terça-feira, 5 de fevereiro de 2019

O aprendizado

Li no jornal: “Aprenda a escrever, inscreva-se no nosso programa intensivo. Aprendizado individual. Curso A montanha mágica.”
Consultei a agenda que guardo na bolsa. Estava lá o curso A montanha mágica.
Fiz todos esses cursos, A montanha mágica, Machado de Assis, Malba Tahan, Maquiavel, Marcel Proust, Malinowski, para citar apenas aqueles que começavam com M. Os professores, todos eles, começavam o programa falando sobre o título do curso. D’A montanha mágica lembro-me apenas que era um livro de Thomas Mann e que em alemão era Der Zauberberg. No curso Machado de Assis, o professor ficou uma semana falando nesse escritor. Só lembro que era mulato e casado com uma portuguesa. Do curso Malba Tahan, decorei o nome completo do autor, Ali Yezid Ibn-Abul Izz-Eddin Ibn-Salin Hank Malba Tahan, que foi usado como pseudônimo pelo escritor brasileiro Júlio César de Mello e Souza. Ah, sim, o Malba Tahan era persa e viveu em Bagdá. Do Maquiavel sei apenas que escreveu um livro intitulado O Príncipe. Quanto ao Marcel Proust, o professor mandou os alunos lerem somente no fim do curso. E desse Malinowski eu não me lembro de nada, acho que era russo, não sei se está vivo ou morto. Mas acho que esses caras todos já estão mortos.
Os cursos eram caros, o mais curto durava seis meses, as aulas eram diárias. Todos davam diplomas. Tenho vinte diplomas e não consigo escrever um romance. Romance? Não consigo escrever nem mesmo um conto.
Enquanto isso, a minha vizinha acaba de publicar o seu terceiro livro. Sei que ela paga pela edição, eu também pagaria se conseguisse escrever alguma coisa.
Odeio a minha vizinha. É mais jovem do que eu, bonita, é alta, tem uma porção de namorados. Pensei em arranjar uma espécie de gigolô, dizem que existem muitos nesta cidade, mas fico com vergonha. Esqueci-me de dizer que sou uma mulher pequenina com cabeça grande. A altura eu aumento com o sapato de salto alto, mas a cabeça não há jeito de diminuir. Consultei os melhores cirurgiões da cidade e todos disseram ser impossível diminuir o diâmetro do crânio.
Acho que ainda não disse o nome da minha vizinha: Clara. A tez dela não é clara, deve ter sangue negro. Eu sou loura e tenho olhos azuis, mas sou muito sardenta. Fui ao médico. Ele fez um exame histopatológico das máculas hipocrômicas ― tenho tudo aqui anotado ― e concluiu que sofro de uma atrofia da epiderme, além de uma leve inflamação perivascular na derme superior. Não tenho a menor ideia do significado desse palavrório, mas creio que ele quis dizer que as sardas não tinham solução, igual à dimensão do crânio. Eu evitava olhar o meu rosto no espelho.
Os suplementos literários dos jornais noticiavam com espalhafato o último livro da Clara ― o nome dela, literário ou verdadeiro, era Clara Bela ―, intitulado Desejos secretos, que seria lançado ainda naquele ano. Além de ter uma patota que ela seduzia oferecendo jantares suntuosos com vinhos e patês franceses, Clara Bela tinha dinheiro, pagava para que escrevessem resenhas dos seus livros. E cada vez mais aumentava o rancor que eu sentia por ela.
Certa ocasião, eu estava vigiando da janela, como sempre faço, a casa da minha inimiga e vi que ela saía acompanhada, toda elegante, devia ir a alguma festa. Pouco depois, saíram as suas duas empregadas. Então, tive uma brilhante ideia. Sorrateiramente fui até o andar térreo da casa de Clara Bela, arrombei o vidro da janela e entrei na sua sala. Eu levava comigo uma lata grande com líquido inflamável usado em isqueiros. Andei pela casa e achei a biblioteca, com as paredes cobertas de estantes repletas de livros. Sobre a mesa, ao lado do computador, uma resma de papel onde se podia ler, na folha da frente, Desejos secretos, de Clara Bela. Umedeci os papéis, os livros, os tapetes da sala e, finalmente, depois de achar o computador portátil, coloquei-o ao lado do computador de mesa, empilhei todos os disquetes e pen drives, encharquei tudo com o combustível e acendi com um fósforo. Um clarão eclodiu sobre a mesa, como se um sol rutilante tivesse surgido ali.
Enquanto caminhava para a janela do andar térreo por onde havia penetrado na casa, fui criando fogueiras por todos os lados. De volta à minha janela, jubilosa, com alegria na alma e no coração, contemplei a casa de Clara Bela se incendiando, cintilante, uma coisa linda. Os Desejos secretos estavam agora mais do que ocultos, tinham virado cinzas.
Ao ir para o meu quarto, passei na frente de um espelho. As minhas sardas tinham desaparecido e a minha cabeça estava menor. Deus existe.
Rubem Fonseca, in Amálgama

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