quarta-feira, 16 de janeiro de 2019

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De tudo que João Guimarães Rosa escreveu, acho a estória do Miguilim a mais bonita. Miguilim era um menininho que vivia num lugar perdido do sertão, precisava andar um dia a cavalo pra se chegar no mais próximo. Mas Miguilim via um mundo embaçado e pensava que o mundo era assim. Não via o passarinho no galho da árvore nem os brotos do milho saídos do chão. Pai de Miguilim, bruto, achava que ele era burro. Desgostava. Batia. E no coração de Miguilim o ódio crescia. Mas um dia chegou um doutor montado em cavalo bonito e tratado. Estranhou que Miguilim fechasse os olhos pra ver melhor. “Esse nosso rapazinho tem a vista curta. Espera aí, Miguilim...” E o senhor tirava os óculos e punha-os em Miguilim, com todo o jeito. “Olha agora!” Miguilim olhou. “Nem não podia acreditar! Tudo era uma claridade, tudo novo e lindo e diferente, as coisas, as árvores, as caras das pessoas. Via os grãozinhos de areia, a pele da terra, as pedrinhas menores, as formiguinhas passeando no chão de uma distância. E tonteava. Aqui, ali, meu Deus, tanta coisa, tudo...” Leiam e comparem, e vejam se o Miguilim não é o João. Os dois eram míopes sem saber. O espanto do Miguilim deve ter sido o espanto do João quando pôs os óculos pela primeira vez. E os dois brincavam com os mesmos brinquedos, até os boizinhos de sabugo, brancos, vermelhos e pretos, esses pretejados no fogo do fogão de lenha... Lendo o Miguilim aprendo sobre o João.
Rubem Alves, in Do universo à jabuticaba

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