quarta-feira, 27 de fevereiro de 2019

O escritor e sua obra

Quando eu era mais jovem do que sou agora, achava que era relativamente simples escrever livros, e mesmo livros de boa qualidade. Eu achava que não era necessário nada além de colecionar um bom acervo de palavras da literatura clássica, encontrar algum tema pelo qual se tenha algum apreço e então investir-se da postura de um calmo amanuense e acrescentar uma folha escrita atrás da outra até se chegar a um livro. E todos ficariam contentes.
Não se trata de uma experiência insignificante, para alguém que escolheu a tarefa de escrever livros como a coisa mais importante da sua vida, descobrir que o livro é uma trapaça e que um livro jamais poderá ser um bom livro a não ser que o fato de ser um livro seja algo secundário. O livro é uma ilusão. Um indivíduo que escreve livros não escreve livros.
A gente deve conhecer tanto o espírito quanto o estilo da nossa língua materna nas diversas fases de sua literatura, além de ser capaz de ler fluentemente em algumas das principais línguas de cultura da nossa época e, se possível, ser razoavelmente capaz de escrever nestas mesmas línguas. De fato, estes são requisitos mínimos de formação para alguém a quem se exige um conhecimento preciso das palavras e das ideias, já que estas são a matéria-prima da sua arte, são a sua madeira e a sua argila.
Gramáticos e professores defendem amiúde nos jornais a importância de os escritores dominarem a ortografia. Trata-se de uma verdade incontestável. Os escritores deveriam não apenas dominar a ortografia, mas sim dominar pelo menos três ou quatro ortografias do seu idioma materno. Não é mais do que natural que um corredor profissional possua três pares de tênis. Porém, não se deve esquecer jamais que mesmo uma pessoa de pés descalços consegue ir mais longe do que alguém com três pares de tênis.
Amiúde, alguns energúmenos erguem sua voz para afirmar que o escritor deve ser nacional e não internacional. Quanto a isso, não resta qualquer dúvida, pois é um fato consumado que todos os bons escritores são tanto nacionais quanto internacionais a um só tempo.
O ser humano é – e, em especial, atualmente – pelo menos tão internacional quanto as aves. Um bom livro que é escrito na China também é escrito para a Islândia. Os idiomas são meramente recipientes diferentes para pensamentos, ideias e ideais que são atualmente mais internacionais do que em qualquer outro momento da história da humanidade.
Ninguém consegue se tornar um escritor razoável em nossa época, ou em qualquer outra, salvo se se esforçar em aprender o que deve ser aprendido no decorrer de uma vida breve visando fortalecer o espírito, não importa se este aprendizado venha de Berlim, de Londres, de Nova Iorque, de Moscou ou de Reiquiavique. O mundo é um só e o homem existe no mundo.
Quanto mais o autor se torna bitolado e faz profissão de fé do isolamento e do ódio à humanidade, tanto mais distante estará de ser um representante de seu tempo ou de qualquer tempo. Ele deve se deixar inundar pela vida do mundo inteiro, do século inteiro, caso pretenda infundir vida à sua obra.
Em geral, temos pouquíssima ideia disso quando começamos a escrever livros. Porém, quando menos se espera, nos damos conta de que o livro é mera ilusão, e de que a missão do escritor é arcar com o carma do seu século.
O vocabulário de um autor maduro não consiste de paráfrases cuidadosamente colhidas nos clássicos. Sua linguagem é, sim, o resultado de um sério conflito interior, sendo um caso perdido tentar explicar aos outros a natureza deste conflito.
Desconfio que os autores maduros têm em comum o fato de ver a forma como devem coadunar seus pensamentos e o seu mundo em palavras, a cada novo livro, como um problema eternamente insolúvel. Às vezes – provavelmente na maioria das vezes – o autor resolve esta questão dizendo aquilo que gostaria de dizer.
Por detrás de uma única oração podem estar várias noites de vigília, toda a batalha do escritor, a expressão de todas as forças de que ele foi capaz de lançar mão. E, no entanto, a frase sai-lhe torta. Porém, também pode ocorrer, e quando menos se espera, o escritor dar com um novo tom, ainda que apenas com três palavras, mais ou menos, um tom que é tão poderoso, tão robusto e tão sútil ao mesmo tempo que todas as vozes […] Uma frase curta que talvez encerre o segredo de uma vida inteira, de um século inteiro, de um mundo inteiro:
O crux ave spes unica” (“Salve a cruz, nossa única esperança”);
To be or not to be: that is the question” (“Ser ou não ser, eis a questão”);
Deyr fé” (“O gado morre” [verso inicial das estrofes 76 e 77 do poema medieval islandês Hávamál (“O Cantar do Altíssimo”): “Deyr fé, /deyja frændur, / deyr sjálfur ið sama. / En orðstír / deyr aldregi / hveim er sér góðan getur. // Deyr fé, / deyja frændur, / deyrsjálfur ið sama. / Eg veit einn / að aldrei deyr: / dómur um dauðn hvern”. (“Morre o gado / morrem os parentes / morre a gente mesmo. / Já a reputação / não morre jamais / de quem boa a tem. // Morre o gado, / morrem os parentes, / morre a gente mesmo. / Mas de algo sei / que não morre jamais: / o bom nome do morto”);
Upp upp mín sál” (“Ao alto, ao alto, minh’alma” [do verso inicial da invocação do livro Passíusalmar (“Salmos da Paixão”) do poeta islandês Hallgrímur Pétursson (1614-74): “Upp, upp mín sál og allt mitt geð, / upp mitt hjarta og rómur með, / hugur og tunga hjálpi til, / herrans pínu ég minnast vil“ (“Ao alto, ao alto, minh’alma e toda a minha mente, / ao alto, meu coração e minha voz candente, / que a mente e a língua possam me ajudar, / pois a paixão do Senhor pretendo lembrar“);
Ung var ég gefin Njáli” (“Jovem, minha mão foi concedida a Njáll” [do capítulo 129 da Brennu-Njáls saga (“Saga de Njáll, o Queimado”), saga de islandeses anônima do século XII: “Eg var ung gefin Njáli og hefi eg því heitið honum að eitt skyldi ganga yfir okkur bæði” (“Jovem, minha mão foi concedida a Njáll, a quem jurei que o mesmo destino seria partilhado por nós ambos”.).

Poucos jovens atenderiam ao chamado da literatura se soubessem o que lhes aguarda. Eu, pelo menos, não o teria feito. Na vida do escritor criativo não há dia santo nem de descanso, não há paz nem tranquilidade, e a recompensa é ínfima. Mesmo com tudo isso, o escritor não conta nem com uma mínima migalha de garantia de que irá conseguir, no lapso da sua vida, realizar algo que chegue perto de ser bem feito, o que dirá algo para além disso. Cem jovens escritores começam suas carreiras com um talento semelhante, com uma formação semelhante, sendo, porém, totalmente casual qual deles irá criar uma obra que possa ser considerada razoável. Sempre me parece algo absolutamente circunstancial quando alguém consegue compor nem que seja uma única frase bem escrita.
O que mais chama a atenção, porém, talvez seja o fato de que mesmo o mais corriqueiro dos simplórios é capaz de pensar e de dizer do nada coisas que os maiores escritores e gênios não foram capazes nem de dizer nem de pensar, apesar de terem sacrificado toda a sua vida a isso.
Halldór Laxness, escritor islandês, ganhador do prêmio Nobel de Literatura

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