou culpas no meu velho. Ele andava metido era com o fogo, tudo por mania de sua bondade. Saímos dali como de um lugar amaldiçoado, para além do mundo que me cabia. Meu pai temia que chegassem mais rebentamentos, guerras da política dos tempos.
Desde então perdi motivo para festejar a vida. Os outros jogavam a cabra-cega. sombras de sons, rascunhos sonoros. Com a idade, porém, o caso se foi agravando e, depois, até as paredes tinham mais ouvidos.
Me custou o convencimento de minha deficiência. Eu estava como aquele coxo que acredita que o mundo é que está desnivelado.
Ai não é você que está surdo? Então, é o mundo inteiro que ficou mudo?
Ninguém me garantia. Só o silêncio. Nem posso explicar o que é esse poço vazio, esse labirinto de nadas. Me fui enchendo de angústias, só e sozinho. Um dia me soltei, desesperado:
Pai: me traga uma moça.
Pedia quase sem voz. Meu pai ainda tentou brincalhar mas vendo o fundo de minha tristeza me segurou a mão.
Queres uma para noivar?
Li em seus lábios, fingi não entender. Ele baixou os olhos, embaraçado. A moça que eu queria existia?
Eu apenas quero ouvir alguém, pai.
Eu tinha tocado o fundo daquele homem. Meu pai chamou os indunas, falou com os régulos, prometeu dinheiros. Durante dias se procurou por atalhos, aldeias afora. Ainda hoje não entendo como se guiavam nessa busca, nem sabendo o retrato da desejada mulher. Até que, cansados de procurar, os mensageiros regressaram.
Encontramos todas variedades de mulher. Mas essa, a que ele procura, nem avistamos.
Até que apresentaram em nossa casa uma jovem muito bela. Ela, contudo, era muda. Meu pai recusou, sabendo de meu pedido. Mais que sentir eu queria escutar a voz da carícia. Mandavam já a rapariga de volta quando eu coincidei por ali. Chamei a moça e ela, a medo, se aproximou. Eu lhe confiei meu desejo. Meu pai querendo interrupção, conhecedor da impossível voz da moça. Mas sem coragem de me revelar a invalidez dela. Eu toquei as mãos da visitante e lhe pedi:
Só quero que me diga: em que lugar eu posso tocar o chilreio da água?
E a jovem me soprou segredos. Em verdade, eu hoje sei que de sua garganta não saiu audível palavra. Mas no momento eu me deleitei com a miragem de sua voz. Meu pai olhava, surpreso, como meu rosto mudava. Eu desabrotava, inflorescendo. Milagre, neste mundo, é não acontecerem mais milagres?
Foi ordenado à moça que ocupasse o quartinho das traseiras e ali despendesse a noite. No tumulto de meu peito não houve sono que poisasse. Manhã seguinte, minha mãe me chamou e em gesto se explicou:
Essa moça lha mandamos embora.
Embora?
Ela é escura, mais que preta. Veja você: mulato, quase branco. Não podemos fazer a raça andar para trás.
Meu pai ainda tentou aguar a fervura: que ela era aleijada da garganta, nem som de vogal a miúda rabiscava. Mas já eu tomara decisão de um outro destino. Que fiz? Me fingi padre. Foi só roubar batina e cruz. Depois, me internei na floresta, passei as imediações do longe, cheguei à última dobra do horizonte.
Não havia em nenhum mapa mais remoto lugarinho. Se chamava Vila Nenhuma. Ali refiz com esmero uma já existente paroquiazinha. Sendo o acaso que ali antes estivera um outro missionário, homem bondoso, que recheou de gente suas missas. E recoincidência: como eu, também ele era surdo. De modo que o povo dali acreditava que surdez era obrigação para ser creditado missionário. Agora, recordando o que fiz eu mesmo digo: o demônio deve ter muito má memória. Pois tantas coisas se fazem que não lembram ao diabo.
Me fazendo passar por sacerdote eu arranjava maneira de viver à custa dos alheios cuidados. Me cuidavam, me entregavam sustento. Eu inventava rezas que, as pobres gentes, se dificultavam em decorar. Pois de cada vez eu as pronunciava diferente. Confusos, os crentes nem por isso perdiam convicção. Quem sabe fosse minha dedicação em tudo que, antes, me ignorava. Enfermeiro, fui. Professor, me estreei. Conselheiro, me intentei. Em tudo, enfim, ocupei a bondade. Quem sabe, por troca desses serviços, sempre tive igreja cheia. Os camponeses, nos infalíveis domingos, se confessavam. Eles, em si, graves. Só eu roubava o sagrado da cerimônia. Me sentava no confessionário, escuro como o umbigo da tartaruga. Um por um, os crentes se ajoelhavam do lado de fora e, aos berros, confessavam seus pecados. Daquela maneira, todos conheciam as intimidades de todos. Assim fora com o anterior padre, assim seguia comigo.
Ontem, choveu tanto que as casinhotas à volta estremeceram, precárias. O povo veio procurar refúgio na igreja. Nunca em nenhuma missa eu tivera tanta gente. Foi então que, entre os camponeses encharcados, vi chegar a moça, a mesma que meu pai encomendara para meu consolo. O tempo trabalhara seu rosto, seu corpo. Tudo em benefício da beleza. Ela me dedicou os mesmos olhos que me haviam tonteado na varanda da adolescência. E se retirou a procurar quentura da lareira. Me pareceu ver que falava com os outros, se entendendo, combinando falagens. Chamei o sacristão e lhe dei ordem:
Aquela mulher, aquela. Veja se ela fala.
Meu ajudante nem entendeu à primeira. Lá foi, acercando-se dela. Me fez sinal que sim, a moça tinha falas visíveis. Aquilo me fulminou, fósforo lançado em cratera de vulcão. Me veio à mente toda a minha vida, em despedaços, faz conta uma bomba me estilhaçasse a memória. Subi ao altar, fiz sinal de silêncio às dezenas que ali se abrigavam. Sei ver o silêncio, sei ler quando ele chega. Vejo pelos olhos das pessoas. Eu sabia, naquele momento: só a chuva se escutava, timbilando o telhado da igrejinha. Então, lhes falei o que agora estou escrevendo, o teor da minha mentira, minhas falsas vestes, meu falso credo. Me confessava em aberta voz, como eles antes haviam feito. Despi a batina, dei as despedidas e saí por entre olhos espantados.
Lá fora, como adivinhara, chovia. Minha cabeça imagirava, o tanto que chovia nunca me dera conta. O céu ameaçava inundação? Dei passos de bêbado, procurando o chão sob os charcos. Quem nunca cai é o cego? Senti uma mão que me prendia, me virei. Era a moça, aquela. Ela falou e eu perdi a noção do mundo. Vão-me crer, agora que sabem de minhas falsificações? Por quem jurarei, se mesmo com Deus perdi parentesco? Seja, se duvide. Mas eu ouvi, sim, ouvi sem ler nos lábios. Escutei a doce voz daquela mulher, sua fala me vestindo todo o meu espanto:
Fique. Fique... senhor padre!
Mia Couto, in Estórias abensonhadas

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