quinta-feira, 28 de fevereiro de 2019

O entusiasmo como forma de amor

Existem indivíduos junto aos quais a vida se reveste em formas de pureza e limpidez dificilmente imagináveis por aqueles que são presas das contradições e do caos. Passar por conflitos interiores, consumir-se num drama íntimo, sofrer um destino colocado sob o signo do irremediável: eis uma vida da qual toda a claridade é expulsa. Aqueles cuja existência desenvolve-se sem solavancos nem obstáculos alcançam um estado de paz e contentamento, em que o mundo aparece luminoso e cativante. Não é o entusiasmo este estado que inunda um mundo de brilho feito de alegrias e atrativos? O entusiasmo permite a descoberta de uma forma particular do amor e revela uma maneira nova de se abandonar ao mundo. O amor tem tantas feições, tantos desvios, tantos aspectos que é difícil isolar seu cerne ou sua forma essencial. É central, para todo erotismo, identificar a manifestação original do amor, a maneira primordial através da qual ele se realiza. Fala-se de amor entre os sexos, de amor à divindade, pela arte ou pela natureza; fala-se também do entusiasmo como forma de amor, etc. Qual é a manifestação característica da qual todas as outras dependem, e digo mais, derivam? Os teólogos sustentam que sua forma primordial é o amor Dei: os outros não seriam mais do que pálidos reflexos. Certos panteístas com tendências estetizantes optam pela natureza, e os estetas puros, pela arte. Para os adeptos da biologia, é a própria sexualidade, sem afetividade; para certos metafísicos, enfim, o sentimento de identidade universal. Apesar do exposto, ninguém provará que a forma de amor por ele defendida é verdadeiramente constitutiva do homem, pois, na escala da história, esta forma terá variado tanto que ninguém mais saberá determinar o seu caráter específico. Penso, quanto a mim, que sua forma essencial é o amor entre o homem e a mulher, que, longe de se reduzir à sexualidade pura, implica todo um conjunto de estados afetivos, cuja riqueza se deixa facilmente compreender. Quem já suicidou por Deus, pela natureza ou pela arte? - realidades abstratas demais para que sejam amadas com intensidade. O amor é tanto mais intenso quanto mais é ligado ao individual, ao concreto, ao único; ama-se uma mulher devido àquilo que a diferencia no mundo, devido à sua singularidade: nos instantes de amor extremo, nada poderia substituí-la. Todas as outras formas de amor, ainda que elas tendam a se tornar autônomas, participam deste amor central. Considera-se o entusiasmo independente da esfera de Eros, mas suas raízes mergulham na própria substância do amor, apesar de seu poder de libertação. Toda natureza entusiasta cobre uma receptividade cósmica, universal, uma capacidade de tudo assimilar, de se orientar em todas as direções, e de se engajar em tudo com uma vitalidade transbordante, pelo único desejo de realização e paixão de agir. O entusiasta não conhece nem critérios, nem perspectivas, ou cálculo, mas somente o abandono, o suplício e a abnegação. A alegria da realização, a embriaguez da eficácia são o que há de essencial neste tipo humano, para quem a vida é um élan que leva a uma altitude em que as forças de destruição perdem todo o seu vigor. Todos nós temos momentos de entusiasmo, mas raros demais para nos definir. Eu falo aqui de um entusiasmo à toda prova: que não conhece derrotas, pois não faz caso do objeto, mas goza da iniciativa e da atividade como tal; quem se lança numa ação, não por ter meditado seu sentido ou utilidade, mas porque não pode fazer de outro jeito. Sem ser a eles totalmente indiferente, o sucesso ou a falha jamais estimulam ou desencorajam o entusiasmo: ele será a última pessoa a acreditar na falha. A vida é muito menos medíocre e fragmentária na sua essência do que se pensa: não é por esta razão que nós somente nos rebaixamos, perdemos a vivacidade de nossos impulsos e nos impomos formas, nos esclerosando às custas da produtividade e do dinamismo interior? A perda da fluidez vital destrói nossa receptividade e nossa capacidade