Quando
voltava de Poços de Caldas para São Paulo, dei uma parada em Águas
da Prata e acabei fazendo uma breve viagem ao passado.
Não
fazia frio, como naquele inverno paulista de 1961, quando fiquei
impressionado com as serras que cercam a estância hidromineral. Era
uma paisagem exótica demais para um menino de Manaus. O rio que
atravessava a pequena cidade, paralelo aos trilhos da estrada de
ferro — o mesmo rio que agora vejo com outro olhar —, era, para
mim, um córrego, ou um simples igarapé. Mas as serras, sim, eram
colossais, em contraste com as colinas suaves de Manaus. O Planalto
das Guianas e o Pico da Neblina ainda estavam longe do meu horizonte
de curumim.
Mal
desembarcamos em Águas da Prata, perguntei à minha mãe o que íamos
fazer ali.
“Vamos
beber água e respirar o ar da serra”, ela disse.
“Viajamos
cinco horas de avião e mais quatro de ônibus para beber água?”
“É
uma água milagrosa, rica em magnésio e bicarbonato. Vai fazer bem
para o teu fígado. Tu sabes o que o médico disse.”
Dr.
Almada… Grande desalmado, isso sim. Depois de apalpar minha
barriga, disse que meu fígado era desproporcional à minha idade;
aconselhou que passássemos uma semana naquela estância
hidromineral.
Águas
da Prata: um nome gracioso de uma cidadezinha povoada de pessoas
tristes e bem mais velhas que minha mãe, então uma jovem de trinta
e poucos anos. Eram seres de um século de idade, que faziam fila
para beber água em copos de plástico.
O
hotel São Paulo era vistoso; os quartos, espaçosos, mobiliados com
móveis antigos. Havia um salão enorme, iluminado por lustres de
cristal pendurados no teto; num dos cantos do salão um piano preto
prometia acordes nas noites silenciosas que, na minha lembrança, são
fúnebres. Ao andar pelo hotel, vi um pátio interno com uma fonte: a
boca aberta de um anjo de pedra que expelia água milagrosa. Quando
catei umas moedas no fundo da fonte, levei uma bronca de minha mãe:
“Tu sabes que as moedas são trocadas por promessas?”.
Tanto
não sabia que troquei o dinheiro por um sorvete de morango, uma
raridade na Manaus daquela época.
Passamos
sete dias bebendo água e comendo pratos inesquecíveis, verdadeiras
iguarias, só comparadas ao requinte da culinária hospitalar. Íamos
de manhã cedo até uma fonte no outro lado da estação de trem, eu
era a única criança na fila dos bebedores, a água que eu engolia
em jejum tinha gosto de purgante. Não pensava no meu fígado de
gigante Piaimã, e sim na crueldade do dr. Almada, que me privara das
brincadeiras nas ruas e praças da cidade distante.
Nas
férias de julho todo mundo empinava papagaio, as tranças no ar eram
batalhas comoventes. Os navios estrangeiros, que em julho e agosto
atracavam no Manaus Harbour, me fascinavam porque pareciam cidades
flutuantes que nos traziam novidades do outro lado da Terra. Meu avô,
que me levava para conhecê-los, dizia: “Esse aí veio de Gênova,
aquele ali de Marselha, amanhã vai chegar um cruzeiro do Caribe”.
E,
enquanto engolia o purgante prescrito por Almada, sonhava com os
transatlânticos e com os balneários de Manaus. Para tentar
antecipar nosso regresso ao Norte, bebia água além da conta, dizia
à minha mãe que o meu fígado havia diminuído, já era tempo de
voltarmos à nossa cidade. Mas ela era uma idólatra do dr. Almada,
cumpriu à risca a orientação desse desmancha-prazeres, e desde
então eu o odiei como um político deve odiar seus pares: um ódio
figadal, como se diz.
Na
manhã do dia 14 de julho, véspera da nossa volta para São Paulo,
eu e minha mãe ouvimos uns gritos. Era um homem que corria como um
louco, tentando alcançar uma charrete. Careca, e só de cueca no
frio matinal, ele corria e gritava: “Volta aqui, mulher! Volta
aqui…”.
Não
havia mulher na charrete, apenas o cocheiro, que chicoteava o lombo
do animal para se livrar do perseguidor. Foi uma cena que divertiu os
hóspedes do hotel São Paulo. Mas nem todos: uma senhora se benzeu e
tapou o rosto para não ver o sujeito quase nu.
Disse
à minha mãe que aquele homem lembrava o Bombalá, um dos doidos
mais públicos e notáveis de Manaus. Careca, descalço e só de
calção, Bombalá marchava à frente da banda da polícia militar e
era aplaudido pela multidão que agitava bandeirinhas do Brasil. Não
gritava por uma mulher, mas era o mais patriota dos nossos maestros,
pois regia uma banda no dia Sete de Setembro.
Minha
mãe concordou: aquele homem de cueca devia ser doido mesmo. Depois
ela acrescentou: “Mas andam dizendo por aí que até nosso
presidente é doido, filho”.
“Jânio
é doido?”, perguntei.
“Dizem…”
“É
doido porque é presidente? Ou é presidente porque é doido?”
Minha
mãe me olhou com severidade:
“Cuida
do teu fígado, isso sim. Vamos já beber água. É o nosso último
dia neste paraíso.”
Milton
Hatoum, in Um solitário à espreita
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