E,
uma vez, manhã, Nhô Augusto acordou sem saber por que era que ele
estava com muita vontade de ficar o dia inteiro deitado, e achando,
ao mesmo tempo, muito bom se levantar.
Então,
depois do café, saiu para a horta cheirosa, cheia de passarinhos e
de verdes, e fez uma descoberta: por que não pitava?! ... Não era
pecado... Devia ficar alegre, sempre alegre, e esse era um gosto
inocente, que ajudava a gente a se alegrar...
E
isso foi pensado muito ligeiro, porque já ele enrolava a palha, com
uma pressa medonha, como se não tivesse curtido tantos anos de
abstenção. Tirou tragadas, soltou muitas fumaças, e sentiu o corpo
se desmanchar, dando na fraqueza, mas com uma tremura gostosa, que
vinha até ao mais dentro, parecendo que a gente ia virar uma
chuvinha fina.
Não,
não era pecado!... E agora rezava até muito melhor e podia esperar
melhor, mais sem pressa, a hora da libertação.
E,
pois, foi aí por aí, dias depois, que aconteceu uma coisa até
então jamais vista, e té hoje mui lembrada pelo povinho do
Tombador.
Vindos
do norte, da fronteira velha-de-guerra, bem montados, bem enroupados,
bem apessoados, chegaram uns oito homens, que de longe se via que
eram valentões: primeiro surgiu um, dianteiro, escoteiro, que
percorreu, de ponta a ponta, o povoado, pedindo água à porta de uma
casa, pedindo pousada em outra, espiando muito para tudo e fazendo
pergunta e pergunta; depois, então, apareceram os outros, equipados
com um despropósito de armas — carabinas, novinhas quase;
garruchas, de um e de dois canos; revólveres de boas marcas; facas,
punhais, quicés de cabos esculpidos; porretes e facões, — e
transportando um excesso de breves nos pescoços.
O
bando desfilou em formação espaçada, o chefe no meio. E o chefe —
o mais forte e o mais alto de todos, com um lenço azul enrolado no
chapéu de couro, com dentes brancos limados em acume, de olhar
dominador e tosse rosnada, mas sorriso bonito e mansinho de moça —
era o homem mais afamado dos dois sertões do rio: célebre do
Jequitinhonha à Serra das Araras, da beira do Jequitaí à barra do
Verde Grande, do Rio Gavião até nos Montes Claros, de Carinhanha
até Paracatu; maior do que Antônio D ou Indalécio; o arranca-toco,
o treme-terra, o come-brasa, o pega-à-unha, o fecha-ti-eta, o
tira-prosa, o parte-ferro, o rompe-racha, o rompe-e-arrasa: Seu
Joãozinho Bem-Bem.
O
povo não se mexia, apavorado, com medo de fechar as portas, com medo
de ficar na rua, com medo de falar e de ficar calado, com medo de
existir. Mas Nhô Augusto, que vinha de vir do mato, carregando um
feixe de lenha para um homem chamado Tobias da Venda, quando soube do
que havia, jogou a carga no chão e correu ao encontro dos
recém-chegados.
Então
o bandido Flosino Capeta, um sujeito cabeça-de-canoa, que nunca se
apartava do chefe, caçoou:
— Que
suplicante mais estúrdio será esse, que vem vindo ali, feito
sombração?!
Mas
seu Joãozinho Bem-Bem fez o cavalo avançar duas passadas, e disse:
— Não
debocha, companheiro, que eu estou gostando do jeito deste homem
caminhar!
E
Flosino Capeta pasmou deveras, porque era a coisa mais custosa deste
mundo seu Joãozinho Bem-Bem se agradar de alguém ao primeiro olhar.
Mas Nhô Augusto, parecendo não ver os demais, veio direito ao
chefe, encarando-o firme e perguntando:
— O
senhor, de sua graça, é que é mesmo o seu Joãozinho Bem-Bem, pois
não é?
— P’ra
lhe servir, meu senhor.
