Escrevo
como Deus: direito mas sem pauta. Quem me ler que desentorte as
palavras. Alinhada só a morte. O resto tem as duas margens da
dúvida. Como eu, feito de raças cruzadas. Meu pai, português,
cabelos e olhos loiros. Minha mãe era negra, retintinha. Nasci,
assim, com pouco tom na pele, muita cor na alma.
Falo
de Deus com respeito mas sem crença. Em menino, não entrei em
igreja nem sequer para banho de batismo. Culpa de meu pai. Reza,
dizia ele, só serve para estragar calças. Em sua suspeita a igreja
devia ser lugar pouco saudável.
— Pois
mal se entra nela, dois passos dados e já se cai de joelhos!?
Na
escola, o padre me ponteirava: esse deve ser filho das chuvas. Não
comparece em catequese, nem há doutrina que se lhe conheça. E
aconselhava os restantes miúdos a me guardar afastamento:
— Fruto
estragado deve sair do saco.
O
conselho era seguido. Me evitavam. Hoje sei que não era por
obediência ao padre. Eu estava só por razão de minha raça. Como
escrito de Deus que a chuva manchara. Sim, o professor tinha razão:
eu era filho da chuva.
E
é em chuva que estou lembrando minha vida. Sempre e sempre começo
no estrondo que sacudiu a minha infância. A bomba chegou num livro
postal, rebentou como rasgão no mundo. Não houve sangue senão em
mim. Escorriam-me quentes fios pelo pescoço. Limpei-me no rosto a
procurar a fonte desse sangue. Me custou a descobrir: aquilo me
brotava era de dentro, por via das orelhas.
No
alvoroço nem me notaram. Havia gritos, chamas, meus irmãos. Dias
depois, me queixei dos zumbidos: só então eles viram que eu deixara
de escutar. Meus ouvidos tinham morrido.
Minha
mãe deitou culpas no meu velho. Ele andava metido era com o fogo,
tudo por mania de sua bondade. Saímos dali como de um lugar
amaldiçoado, para além do mundo que me cabia. Meu pai temia que
chegassem mais rebentamentos, guerras da política dos tempos.
Desde
então perdi motivo para festejar a vida. Os outros jogavam a
cabra-cega. sombras de sons, rascunhos sonoros. Com a idade, porém,
o caso se foi agravando e, depois, até as paredes tinham mais
ouvidos.
Me
custou o convencimento de minha deficiência. Eu estava como aquele
coxo que acredita que o mundo é que está desnivelado.
— Ai
não é você que está surdo? Então, é o mundo inteiro que ficou
mudo?
Ninguém
me garantia. Só o silêncio. Nem posso explicar o que é esse poço
vazio, esse labirinto de nadas. Me fui enchendo de angústias, só e
sozinho. Um dia me soltei, desesperado:
— Pai:
me traga uma moça.
Pedia
quase sem voz. Meu pai ainda tentou brincalhar mas vendo o fundo de
minha tristeza me segurou a mão.
— Queres
uma para noivar?
Li
em seus lábios, fingi não entender. Ele baixou os olhos,
embaraçado. A moça que eu queria existia?
— Eu
apenas quero ouvir alguém, pai.
Eu
tinha tocado o fundo daquele homem. Meu pai chamou os indunas, falou
com os régulos, prometeu dinheiros. Durante dias se procurou por
atalhos, aldeias afora. Ainda hoje não entendo como se guiavam nessa
busca, nem sabendo o retrato da desejada mulher. Até que, cansados
de procurar, os mensageiros regressaram.
— Encontramos
todas variedades de mulher. Mas essa, a que ele procura, nem
avistamos.
Até
que apresentaram em nossa casa uma jovem muito bela. Ela, contudo,
era muda. Meu pai recusou, sabendo de meu pedido. Mais que sentir eu
queria escutar a voz da carícia. Mandavam já a rapariga de volta
quando eu coincidei por ali. Chamei a moça e ela, a medo, se
aproximou. Eu lhe confiei meu desejo. Meu pai querendo interrupção,
conhecedor da impossível voz da moça. Mas sem coragem de me revelar
a invalidez dela. Eu toquei as mãos da visitante e lhe pedi:
— Só
quero que me diga: em que lugar eu posso tocar o chilreio da água?
E
a jovem me soprou segredos. Em verdade, eu hoje sei que de sua
garganta não saiu audível palavra. Mas no momento eu me deleitei
com a miragem de sua voz. Meu pai olhava, surpreso, como meu rosto
mudava. Eu desabrotava, inflorescendo. Milagre, neste mundo, é não
acontecerem mais milagres?
