sábado, 2 de fevereiro de 2019

Não mais ser homem

Estou a cada vez mais certo de que o homem é um animal infeliz, abandonado no mundo, condenado a buscar uma modalidade própria de vida, tal qual a natureza jamais conheceu. Sua pretensa liberdade faz com que ele sofra mais do que qualquer outra forma de vida cativa da natureza. Nada surpreendente, por consequência, que o homem chegue a sentir inveja, às vezes, de uma planta ou uma flor. Para querer viver como um vegetal, crescer enraizado, desabrochando e depois fenecendo sob o sol na mais perfeita inconsciência, querer participar da fecundidade da terra, ser uma expressão anônima do curso da vida, deve-se estar desesperado com o sentido da humanidade. Por que eu não trocaria minha existência pela de um vegetal? Sei o que significa ser homem, ter ideais e viver na história - o quê tenho a esperar destas realidades? Ser homem, eis uma coisa seguramente capital! uma coisa trágica, pois o homem vive numa ordem da existência radicalmente nova, muito mais complexa, e dramática, do que a da natureza. À medida que se distancia da condição de homem, a existência perde sua intensidade dramática. O homem tende constantemente a assumir o monopólio do drama e do sofrimento; por isto a salvação representa para ele um problema tão ardente e insolúvel. Não posso experimentar o orgulho de ser homem, pois vivi este fenômeno até as últimas raízes. Somente aqueles que não o viveram intensamente podem experimentá-lo, pois eles ainda apenas tendem a tornar-se homens. Seu encantamento é absolutamente natural: compreende-se bem o fato de que aqueles que mal passaram do estágio animal ou vegetal aspirem à condição humana. Mas todos os que sabem o que esta condição significa procuram tornar-se qualquer outra coisa que não seja humana. Se eu pudesse, tomaria a cada dia uma forma diferente de vida animal ou vegetal - eu seria sucessivamente todas as espécies de flores: rosa, espinheiro, erva daninha, árvore tropical de galhos torcidos, alga marinha balançada pelas ondas, ou vegetação das montanhas à mercê dos ventos; ou então, seria pássaro de melodioso canto, ou ainda, predador de grito estridente, migratório ou sedentário, animal silvestre ou doméstico. Eu adoraria viver todas essas variedades num frenesi selvagem e inconsciente, percorrer toda a esfera da natureza, transformar-me com graça inocente, sem pose, à imagem de um processo natural. Como, então, ousaria aventurar-me em ninhos e grutas, desertos montanhosos e marinhos, colinas e planícies! Somente esta fuga cósmica, vivida segundo o arabesco das formas vitais e o pitoresco das plantas, saberia acordar em mim a vontade de me tornar de novo humano. Pois se a diferença do animal para o homem consiste em que o primeiro não poderia ser nada além de animal, enquanto o homem pode ser não-homem, ou seja, outra coisa diferente dele mesmo - bem, eu sou um não-homem.
Emil Cioran, in Nos cumes do desespero

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