Ouvi
de uma aluna, mulher plácida e silenciosa, uma história que nunca
esqueci. Uma história antiga, dos anos 1980, mas que, pelo que
guarda de indecifrável, permanecia viva. Um dia, de repente e sem
nenhuma explicação, um dos irmãos de minha aluna desapareceu. Saiu
de casa para comprar um jornal e nunca mais voltou. A família o
procurou em delegacias, hospitais, asilos psiquiátricos,
necrotérios. Apegando-se ao consolo de um ponto final, a mulher do
desaparecido declarou-se, enfim, “viúva”.
Dois
anos depois, ela recebe pelo correio uma caixa. Abre-a e encontra uma
coleção dos objetos mais pessoais do marido. A carteira de
identidade, talões de cheques, os óculos, um amuleto, até o
cachimbo. Os objetos lhe voltam em silêncio, sem nenhuma explicação.
“Meu irmão só quis nos dizer que continuava vivo”, minha aluna
concluiu. “Não se acidentou, não enlouqueceu. Não estava morto,
só decidiu ser outra pessoa.”
Lembrei-me
de Noite do oráculo, o romance de Paul Auster, que traz uma
história parecida. O bem-sucedido Nick Bowen volta com a mulher,
Eva, para seu duplex no West Village. Prepara-se para deitar, quando
lembra que precisa levar uma carta à caixa de correio. Não existe
carta alguma. Na rua, Bowen caminha sem direção. De repente, a
cabeça de uma gárgula se solta do alto de um prédio e cai bem
diante dele. Mais um passo, e estaria morto. Ainda sem saber o que
faz, o personagem de Auster pega um táxi. Sem saber por quê, pede:
“Para o aeroporto”. No balcão de passagens, sem nenhum motivo,
compra um bilhete para Kansas City. Só de ida. Empurrado por uma
força que desconhece, começa a desaparecer.
Recordo,
ainda, de Laura Brown, a personagem de Michael Cunningham,
interpretada por Julianne Moore em As horas, o filme homônimo
de Stephen Daldry. Leva uma vida feliz, tem um marido amoroso e um
lindo filho, mas precisa fugir. Vai para o Canadá e se emprega como
bibliotecária. De que foge? Não sabe dizer. Só muitos anos depois,
quando recebe a notícia da morte de seu filho, agora um artista
famoso, retorna a Nova York.
Eu
mesmo tive (ou tenho) um tio, Mário, que um dia, sem deixar nenhuma
pista, desapareceu também. Minha família fez o que pôde para
encontrá-lo. Não chegamos a nada. Tornou-se um desaparecido. Não
são vítimas de raptos, de sequestros ou de acidentes. Não são
vítimas, mas autores – de uma nova e repentina vida. Se eu viesse
a encontrar meu tio, provavelmente ele não saberia dizer por que fez
o que fez. Simplesmente fez – e eu teria de aceitar isso.
Uma
célebre frase de Paul Auster – “Escrever não é mais uma
questão de liberdade, mas de sobrevivência” – sintetiza a
experiência desses personagens. Não desaparecem por isso ou por
aquilo; simplesmente precisam sumir. Com seu ato sem sentido, rompem
as barreiras entre a realidade e a ficção. Pensei neles todo o
tempo enquanto lia “Contratempo”, o conto que encerra O tempo
envelhece depressa – novo livro de Antonio Tabucchi (Cosac Naify,
tradução de Nilson Moulin). Sugerindo que o desaparecimento
antecede o ato de desaparecer, o personagem de Tabucchi não tem um
nome. Também não planeja sua fuga, simplesmente foge.
Por
que essas fugas imprevistas nos chocam? Não sei se a palavra correta
é “fuga”; talvez seja “autoria”. De repente, alguém
abandona o papel de personagem e se transforma em um autor. Autor não
de um livro, autor de si. O personagem de Tabucchi faz uma viagem à
ilha de Creta. Durante o voo, folheia uma revista. A chamada é
sugestiva: “As grandes imagens de nosso tempo”. Entre fotografias
célebres, que observa com alguma aversão, o desconhecido encontra
uma foto que desconhecia. De alguma forma: espelha-se. Ela mostra uma
laje de pedra, parte de uma casa em Hiroshima, no Japão, sobre a
qual se desenha a sombra do corpo liquefeito de um homem. Ele morreu
(literalmente: desapareceu) com a explosão atômica de agosto de
1945. Como no caso do irmão de minha aluna: deixou apenas pegadas.
Ao
olhar a fotografia, o personagem de Tabucchi se percebe em desacordo
com o mundo. “Aquilo tinha acontecido há mais de sessenta anos,
como era possível que nunca a tivesse visto?” Um homem, dizimado
pelo grande cogumelo, desaparece. Dele resta só uma sombra (uma
assinatura?) impressa em uma pedra. Um rastro que mal se deixa ver.
Ao se dar conta da extensão de sua cegueira, o homem sem nome entra
em pânico. Entende a fragilidade da visão e a precária confiança
que ela inspira.
No
aeroporto, aluga um carro. Leva um mapa que orienta seu caminho até
o Beach Resort, onde tem uma reserva. Tenta seguir as indicações do
mapa, mas, sem saber por quê, de tempos em tempos desvia-se de sua
direção. “Na verdade, não pensava, dirigia e nada mais”, o
narrador de Tabucchi resume. Tem que pegar uma estrada; escolhe uma
vicinal. Deve avançar para o norte, mas se dirige para o sul. Age
“feito alguém que obedece a uma memória antiga, ou a uma ordem
recebida em sonho”. Devia estar aflito, mas não está. Quanto mais
sai de si, mas leve se sente. Quanto mais sai de si, mais próximo de
si está.
Chega
a um mosteiro, que não consta de seu mapa. Um frade muito velho lhe
dá as boas-vindas. Sem saber por que diz isto, o homem sem nome
comunica: “Vim render você”. Com essas palavras imprevistas, não
é só sua identidade que se rompe: o próprio relato de Antonio
Tabucchi também. Um salto no tempo e estamos em 2028. Dois jovens
viajam pela ilha de Creta. Entre as ruínas de um mosteiro, encontram
um homem velhíssimo. “O que aconteceu desde 2008?”, ele
pergunta.
Por
fim, é o próprio narrador de Tabucchi que entra em cena. Tenta
escrever um relato – este relato que agora Antonio Tabucchi nos
oferece. Falta-lhe, porém, uma âncora em que possa se apoiar.
Também está na ilha de Creta, onde busca o mesmo Beach Resort.
Também se desvia de seu caminho. Confunde-se com seu personagem.
Pode ser o irmão desaparecido de minha aluna. Pode ser o Nick Bowen
de Auster ou a Laura Brown de Cunningham. Pode ser meu tio Mário. O
que importa: ele age. Enfim age. Compara Tabucchi: “Como quando
enfim compreendemos algo que sabíamos desde sempre e não queríamos
saber”.
José
Castello, in Sábados inquietos
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