— A
pois, se o senhor não se acanha de entrar em casa de pobre, eu lhe
convido para passar mal e se arranchar comigo, enquanto for o tempo
de querer ficar por aqui... E de armar sua rede debaixo do meu
telhado, que vai me dar muita satisfação!
— Eu
aceito sua bondade, mano velho. Agora, preciso é de ver quem é
mais, desse povinho assustado, que quer agasalhar o resto da minha
gente...
— Pois
eu gostava era que viessem todos juntos para o meu rancho...
— Não
será abuso, mano velho?
— É
não... E de coração.
— Pois
então, vamos, que Deus lhe pagará!
E
seu Joãozinho Bem-Bem, que, com o rabo-do-olho, não deixava de
vigiar tudo em volta, virou-se, rápido, para o Epifânio, que mexia
com a winchester: — Guarda a arma, companheiro, que eu já disse
que não quero essa moda de brincar de dar tiro à toa, à toa, só
por amor de espantar os moradores do lugar!...Vamos chegando! Guia a
gente, mano velho. E aí o casal de pretos, em grande susto, teve de
se afanar, num corre-corre de depenar galinhas, matar leitoa,
procurar ovos e fazer doces. E Nhô Augusto, depois de buscar ajuda
para tratar dos cavalos, andou de casa em casa, arrecadando aluá,
frutas, quitandas, fumo cheiroso, muita cachaça, e tudo o mais que
de fino houvesse, para os convidados. E os seus convidados achavam
imensa graça naquele homem, que se atarefava em servi-los, cheio de
atenções, quase de carinhos, com cujo motivo eles não topavam
atinar. Tinham armado as redes de fibra nas árvores do quintal, e
repousavam, cada qual com o complicado arsenal bem ao alcance da mão.
Então seu Joãozinho Bem-Bem contou a Nhô Augusto: estava de
passagem, com uma pequena parte do seu bando, para o sul, para o
arraial das Taquaras, na nascença do Manduri, a chamado de seu amigo
Nicolau Cardoso, atacado por um mandão fazendeiro, de injustiça. E
Flosino Capeta acrescentou: — Diz’que o tal tomou reforço, com
três tropas de serranos, mas é só a gente chegar lá, para não se
ver ninguém mais... Eles têm que “dar o beiço e cair o cacho”,
seu moço!... Mas a gente nem pode mais ter o gosto de brigar, porque
o pessoal não aparece, no falar de entrar no meio do seu Joãozinho
Bem-Bem…
Mas
seu Joãozinho Bem-Bem interrompeu o outro: — Prosa minha não
carece de contar, companheiro, que todo o mundo já sabe.
Nhô
Augusto passeava com os olhos, que nunca ninguém tinha visto tão
grandes nem tão redondos, mostrando todo o branco ao redor. Seu
Joãozinho Bem-Bem ria um riso descansado, e os outros riam também,
circundando-o, obedientes.
— A
gente não ia passar, porque eu nem sabia que aqui tinha este
comercinho... Nosso caminho era outro. Mas de uma banda do rio tinha
a maleita, e da outra está reinando bexiga da brava... E falaram
também numa soldadesca, que vem lá da Diamantina... Por isso a
gente deu tanta volta.
Os
pretos trouxeram a janta, para o meio do pátio. Era um banquete. E
quando a turma se pôs em roda, para começar a comer, o anfitrião
fez o sinal da cruz e rezou alto; e os outros o acompanharam, com o
que Nhô Augusto deu mostras de exultar.
— O
senhor, que é o dono da casa, venha comer aqui perto de mim, mano
velho... — pediu seu Joãozinho Bem-Bem. — Mas, que é que o
senhor está gostando tanto assim de apreciar? Ah, é o Tim?... Isso
é morrinha de quartel... Ele é reiúno...
Nhô
Augusto namorava o Tim Tatu-tá-te-vendo, desertor do Exército e de
três milícias estaduais, e que, por isso mesmo e sem querer,
caminhava marchando, e, para falar com alguém, se botava de sentido,
em estricta posição.
