sábado, 2 de fevereiro de 2019

Lições de autoficção

Ouvi de uma aluna, mulher plácida e silenciosa, uma história que nunca esqueci. Uma história antiga, dos anos 1980, mas que, pelo que guarda de indecifrável, permanecia viva. Um dia, de repente e sem nenhuma explicação, um dos irmãos de minha aluna desapareceu. Saiu de casa para comprar um jornal e nunca mais voltou. A família o procurou em delegacias, hospitais, asilos psiquiátricos, necrotérios. Apegando-se ao consolo de um ponto final, a mulher do desaparecido declarou-se, enfim, “viúva”.
Dois anos depois, ela recebe pelo correio uma caixa. Abre-a e encontra uma coleção dos objetos mais pessoais do marido. A carteira de identidade, talões de cheques, os óculos, um amuleto, até o cachimbo. Os objetos lhe voltam em silêncio, sem nenhuma explicação. “Meu irmão só quis nos dizer que continuava vivo”, minha aluna concluiu. “Não se acidentou, não enlouqueceu. Não estava morto, só decidiu ser outra pessoa.”
Lembrei-me de Noite do oráculo, o romance de Paul Auster, que traz uma história parecida. O bem-sucedido Nick Bowen volta com a mulher, Eva, para seu duplex no West Village. Prepara-se para deitar, quando lembra que precisa levar uma carta à caixa de correio. Não existe carta alguma. Na rua, Bowen caminha sem direção. De repente, a cabeça de uma gárgula se solta do alto de um prédio e cai bem diante dele. Mais um passo, e estaria morto. Ainda sem saber o que faz, o personagem de Auster pega um táxi. Sem saber por quê, pede: “Para o aeroporto”. No balcão de passagens, sem nenhum motivo, compra um bilhete para Kansas City. Só de ida. Empurrado por uma força que desconhece, começa a desaparecer.
Recordo, ainda, de Laura Brown, a personagem de Michael Cunningham, interpretada por Julianne Moore em As horas, o filme homônimo de Stephen Daldry. Leva uma vida feliz, tem um marido amoroso e um lindo filho, mas precisa fugir. Vai para o Canadá e se emprega como bibliotecária. De que foge? Não sabe dizer. Só muitos anos depois, quando recebe a notícia da morte de seu filho, agora um artista famoso, retorna a Nova York.
Eu mesmo tive (ou tenho) um tio, Mário, que um dia, sem deixar nenhuma pista, desapareceu também. Minha família fez o que pôde para encontrá-lo. Não chegamos a nada. Tornou-se um desaparecido. Não são vítimas de raptos, de sequestros ou de acidentes. Não são vítimas, mas autores – de uma nova e repentina vida. Se eu viesse a encontrar meu tio, provavelmente ele não saberia dizer por que fez o que fez. Simplesmente fez – e eu teria de aceitar isso.
Uma célebre frase de Paul Auster – “Escrever não é mais uma questão de liberdade, mas de sobrevivência” – sintetiza a experiência desses personagens. Não desaparecem por isso ou por aquilo; simplesmente precisam sumir. Com seu ato sem sentido, rompem as barreiras entre a realidade e a ficção. Pensei neles todo o tempo enquanto lia “Contratempo”, o conto que encerra O tempo envelhece depressa – novo livro de Antonio Tabucchi (Cosac Naify, tradução de Nilson Moulin). Sugerindo que o desaparecimento antecede o ato de desaparecer, o personagem de Tabucchi não tem um nome. Também não planeja sua fuga, simplesmente foge.
Por que essas fugas imprevistas nos chocam? Não sei se a palavra correta é “fuga”; talvez seja “autoria”. De repente, alguém abandona o papel de personagem e se transforma em um autor. Autor não de um livro, autor de si. O personagem de Tabucchi faz uma viagem à ilha de Creta. Durante o voo, folheia uma revista. A chamada é sugestiva: “As grandes imagens de nosso tempo”. Entre fotografias célebres, que observa com alguma aversão, o desconhecido encontra uma foto que desconhecia. De alguma forma: espelha-se. Ela mostra uma laje de pedra, parte de uma casa em Hiroshima, no Japão, sobre a qual se desenha a sombra do corpo liquefeito de um homem. Ele morreu (literalmente: desapareceu) com a explosão atômica de agosto de 1945. Como no caso do irmão de minha aluna: deixou apenas pegadas.
Ao olhar a fotografia, o personagem de Tabucchi se percebe em desacordo com o mundo. “Aquilo tinha acontecido há mais de sessenta anos, como era possível que nunca a tivesse visto?” Um homem, dizimado pelo grande cogumelo, desaparece. Dele resta só uma sombra (uma assinatura?) impressa em uma pedra. Um rastro que mal se deixa ver. Ao se dar conta da extensão de sua cegueira, o homem sem nome entra em pânico. Entende a fragilidade da visão e a precária confiança que ela inspira.
No aeroporto, aluga um carro. Leva um mapa que orienta seu caminho até o Beach Resort, onde tem uma reserva. Tenta seguir as indicações do mapa, mas, sem saber por quê, de tempos em tempos desvia-se de sua direção. “Na verdade, não pensava, dirigia e nada mais”, o narrador de Tabucchi resume. Tem que pegar uma estrada; escolhe uma vicinal. Deve avançar para o norte, mas se dirige para o sul. Age “feito alguém que obedece a uma memória antiga, ou a uma ordem recebida em sonho”. Devia estar aflito, mas não está. Quanto mais sai de si, mas leve se sente. Quanto mais sai de si, mais próximo de si está.
Chega a um mosteiro, que não consta de seu mapa. Um frade muito velho lhe dá as boas-vindas. Sem saber por que diz isto, o homem sem nome comunica: “Vim render você”. Com essas palavras imprevistas, não é só sua identidade que se rompe: o próprio relato de Antonio Tabucchi também. Um salto no tempo e estamos em 2028. Dois jovens viajam pela ilha de Creta. Entre as ruínas de um mosteiro, encontram um homem velhíssimo. “O que aconteceu desde 2008?”, ele pergunta.
Por fim, é o próprio narrador de Tabucchi que entra em cena. Tenta escrever um relato – este relato que agora Antonio Tabucchi nos oferece. Falta-lhe, porém, uma âncora em que possa se apoiar. Também está na ilha de Creta, onde busca o mesmo Beach Resort. Também se desvia de seu caminho. Confunde-se com seu personagem. Pode ser o irmão desaparecido de minha aluna. Pode ser o Nick Bowen de Auster ou a Laura Brown de Cunningham. Pode ser meu tio Mário. O que importa: ele age. Enfim age. Compara Tabucchi: “Como quando enfim compreendemos algo que sabíamos desde sempre e não queríamos saber”.
José Castello, in Sábados inquietos

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