domingo, 13 de janeiro de 2019

"Salvação"

Também eu soube, ao começar o retrato de S., que a minha conta de dividir (um quadro, segundo o meu modo de ver acadêmico, é também uma operação aritmética de divisão, a quarta e mais acrobática operação) estava errada. Soube-o mesmo antes de lançar na tela o primeiro traço. E, contudo, não emendei nem voltei atrás, aceitei que as biqueiras apontassem o norte quando eu me deixava arrastar para o sul, para o mar dos sargaços, para a perdição dos navios, para o encontro com o holandês voador. Mas também vi imediatamente que o modelo, desta vez, não se deixara enganar, ou estaria disposto a deixar-se enganar desde que eu me apercebesse claramente da sua disposição e aceitasse, por isso mesmo, humilhar-me. Um retrato que deveria conter certa solenidade circunstancial, aquela que não espera dos olhos mais do que um olhar, e depois a cegueira, veio a ser marcado (está sendo marcado agora mesmo) por uma prega irónica que não tracei em nenhum lugar do rosto, que talvez não esteja sequer no rosto de S., mas que dá à tela uma deformação, assim como se alguém a estivesse torcendo, simultaneamente, em dois sentidos diferentes, como fazem às imagens os espelhos irregulares ou defeituosos. Quando sozinho olho o quadro, vejo-me em criança por trás dos vidros de uma das muitas casas onde vivi, e vejo aquelas bolhas elípticas das vidraças de má qualidade que eram as dessas casas, ou aquele jeito de mamilo impúbere que o vidro às vezes toma, e para além um mundo distorcido, que fugia da vertical quando eu deslocava o olhar num sentido ou noutro da vidraça. O retrato, a tela, esticados sobre a armação, oscilam diante dos meus olhos e vão ondulando, fugindo, e sou eu quem desvia o olhar vencido e não a pintura que se abre compreendida.
Não me digo que o trabalho não está perdido, como doutras vezes o fiz para continuar a pintar anestesiado e alheio. O retrato está tão longe do fim quanto eu quiser, ou tão perto quanto eu decidir. Duas pinceladas o concluiriam, duas mil não chegarão para o tempo de que preciso. Até ontem ainda pensava que me bastariam os dias necessários para concluir o segundo retrato, e acreditava que um e outro os acabaria no mesmo dia: S. levaria o primeiro e deixaria o segundo, e este ficaria comigo, certificado de vitória que só eu conheceria, mas que seria a minha desforra contra a prega irônica que S. iria dependurar nas suas paredes. Mas hoje, precisamente porque estou sentado diante deste papel, sei que os meus trabalhos só agora começaram. Tenho dois retratos em dois cavaletes diferentes, cada um em sua sala, aberto o primeiro à naturalidade de quem entra, fechado o segundo no segredo da minha tentativa também frustrada, e estas folhas de papel que são outra tentativa, para que vou de mãos nuas, sem tintas nem pincéis, apenas com esta caligrafia, este fio negro que se enrola e desenrola, que se detém em pontos, em vírgulas, que respira dentro de pequenas clareiras brancas e logo avança sinuosa, como se percorresse o labirinto de Creta ou os intestinos de S. (Interessante: esta última comparação veio sem que eu a esperasse ou provocasse. Enquanto a primeira não passou de uma banal reminiscência clássica, a segunda, pelo insólito, dá-me algumas esperanças: na verdade, pouco significaria se eu dissesse que tento devassar o espírito, a alma, o coração, o cérebro de S.: as tripas são outra espécie de segredo.) E tal como já disse logo na primeira página, andarei de sala em sala, de cavalete em cavalete, mas sempre virei dar a esta pequena mesa, a esta luz, a esta caligrafia, a este fio que constantemente se parte e ato debaixo da caneta e que, não obstante, é a minha única possibilidade de salvação e de conhecimento.
Que ficou aí a fazer a palavra “salvação”? Nada mais retórico neste lugar e nesta circunstância, e eu detesto a retórica, embora dela faça profissão, pois todo o retrato é retórico: “Retórica: (um dos significados): Tudo aquilo de que nos servimos no discurso para produzir bom efeito no público, para persuadir os ouvintes.” Melhor está o “conhecimento”, pois desejá-lo, lutar por ele, sempre infunde algum respeito, mesmo sabendo-se quão facilmente se escorrega dessa sinceridade para um pedantismo insuportável: não têm conto as vezes que o conhecimento se entrincheira nos mais sólidos bastiões da ignorância e do desprezo do conhecimento: tudo está em usar a palavra sem reparar nela ou reparando demasiado, para que o simples entrelaçar dos sons que a repetem tome o lugar, o espaço (num simples oco explosivo da atmosfera onde a palavra se aloja e se mistura), do que deveria ser, se realmente compreendido e praticado, um trabalho que todo o mais excluiria. Ter-me-ei feito entender agora? Terei entendido eu próprio? Conhecimento é o ato de conhecer: eis a definição mais simples, e que me deve bastar, pois é necessário que eu possa simplificar tudo para seguir adiante. De conhecer, precisamente, não se tratou nunca em retratos que eu pintasse. Já ficou dito o bastante sobre a moeda falsa do meu câmbio, e mais não acrescento. Mas se desta vez não pude limitar-me a lambuzar a tela segundo as vontades e o dinheiro do modelo, se pela primeira vez comecei a pintar às escondidas um segundo retrato do mesmo modelo, e se, também, pela primeira vez, venho repetir, ou tentar, escrevendo, um retrato que pelos meios da pintura definitivamente me escapou - a razão é o conhecimento. Quando fiz o primeiro traço na tela, devia ter pousado o pincel, e com todas as desculpas de que fosse capaz para disfarçar a extravagância do gesto, acompanharia S. à porta da escada, ficaria a vê-lo descer, tranquilo, ou respirando fundo para recuperar a tranquilidade, com o contentamento maravilhado de quem escapou a grande perigo. Não teria havido segundo retrato, não teria comprado estas folhas de papel, não estaria agora a manejar tão mal as palavras, mais duras que os pincéis, mais iguais na cor do que as tintas que se recusam a secar lá dentro. Não seria este homem triplo que pela terceira vez vai tentar dizer o que antes duas vezes não pôde.
Assim foi: falhei o primeiro retrato e não me resignei. Se S. me fugia, ou eu não o alcançava e ele sabia, a solução estaria no segundo retrato, pintado na ausência dele. Foi o que tentei. O modelo passou a ser o primeiro retrato e o invisível que eu perseguia. Não poderia bastar-me a semelhança, nem sequer a sondagem psicológica ao alcance de qualquer aprendiz e que assenta em preceitos tão banais como os que dão forma ao mais naturalista e exterior dos retratos.
José Saramago, in Manual de pintura e caligrafia

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