Foi
ordenado à moça que ocupasse o quartinho das traseiras e ali
despendesse a noite. No tumulto de meu peito não houve sono que
poisasse. Manhã seguinte, minha mãe me chamou e em gesto se
explicou:
— Essa
moça lha mandamos embora.
— Embora?
— Ela
é escura, mais que preta. Veja você: mulato, quase branco. Não
podemos fazer a raça andar para trás.
Meu
pai ainda tentou aguar a fervura: que ela era aleijada da garganta,
nem som de vogal a miúda rabiscava. Mas já eu tomara decisão de um
outro destino. Que fiz? Me fingi padre. Foi só roubar batina e cruz.
Depois, me internei na floresta, passei as imediações do longe,
cheguei à última dobra do horizonte.
Não
havia em nenhum mapa mais remoto lugarinho. Se chamava Vila Nenhuma.
Ali refiz com esmero uma já existente paroquiazinha. Sendo o acaso
que ali antes estivera um outro missionário, homem bondoso, que
recheou de gente suas missas. E recoincidência: como eu, também ele
era surdo. De modo que o povo dali acreditava que surdez era
obrigação para ser creditado missionário. Agora, recordando o que
fiz eu mesmo digo: o demônio deve ter muito má memória. Pois
tantas coisas se fazem que não lembram ao diabo.
Me
fazendo passar por sacerdote eu arranjava maneira de viver à custa
dos alheios cuidados. Me cuidavam, me entregavam sustento. Eu
inventava rezas que, as pobres gentes, se dificultavam em decorar.
Pois de cada vez eu as pronunciava diferente. Confusos, os crentes
nem por isso perdiam convicção. Quem sabe fosse minha dedicação
em tudo que, antes, me ignorava. Enfermeiro, fui. Professor, me
estreei. Conselheiro, me intentei. Em tudo, enfim, ocupei a bondade.
Quem sabe, por troca desses serviços, sempre tive igreja cheia. Os
camponeses, nos infalíveis domingos, se confessavam. Eles, em si,
graves. Só eu roubava o sagrado da cerimônia. Me sentava no
confessionário, escuro como o umbigo da tartaruga. Um por um, os
crentes se ajoelhavam do lado de fora e, aos berros, confessavam seus
pecados. Daquela maneira, todos conheciam as intimidades de todos.
Assim fora com o anterior padre, assim seguia comigo.
Ontem,
choveu tanto que as casinhotas à volta estremeceram, precárias. O
povo veio procurar refúgio na igreja. Nunca em nenhuma missa eu
tivera tanta gente. Foi então que, entre os camponeses encharcados,
vi chegar a moça, a mesma que meu pai encomendara para meu consolo.
O tempo trabalhara seu rosto, seu corpo. Tudo em benefício da
beleza. Ela me dedicou os mesmos olhos que me haviam tonteado na
varanda da adolescência. E se retirou a procurar quentura da
lareira. Me pareceu ver que falava com os outros, se entendendo,
combinando falagens. Chamei o sacristão e lhe dei ordem:
— Aquela
mulher, aquela. Veja se ela fala.
Meu
ajudante nem entendeu à primeira. Lá foi, acercando-se dela. Me fez
sinal que sim, a moça tinha falas visíveis. Aquilo me fulminou,
fósforo lançado em cratera de vulcão. Me veio à mente toda a
minha vida, em despedaços, faz conta uma bomba me estilhaçasse a
memória. Subi ao altar, fiz sinal de silêncio às dezenas que ali
se abrigavam. Sei ver o silêncio, sei ler quando ele chega. Vejo
pelos olhos das pessoas. Eu sabia, naquele momento: só a chuva se
escutava, timbilando o telhado da igrejinha. Então, lhes falei o que
agora estou escrevendo, o teor da minha mentira, minhas falsas
vestes, meu falso credo. Me confessava em aberta voz, como eles antes
haviam feito. Despi a batina, dei as despedidas e saí por entre
olhos espantados.
Lá
fora, como adivinhara, chovia. Minha cabeça imagirava, o tanto que
chovia nunca me dera conta. O céu ameaçava inundação? Dei passos
de bêbado, procurando o chão sob os charcos. Quem nunca cai é o
cego? Senti uma mão que me prendia, me virei. Era a moça, aquela.
Ela falou e eu perdi a noção do mundo. Vão-me crer, agora que
sabem de minhas falsificações? Por quem jurarei, se mesmo com Deus
perdi parentesco? Seja, se duvide. Mas eu ouvi, sim, ouvi sem ler nos
lábios. Escutei a doce voz daquela mulher, sua fala me vestindo todo
o meu espanto:
— Fique.
Fique... senhor padre!
Mia
Couto, in Estórias abensonhadas
Nenhum comentário:
Postar um comentário