Na
Balada Literária, de Marcelino Freire, em São Paulo, divido uma
mesa com o doce filósofo Antonio Cícero. Na plateia, a presença
nobre de Lygia Fagundes Telles. A bengala em que se apoia não lhe
tira o porte de nadadora. A idade não lhe afeta a beleza.
Falamos
sobre o medo, sentimento sem o qual ninguém escreve. Lygia toma
coragem e pede a palavra. Recorda uma viagem que fez a Praga, na
companhia de Clarice Lispector. Sempre teve medo de avião. No
primeiro aviso de turbulência, apertou com força a mão de Clarice.
“Não tenha medo”, ouviu daquela voz cheia de erres. “Minha
cartomante me garantiu que vou morrer na cama.”
Lygia
não teve dúvida: retornaria ao Brasil semanas depois de Clarice,
mas antecipou a volta, só para ter certeza de que chegaria inteira.
Rememora o episódio com a sabedoria de que reconhece no medo não um
obstáculo, mas um combustível. O que é a ausência de medo senão
a ignorância?
Em
minha viagem a São Paulo, atravessei os céus agarrado a O
albatroz e o chinês, coletânea de ensaios de Antonio Candido
(editora Ouro Sobre Azul). Para enfrentar o avião, agarro-me a um
livro. Mergulhado na leitura, viajo no livro, e não no avião. As
turbulências mais graves vêm da escrita.
Detenho-me
em “Crítica e memória” (p. 33), ensaio que me ajuda a pensar o
que faço. A toda hora – na Balada Literária foi assim – me
apresentam como “crítico literário”. A denominação lustra
minha vaidade, mas me incomoda. No ensaio de Antonio Candido,
encontro enfim uma pista para entender o que sou.
Candido
é um mestre. Mestres não são professores, que ensinam, transmitem,
disciplinam. Ao contrário, eles nos levam a encontrar nosso próprio
lugar. Em vez de espelhos, são lanternas. É assim que sinto
Candido: como alguém que me aponta uma direção enquanto diz:
“Coragem, vá em frente. Seu lugar não é aqui”.
Fala
Candido dos “arrabaldes do trabalho crítico”. A crítica, em
geral, se define pela análise objetiva e pela investigação
rigorosa. Em sua periferia, porém, uma segunda experiência,
considerada menor, se desenrola. Ele escreve: “Dos livros que
lemos, alguns se incorporam mais do que outros à nossa experiência,
muitas vezes de maneira desproporcional em relação à sua
qualidade”.
Trata
de um lugar mais impressionista e difuso, no qual os argumentos
perdem importância e o rigor se torna um vício. Lugar vago, mas
intenso, em que nos apaixonamos por um livro e não por outro. Nessa
perspectiva íntima, um livro menor – Os três mosqueteiros
– pode ser mais importante que outro maior – Os Lusíadas.
Sugere Candido: “Um capítulo vivo da periferia da crítica seria o
que registrasse com o devido senso de oportunidade a história da
nossa experiência afetiva com as obras”.
A
leitura afetiva – que chamo de leitura sentimental – assinala meu
lugar. Eis onde estou: na periferia. Com palavras firmes (de pai?),
Candido me empurra, delicadamente, para meu destino. Não que me
expulse – ninguém pode ser expulso de onde não está. Nem que me
diminua ou menospreze. Eu tomo suas palavras assim: como uma leitura
amorosa do outro.
Reconhece
meu mestre – já ouso chamá-lo assim! – que os críticos
literários muitas vezes caem em “certo purismo metodológico”.
Primeiro, descartam o autor (e a “falácia biográfica”) com o
argumento de que a literatura está na obra. Não satisfeitos,
recusam “a espontaneidade das nossas emoções”, como se ler com
emoção fosse ceder a uma segunda falácia: a autobiográfica.
Em
resumo: eis o que faço! Nas horas de desânimo, apego-me aos poetas,
acostumados a rastejar na sujeira e a aceitar a contaminação. O
próprio Candido escreve seu ensaio para tratar de um dos maiores
deles: o francês François Villon (1431-1463), poeta, alcoólatra,
ladrão, assassino.
Empurra-me
de volta a “Carta aos puros”, poema que Vinicius de Moraes
escreveu nos anos 1950, mas que ainda hoje devia estar exposto nos
quadros de avisos acadêmicos e nas redações de cultura como uma
advertência contra o medo.
Sim:
o medo de que Lygia falava. O mesmo medo contra o qual basta
contrapor algumas palavras – que sejam as palavras da cartomante de
Clarice. Vinicius, Villon: poetas periféricos. É o que, sem ser
poeta, também faço: leio da periferia. Pratico, sim, as duas
“falácias”: valorizo a biografia dos escritores e não disfarço
o quanto minha precária autobiografia interfere no que leio. Sempre
escrevi assim, mas agora um mestre me autoriza: ninguém menos que
Antonio Candido. Se é que ele poderá aceitar o que faço aqui com
suas palavras.
Mostra
Candido o quanto o imenso esforço da crítica em busca da precisão
histórica na leitura da obra de François Villon, no fim das contas,
não funciona. No caso de Villon, o esforço para a precisão é
sempre inútil, até porque a imprecisão está no centro de sua
poética. “Não se sabe se é mesmo dele parte do que lhe foi
atribuído”, Candido reconhece. Na esperança de domar o indomável,
Ezra Pound escreveu: “Em Villon, não é a arte que conta, mas a
substância”. Palavra imprecisa, vaga, substância se refere a um
ideal, não a um homem. O homem, François Villon, lhe escapa.
Para
Candido, por fim, Villon “faz empalidecer o esforço contemporâneo
de valorizar demais a palavra”. Esforço da crítica, no qual eu me
incluo. Mas distingo: os livros só me interessam se infeccionam e
afetam (“adoecem”) o homem que sou. Mais sofro das palavras do
que as domino. Também Clarice sofria da fala de sua cartomante – e
isso, pelo menos naquela travessia do Atlântico, a salvou. Sem
nenhum rigor, sem nenhuma prova, sem nada, ela se apegou às palavras
mágicas. Agarrou-se a uma ficção e isso foi o bastante. Só assim,
abraçando uma fantasia pessoal, Clarice e Lygia fizeram sua
travessia.
Só
assim suportaram o voo. A bordo de um avião ou a bordo de uma
ficção? Na periferia da linguagem, ali onde as palavras se deixam
contaminar pelo mundo. Na borda da fantasia, na periferia dos ideais.
Ali para onde Antonio Candido, sem me conhecer, delicadamente me
remete. Que outra coisa é a crítica senão uma maneira de dizer:
“Vá, seja o que você é”?
José
Castello, in Sábados inquietos
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