terça-feira, 26 de fevereiro de 2019

Capítulo das águas

Quando voltava de Poços de Caldas para São Paulo, dei uma parada em Águas da Prata e acabei fazendo uma breve viagem ao passado.
Não fazia frio, como naquele inverno paulista de 1961, quando fiquei impressionado com as serras que cercam a estância hidromineral. Era uma paisagem exótica demais para um menino de Manaus. O rio que atravessava a pequena cidade, paralelo aos trilhos da estrada de ferro — o mesmo rio que agora vejo com outro olhar —, era, para mim, um córrego, ou um simples igarapé. Mas as serras, sim, eram colossais, em contraste com as colinas suaves de Manaus. O Planalto das Guianas e o Pico da Neblina ainda estavam longe do meu horizonte de curumim.
Mal desembarcamos em Águas da Prata, perguntei à minha mãe o que íamos fazer ali.
Vamos beber água e respirar o ar da serra”, ela disse.
Viajamos cinco horas de avião e mais quatro de ônibus para beber água?”
É uma água milagrosa, rica em magnésio e bicarbonato. Vai fazer bem para o teu fígado. Tu sabes o que o médico disse.”
Dr. Almada… Grande desalmado, isso sim. Depois de apalpar minha barriga, disse que meu fígado era desproporcional à minha idade; aconselhou que passássemos uma semana naquela estância hidromineral.
Águas da Prata: um nome gracioso de uma cidadezinha povoada de pessoas tristes e bem mais velhas que minha mãe, então uma jovem de trinta e poucos anos. Eram seres de um século de idade, que faziam fila para beber água em copos de plástico.
O hotel São Paulo era vistoso; os quartos, espaçosos, mobiliados com móveis antigos. Havia um salão enorme, iluminado por lustres de cristal pendurados no teto; num dos cantos do salão um piano preto prometia acordes nas noites silenciosas que, na minha lembrança, são fúnebres. Ao andar pelo hotel, vi um pátio interno com uma fonte: a boca aberta de um anjo de pedra que expelia água milagrosa. Quando catei umas moedas no fundo da fonte, levei uma bronca de minha mãe: “Tu sabes que as moedas são trocadas por promessas?”.
Tanto não sabia que troquei o dinheiro por um sorvete de morango, uma raridade na Manaus daquela época.
Passamos sete dias bebendo água e comendo pratos inesquecíveis, verdadeiras iguarias, só comparadas ao requinte da culinária hospitalar. Íamos de manhã cedo até uma fonte no outro lado da estação de trem, eu era a única criança na fila dos bebedores, a água que eu engolia em jejum tinha gosto de purgante. Não pensava no meu fígado de gigante Piaimã, e sim na crueldade do dr. Almada, que me privara das brincadeiras nas ruas e praças da cidade distante.
Nas férias de julho todo mundo empinava papagaio, as tranças no ar eram batalhas comoventes. Os navios estrangeiros, que em julho e agosto atracavam no Manaus Harbour, me fascinavam porque pareciam cidades flutuantes que nos traziam novidades do outro lado da Terra. Meu avô, que me levava para conhecê-los, dizia: “Esse aí veio de Gênova, aquele ali de Marselha, amanhã vai chegar um cruzeiro do Caribe”.
E, enquanto engolia o purgante prescrito por Almada, sonhava com os transatlânticos e com os balneários de Manaus. Para tentar antecipar nosso regresso ao Norte, bebia água além da conta, dizia à minha mãe que o meu fígado havia diminuído, já era tempo de voltarmos à nossa cidade. Mas ela era uma idólatra do dr. Almada, cumpriu à risca a orientação desse desmancha-prazeres, e desde então eu o odiei como um político deve odiar seus pares: um ódio figadal, como se diz.
Na manhã do dia 14 de julho, véspera da nossa volta para São Paulo, eu e minha mãe ouvimos uns gritos. Era um homem que corria como um louco, tentando alcançar uma charrete. Careca, e só de cueca no frio matinal, ele corria e gritava: “Volta aqui, mulher! Volta aqui…”.
Não havia mulher na charrete, apenas o cocheiro, que chicoteava o lombo do animal para se livrar do perseguidor. Foi uma cena que divertiu os hóspedes do hotel São Paulo. Mas nem todos: uma senhora se benzeu e tapou o rosto para não ver o sujeito quase nu.
Disse à minha mãe que aquele homem lembrava o Bombalá, um dos doidos mais públicos e notáveis de Manaus. Careca, descalço e só de calção, Bombalá marchava à frente da banda da polícia militar e era aplaudido pela multidão que agitava bandeirinhas do Brasil. Não gritava por uma mulher, mas era o mais patriota dos nossos maestros, pois regia uma banda no dia Sete de Setembro.
Minha mãe concordou: aquele homem de cueca devia ser doido mesmo. Depois ela acrescentou: “Mas andam dizendo por aí que até nosso presidente é doido, filho”.
Jânio é doido?”, perguntei.
Dizem…”
É doido porque é presidente? Ou é presidente porque é doido?”
Minha mãe me olhou com severidade:
Cuida do teu fígado, isso sim. Vamos já beber água. É o nosso último dia neste paraíso.”
Milton Hatoum, in Um solitário à espreita

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