— Esta
guarda guerreira acompanha o senhor há muito tempo, seu Joãozinho
Bem-Bem?
O
chefe acertou a sujigola e tossiu, para responder: — Alguns. É
tudo gente limpa... Mocorongo eu não aceito comigo! Homem que atira
de trás do toco não me serve... Gente minha sé mata as mortes que
eu mando, e morte que eu mando é sé morte legal!
— Epa,
ferro!.., — exclamou Nhô Augusto, balançando o corpo. Seu
Joãozinho Bem-Bem continuou:
— Povo
sarado e escovado... Mas eles todos me dão trabalho... Este aqui é
baiano, fala mestre... Cabeça-chata é outro, porque eles avançam
antes da hora... Não é gente fácil...
Nem
goiano, porque não é andejo... E nem mineiro, porque eles andam
sempre com a raiva fora-de-hora, e não gostam de parar mais, quando
começam a brigar... Mas, pessoal igual ao meu, não tem!
— E
o senhor também não é mineiro, seu Joãozinho Bem-Bem?
— Isso
sim, que sou... Sou da beira do rio... Sei lá de onde é que eu
sou?!... Mas, por me lembrar, mano velho, não leve a mal o que eu
vou lhe pedir: sua janta está de primeira, está boa até de
regalo.., mas eu ando muito escandecido e meu estômago não presta
p’ra mais...
Se
for coisa de pouco incômodo, o que eu queria era que o senhor
mandasse aprontar para mim uma jacuba quente, com a rapadura bem
preta e a farinha bem fina, e com umas folhinhas de laranjada-terra
no meio... Será que pode?
— Já,
já...Vou ver.
— Deus
lhe ajude, mano velho.
Enquanto
isso, os outros devoravam, com muita esganação e lambança. E,
quando Nhô Augusto chegou com a jacuba, interpelou-o o Zeferino, que
multiplicava as sílabas, com esforço, e, como tartamudo teimoso,
jogava, a cada sílaba, a cabeça para trás: — Pois eu... eu
est-t-tou m’me-espan-t-tando é de uma c’coisa, meu senhor: é
de, neste jantar, com t-t-tantas c’comerias finas, não haver
d-d-duas delas, das mais principais!
— Que
é que está fazendo falta, amigo?
— É
o m’molho da sa-mam-baia e a so-p-p’pa da c’c’an jiquinha!
Nhô
Augusto sorriu:
— Eu
agaranto que, na hora da zoeira, tu no pinguelo não gagueja!
— Que
nada! — apoiou seu Joãozinho Bem-Bem. — Isto é cabra macho e
remacheado, que dá pulo em-cruz...
Já
Nhô Augusto, incansável, sem querer esperdiçar detalhe, apalpava
os braços do Epifânio, mulato enorme, de musculatura embatumada, de
bicipitalidade maciça. E se voltava para o Juruminho, caboclo
franzino, vivo no menor movimento, ágil até no manejo do garfo, que
em sua mão ia e vinha como agulha de coser: — Você, compadre,
está-se vendo que deve de ser um corisco de chegador!...
E
o Juruminho, gostando.
— Chego
até em porco-espinho e em tatarana-rata, e em homem de vinte braços,
com vinte foices para sarilhar!... Deito em ponta de chifre, durmo em
ponta de faca, e amanheço em riba do meu colchão!... Está aí
nosso chefe, que diga... E mais isto aqui...
E
mostrou a palma da mão direita, lanhada de cicatrizes, de pegar
punhais pelo pico, para desarmar gente em agressão.
Nhô
Augusto se levantara, excitado:
— Opa!
