sábado, 9 de fevereiro de 2019

Candido na periferia

Na Balada Literária, de Marcelino Freire, em São Paulo, divido uma mesa com o doce filósofo Antonio Cícero. Na plateia, a presença nobre de Lygia Fagundes Telles. A bengala em que se apoia não lhe tira o porte de nadadora. A idade não lhe afeta a beleza.
Falamos sobre o medo, sentimento sem o qual ninguém escreve. Lygia toma coragem e pede a palavra. Recorda uma viagem que fez a Praga, na companhia de Clarice Lispector. Sempre teve medo de avião. No primeiro aviso de turbulência, apertou com força a mão de Clarice. “Não tenha medo”, ouviu daquela voz cheia de erres. “Minha cartomante me garantiu que vou morrer na cama.”
Lygia não teve dúvida: retornaria ao Brasil semanas depois de Clarice, mas antecipou a volta, só para ter certeza de que chegaria inteira. Rememora o episódio com a sabedoria de que reconhece no medo não um obstáculo, mas um combustível. O que é a ausência de medo senão a ignorância?
Em minha viagem a São Paulo, atravessei os céus agarrado a O albatroz e o chinês, coletânea de ensaios de Antonio Candido (editora Ouro Sobre Azul). Para enfrentar o avião, agarro-me a um livro. Mergulhado na leitura, viajo no livro, e não no avião. As turbulências mais graves vêm da escrita.
Detenho-me em “Crítica e memória” (p. 33), ensaio que me ajuda a pensar o que faço. A toda hora – na Balada Literária foi assim – me apresentam como “crítico literário”. A denominação lustra minha vaidade, mas me incomoda. No ensaio de Antonio Candido, encontro enfim uma pista para entender o que sou.
Candido é um mestre. Mestres não são professores, que ensinam, transmitem, disciplinam. Ao contrário, eles nos levam a encontrar nosso próprio lugar. Em vez de espelhos, são lanternas. É assim que sinto Candido: como alguém que me aponta uma direção enquanto diz: “Coragem, vá em frente. Seu lugar não é aqui”.
Fala Candido dos “arrabaldes do trabalho crítico”. A crítica, em geral, se define pela análise objetiva e pela investigação rigorosa. Em sua periferia, porém, uma segunda experiência, considerada menor, se desenrola. Ele escreve: “Dos livros que lemos, alguns se incorporam mais do que outros à nossa experiência, muitas vezes de maneira desproporcional em relação à sua qualidade”.
Trata de um lugar mais impressionista e difuso, no qual os argumentos perdem importância e o rigor se torna um vício. Lugar vago, mas intenso, em que nos apaixonamos por um livro e não por outro. Nessa perspectiva íntima, um livro menor – Os três mosqueteiros – pode ser mais importante que outro maior – Os Lusíadas. Sugere Candido: “Um capítulo vivo da periferia da crítica seria o que registrasse com o devido senso de oportunidade a história da nossa experiência afetiva com as obras”.
A leitura afetiva – que chamo de leitura sentimental – assinala meu lugar. Eis onde estou: na periferia. Com palavras firmes (de pai?), Candido me empurra, delicadamente, para meu destino. Não que me expulse – ninguém pode ser expulso de onde não está. Nem que me diminua ou menospreze. Eu tomo suas palavras assim: como uma leitura amorosa do outro.
Reconhece meu mestre – já ouso chamá-lo assim! – que os críticos literários muitas vezes caem em “certo purismo metodológico”. Primeiro, descartam o autor (e a “falácia biográfica”) com o argumento de que a literatura está na obra. Não satisfeitos, recusam “a espontaneidade das nossas emoções”, como se ler com emoção fosse ceder a uma segunda falácia: a autobiográfica.
Em resumo: eis o que faço! Nas horas de desânimo, apego-me aos poetas, acostumados a rastejar na sujeira e a aceitar a contaminação. O próprio Candido escreve seu ensaio para tratar de um dos maiores deles: o francês François Villon (1431-1463), poeta, alcoólatra, ladrão, assassino.
Empurra-me de volta a “Carta aos puros”, poema que Vinicius de Moraes escreveu nos anos 1950, mas que ainda hoje devia estar exposto nos quadros de avisos acadêmicos e nas redações de cultura como uma advertência contra o medo.
Sim: o medo de que Lygia falava. O mesmo medo contra o qual basta contrapor algumas palavras – que sejam as palavras da cartomante de Clarice. Vinicius, Villon: poetas periféricos. É o que, sem ser poeta, também faço: leio da periferia. Pratico, sim, as duas “falácias”: valorizo a biografia dos escritores e não disfarço o quanto minha precária autobiografia interfere no que leio. Sempre escrevi assim, mas agora um mestre me autoriza: ninguém menos que Antonio Candido. Se é que ele poderá aceitar o que faço aqui com suas palavras.
Mostra Candido o quanto o imenso esforço da crítica em busca da precisão histórica na leitura da obra de François Villon, no fim das contas, não funciona. No caso de Villon, o esforço para a precisão é sempre inútil, até porque a imprecisão está no centro de sua poética. “Não se sabe se é mesmo dele parte do que lhe foi atribuído”, Candido reconhece. Na esperança de domar o indomável, Ezra Pound escreveu: “Em Villon, não é a arte que conta, mas a substância”. Palavra imprecisa, vaga, substância se refere a um ideal, não a um homem. O homem, François Villon, lhe escapa.
Para Candido, por fim, Villon “faz empalidecer o esforço contemporâneo de valorizar demais a palavra”. Esforço da crítica, no qual eu me incluo. Mas distingo: os livros só me interessam se infeccionam e afetam (“adoecem”) o homem que sou. Mais sofro das palavras do que as domino. Também Clarice sofria da fala de sua cartomante – e isso, pelo menos naquela travessia do Atlântico, a salvou. Sem nenhum rigor, sem nenhuma prova, sem nada, ela se apegou às palavras mágicas. Agarrou-se a uma ficção e isso foi o bastante. Só assim, abraçando uma fantasia pessoal, Clarice e Lygia fizeram sua travessia.
Só assim suportaram o voo. A bordo de um avião ou a bordo de uma ficção? Na periferia da linguagem, ali onde as palavras se deixam contaminar pelo mundo. Na borda da fantasia, na periferia dos ideais. Ali para onde Antonio Candido, sem me conhecer, delicadamente me remete. Que outra coisa é a crítica senão uma maneira de dizer: “Vá, seja o que você é”?
José Castello, in Sábados inquietos

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