de esposar generosamente a vida. Somente o entusiasta permanece vivo até a velhice: os outros, se já não veem ao mundo natimortos - como a maior parte dos homens -, morrem prematuramente. Quão raros, os verdadeiros entusiastas! Poderíamos imaginar um mundo em que todos fossem apaixonados por tudo? Seria mais sedutor que a própria imagem do paraíso, pois o excesso de sublime e generosidade ultrapassaria qualquer visão do Éden. A capacidade do entusiasta de renascer constantemente coloca-o para além das tentações demoníacas, do mundo do vazio e do suplício da agonia. Sua vida ignora o trágico, pois o entusiasmo constitui a única forma de existência que é inteiramente opaca ao sentimento da morte. Mesmo na graça - esta forma tão próxima do entusiasmo - o desconhecimento, a indiferença orgânica e a ignorância irracional da morte têm menos força. Entra, na graça, muito charme melancólico - charme que o entusiasmo de todo ignora. Minha admiração sem limites pelos entusiastas vem de minha impotência em compreender sua existência num mundo em que a morte, o vazio, a tristeza e o desespero compõem um sinistro cortejo. Que existam pessoas inaptas ao desespero - eis o que perturba e impressiona. Como se faz que o entusiasta seja indiferente ao objeto? Como ele pode ser animado somente pela plenitude e pelo excesso? E qual é esta estranha e paradoxal realização através da qual o amor chega ao entusiasmo? Pois quanto mais o amor tem de intensidade, mais ele é individualizado. Aqueles que amam de uma grande paixão não saberiam amar várias mulheres de uma só vez: quanto mais a paixão tem força, tanto mais seu objeto se impõe. Tentemos então imaginar uma paixão desprovida de objeto; figuremo-nos um homem sem uma mulher em que concentrar seu amor: o que restaria, senão uma plenitude de amor? Não existem homens devotados a grandes potencialidades amorosas, mas que jamais amaram deste amor primordial, original? O entusiasmo: um amor sem objeto individualizado. No lugar de se orientar por um outro, as virtualidades amorosas derramam-se em manifestações generosas, numa forma de receptividade universal.
O entusiasmo é, com efeito, um produto superior do Eros, em que o amor não se desperdiça no culto recíproco dos sexos, mas faz do entusiasta um ser desinteressado, puro e inacessível. De todas as formas do amor, o entusiasmo é a mais isenta de sexualidade, mais ainda que o amor místico, o qual não pode se livrar do simbolismo sexual. O entusiasmo também protege da inquietude e da confusão que fazem da sexualidade uma característica do elemento trágico do homem. O entusiasta é uma pessoa eminentemente não problemática. Ele pode compreender bastantes coisas, mas não as incertezas dolorosas nem a sensibilidade caótica do espírito torturado. Os espíritos problemáticos não podem resolver nada, pois não amam nada. Procuremos, neles, esta capacidade de abandono, este paradoxo do amor como estado puro, esta renovação permanente e total que se abre a tudo a cada instante, esta irracionalidade inocente. O mito bíblico do pecado do conhecimento é o mais profundo que a humanidade jamais imaginou. A euforia dos entusiastas mantém-se, precisamente, no fato de que eles ignoram a tragédia do conhecimento. Por que não dizê-lo? O conhecimento confunde-se com as trevas. Eu renunciaria de bom grado a todos os problemas insolúveis em troca de uma doce e inconsciente inocência. O espírito não eleva: ele aniquila. No entusiasmo - assim como na graça ou na magia - o espírito não se opõe antinomicamente à vida. O segredo da felicidade reside nesta indivisão inicial, que mantém uma unidade inatacável, uma convergência orgânica. O entusiasta ignora a dualidade - este veneno. Ordinariamente, a vida somente permanece fecunda pelo preço de tensões e antinomias, de tudo o que vem do combate. O entusiasmo excede este combate, no que diz respeito a ele mesmo, por meio de um salto isento do elemento trágico e de um amor isento de sexualidade.
Emil Cioran, in Nos cumes do desespero

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