domingo, 3 de fevereiro de 2019

O homem que precisava nascer

No primeiro dia de aula, quando a professora se dirigiu a ele, perguntando o nome, sentiu a classe esperando, olho na resposta.
A língua travou.
A professora achou que era desconsideração: “O nome, menino!”.
Sob pressão, ele piorava.
Ficou mudo, aterrorizado. Ela ergueu a régua de madeira. O nome. Mas ela sabia o nome, todos sabiam, todos se conheciam. Por que teria de repetir? Se as pessoas sabem, por que é preciso ficar dizendo? Que diferença faz?
Ele não entendia o próprio medo, o que o levava a se recolher numa casca. Não gostava disso, no fundo da casca era escuro, sem saídas. Sofria.
Parecia tão fácil. Era só dizer o nome. Na classe, alguns até se orgulhavam, diziam o nome e olhavam em torno, recebendo a admiração, como se fossem aplausos.
Então, por que aquilo se passava com ele? Qual a razão? O que o amarrava?
Ah, se a gente soubesse as coisas que estão dentro! Com quem poderia conversar sobre o assunto?
Crianças não falavam de problemas com ninguém.
Crianças não tinham problemas.
Crianças cresciam, brincavam, estudavam, obedeciam, iam à igreja, temiam a Deus, aos pais, aos professores, temiam os cachorros de rua, os trilhos dos trens (em um dia remoto, um menino fora morto por uma locomotiva), a formicida Tatu.
O sapateiro vizinho tinha se suicidado com formicida, veneno para formigas, e a mãe o levara para ver, apontando para o morto de olhos esbugalhados: “Era um descontrolado, irresponsável, olha no que deu”.
A régua desceu. Se não der o nome hoje, não vai ter nome. Nunca terá. Sem-nome. Assim vão te chamar.
O sem-nome sentou-se, furioso.
Não era um sem-nome.
Todos iriam ver que tinha nome, só não conseguia dizer. E por que não dizia?
Uma noite, na aula suplementar de inglês, ele se apaixonou pela moreninha de olhos puxados. Ela o incentivou. Ele queria aprender inglês para entender melhor os diálogos dos filmes, as legendas eram ruins. Não perdia sessão, via o mesmo filme cinco vezes. No cinema, era ele e a tela. Ele e os personagens. Um dia, o filme A Rosa Púrpura do Cairo mostrou o outro lado da realidade. Os personagens podiam sair da tela e vir até ele. Aquela gente fabulosa podia ser sua amiga.
Mas aquilo não era vida real, descobriu.
Nas aulas, a moreninha incentivava.
E ele, paralisado. Morto de desejo e amor. Querendo estar ao lado dela, pegar em suas mãos, como faziam os outros que namoravam nas ruas silenciosas. Não sabendo como agir, não conhecendo o timing da sedução, ele demorou.
E ela se distanciou.
Ninguém é obrigado a esperar por indecisões.
Uma noite, no cinema, ele ouviu uma das amigas da moreninha dizer: “Acham que ela ia namorar o mudo? Nunca soube o que ele pensava! Ele nunca assumiu nada”.
Será que ela não sabia o que ele pensava? Não estava em seus olhos, no rosto febril, ansioso?
Ele pensou nisso. Era um mudo que falava. Paradoxo.
Assim, cresceu e viveu.
Não se pode dizer que viveu.
Existiu tentando fazer coisas em que não precisasse falar, contar de si, revelar o que tinha por dentro.
Sem saber que assim é impossível. É preciso se exprimir, convencer, dizer, dar nome às coisas. Aos sentimentos, às emoções. Dessa maneira, perdeu, sempre perdeu. Sabendo que não tinha direito de fazer outras pessoas viverem dentro desse seu mundo particular. Feria as pessoas, dilacerava.
Ele se julgou muitas vezes um homem imaginado.
Não existia.
Era uma fantasia. Homem virtual, incapaz de trazer felicidade, dar segurança, bem-estar, entender questões do coração, da alma, da mente.
Sofre quem ama uma pedra.
Incapaz de ser, ele não era.
O coração, apesar da ânsia de viver, da inquietação, parecia oco. Não era.
Quem era ele?
Uma pedra, um homem ou nunca tinha nascido?
Ansiava por nascer, ser vivo.
Ignácio de Loyola Brandão, in Cadeiras proibidas

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