Oi-ai!... A gente botar você, mais você, de longe, com as
clavinas... E você outro, aí, mais este compadre de cara séria,
p’ra voltearem... E este companheirinho chegador, para chegar na
frente, e não dizer até-logo!... E depois chover sem chuva, com o
pau escrevendo e lendo, e arma-de-fogo debulhando, e homem mudo
gritando, e os do-lado-de-lá correndo e pedindo perdão!…
Mas,
aí, Nhô Augusto calou, com o peito cheio; tomou um ar de
acanhamento; suspirou e perguntou:
— Mais
galinha, um pedaço, amigo?
— ‘Tou
feito.
— E
você, seu barra?
— Agradecido...
‘Tou encalcado... ‘Tou cheio até à tampa!
Enquanto
isso, seu Joãozinho Bem-Bem, de cabeça entornada, não tirava os
olhos de cima de Nhô Augusto. E Nhô Augusto, depois de servir a
cachaça, bebeu também, dois goles, e pediu uma das papo-amarelo,
para ver:
— Não
faz conta de balas, amigo? Isto é arma que cursa longe...
— Pode
gastar as oito. Experimenta naquele pássaro ali, na pitangueira...
— Deixa
a criaçãozinha de Deus. Vou ver só se corto o galho... Se errar,
vocês não reparem, porque faz tempo que eu não puxo dedo em
gatilho...
Fez
fogo.
— Mão
mandona, mano velho. Errou o primeiro, mas acertou um em dois...
Ferrugem em bom ferro!
Mas,
nesse tento, Nhô Augusto tornou a fazer o pelo-sinal e entrou num
desânimo, que o não largou mais. Continuou, porém, a cuidar bem
dos seus hóspedes, e, como o pessoal se acomodara ali mesmo, nas
redes, ao relento, com uma fogueira acesa no meio do terreiro, ele só
foi dormir tarde da noite, quando não houve mais nem um para contar
histórias de conflitos, assaltos e duelos de exterminação.
Cedinho
na manhã seguinte, o grupo se despediu. Joãozinho Bem-Bem agradeceu
muito o agasalho, e terminou:
— O
senhor, mano velho, a modo e coisa que é assim meio diferente, mas
eu estou lhe prestando atenção, este tempo todo, e agora eu acho,
pesado e pago, que o senhor é mas é pessoa boa mesmo, por ser.
Nossos anjos-da-guarda combinaram, e isso para mim é o sinal que
serve. A pois, se precisar de alguma coisa, se tem um recado ruim
para mandar para alguém... Tiver algum inimigo alegre, por aí, é
só dizer o nome e onde mora. Tem não? Pois, ‘tá bom. Deus lhe
pague suas bondades.
— Vão
com Deus! Até à volta, vocês todos. ‘Té a volta, seu Joãozinho
Bem-Bem!
Mas,
depois de montado, o chefe ainda chamou Nhô Augusto, para dizer: —
Mano velho, o senhor gosta de brigar, e entende. Está-se vendo que
não viveu sempre aqui nesta grota, capinando roça e cortando
lenha... Não quero especular coisa de sua vida p’ra trás, nem se
está se escondendo de algum crime. Mas, comigo é que o senhor havia
de dar sorte! Quer se amadrinhar com meu povo? Quer vir junto?
— Ah,
não posso! Não me tenta, que eu não posso, seu Joãozinho
Bem-Bem...
— Pois
então, mano velho, paciência.
— Mas
nunca que eu hei de me esquecer dessa sua bizarria, meu amigo, meu
parente, seu Joãozinho Bem-Bem!
Aí,
o Juruminho, que tinha ficado mais para trás, de propósito, se
curvou para Nhô Augusto e pediu, num cochicho ligeiro, para que os
outros não escutassem:
— Amigo,
reza por uma irmãzinha que eu tenho, que sofre de doença com muitas
dores e vive na cama entrevada, lá no arraial do Urubu...
E
o bando entrou na estrada, com o Tim Tatu-tá-te-vendo puxando uma
cantiga brava, de tempo de revolução:
“O
terreiro lá de casa
não
se varre com vassoura:
varre
com ponta de sabre,
bala
de metralhadora...”
Guimarães
Rosa, in A hora
e vez de Augusto Matraga
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