Também
eu soube, ao começar o retrato de S., que a minha conta de dividir
(um quadro, segundo o meu modo de ver acadêmico, é também uma
operação aritmética de divisão, a quarta e mais acrobática
operação) estava errada. Soube-o mesmo antes de lançar na tela o
primeiro traço. E, contudo, não emendei nem voltei atrás, aceitei
que as biqueiras apontassem o norte quando eu me deixava arrastar
para o sul, para o mar dos sargaços, para a perdição dos navios,
para o encontro com o holandês voador. Mas também vi imediatamente
que o modelo, desta vez, não se deixara enganar, ou estaria disposto
a deixar-se enganar desde que eu me apercebesse claramente da sua
disposição e aceitasse, por isso mesmo, humilhar-me. Um retrato que
deveria conter certa solenidade circunstancial, aquela que não
espera dos olhos mais do que um olhar, e depois a cegueira, veio a
ser marcado (está sendo marcado agora mesmo) por uma prega irónica
que não tracei em nenhum lugar do rosto, que talvez não esteja
sequer no rosto de S., mas que dá à tela uma deformação, assim
como se alguém a estivesse torcendo, simultaneamente, em dois
sentidos diferentes, como fazem às imagens os espelhos irregulares
ou defeituosos. Quando sozinho olho o quadro, vejo-me em criança por
trás dos vidros de uma das muitas casas onde vivi, e vejo aquelas
bolhas elípticas das vidraças de má qualidade que eram as dessas
casas, ou aquele jeito de mamilo impúbere que o vidro às vezes
toma, e para além um mundo distorcido, que fugia da vertical quando
eu deslocava o olhar num sentido ou noutro da vidraça. O retrato, a
tela, esticados sobre a armação, oscilam diante dos meus olhos e
vão ondulando, fugindo, e sou eu quem desvia o olhar vencido e não
a pintura que se abre compreendida.
Não
me digo que o trabalho não está perdido, como doutras vezes o fiz
para continuar a pintar anestesiado e alheio. O retrato está tão
longe do fim quanto eu quiser, ou tão perto quanto eu decidir. Duas
pinceladas o concluiriam, duas mil não chegarão para o tempo de que
preciso. Até ontem ainda pensava que me bastariam os dias
necessários para concluir o segundo retrato, e acreditava que um e
outro os acabaria no mesmo dia: S. levaria o primeiro e deixaria o
segundo, e este ficaria comigo, certificado de vitória que só eu
conheceria, mas que seria a minha desforra contra a prega irônica
que S. iria dependurar nas suas paredes. Mas hoje, precisamente
porque estou sentado diante deste papel, sei que os meus trabalhos só
agora começaram. Tenho dois retratos em dois cavaletes diferentes,
cada um em sua sala, aberto o primeiro à naturalidade de quem entra,
fechado o segundo no segredo da minha tentativa também frustrada, e
estas folhas de papel que são outra tentativa, para que vou de mãos
nuas, sem tintas nem pincéis, apenas com esta caligrafia, este fio
negro que se enrola e desenrola, que se detém em pontos, em
vírgulas, que respira dentro de pequenas clareiras brancas e logo
avança sinuosa, como se percorresse o labirinto de Creta ou os
intestinos de S. (Interessante: esta última comparação veio sem
que eu a esperasse ou provocasse. Enquanto a primeira não passou de
uma banal reminiscência clássica, a segunda, pelo insólito, dá-me
algumas esperanças: na verdade, pouco significaria se eu dissesse
que tento devassar o espírito, a alma, o coração, o cérebro de
S.: as tripas são outra espécie de segredo.) E tal como já disse
logo na primeira página, andarei de sala em sala, de cavalete em
cavalete, mas sempre virei dar a esta pequena mesa, a esta luz, a
esta caligrafia, a este fio que constantemente se parte e ato debaixo
da caneta e que, não obstante, é a minha única possibilidade de
salvação e de conhecimento.
Que
ficou aí a fazer a palavra “salvação”? Nada mais retórico
neste lugar e nesta circunstância, e eu detesto a retórica, embora
dela faça profissão, pois todo o retrato é retórico: “Retórica:
(um dos significados): Tudo aquilo de que nos servimos no discurso
para produzir bom efeito no público, para persuadir os ouvintes.”
Melhor está o “conhecimento”, pois desejá-lo, lutar por ele,
sempre infunde algum respeito, mesmo sabendo-se quão facilmente se
escorrega dessa sinceridade para um pedantismo insuportável: não
têm conto as vezes que o conhecimento se entrincheira nos mais
sólidos bastiões da ignorância e do desprezo do conhecimento: tudo
está em usar a palavra sem reparar nela ou reparando demasiado, para
que o simples entrelaçar dos sons que a repetem tome o lugar, o
espaço (num simples oco explosivo da atmosfera onde a palavra se
aloja e se mistura), do que deveria ser, se realmente compreendido e
praticado, um trabalho que todo o mais excluiria. Ter-me-ei feito
entender agora? Terei entendido eu próprio? Conhecimento é o ato
de conhecer: eis a definição mais simples, e que me deve bastar,
pois é necessário que eu possa simplificar tudo para seguir
adiante. De conhecer, precisamente, não se tratou nunca em retratos
que eu pintasse. Já ficou dito o bastante sobre a moeda falsa do meu
câmbio, e mais não acrescento. Mas se desta vez não pude
limitar-me a lambuzar a tela segundo as vontades e o dinheiro do
modelo, se pela primeira vez comecei a pintar às escondidas um
segundo retrato do mesmo modelo, e se, também, pela primeira vez,
venho repetir, ou tentar, escrevendo, um retrato que pelos meios da
pintura definitivamente me escapou - a razão é o conhecimento.
Quando fiz o primeiro traço na tela, devia ter pousado o pincel, e
com todas as desculpas de que fosse capaz para disfarçar a
extravagância do gesto, acompanharia S. à porta da escada, ficaria
a vê-lo descer, tranquilo, ou respirando fundo para recuperar a
tranquilidade, com o contentamento maravilhado de quem escapou a
grande perigo. Não teria havido segundo retrato, não teria comprado
estas folhas de papel, não estaria agora a manejar tão mal as
palavras, mais duras que os pincéis, mais iguais na cor do que as
tintas que se recusam a secar lá dentro. Não seria este homem
triplo que pela terceira vez vai tentar dizer o que antes duas vezes
não pôde.
Assim
foi: falhei o primeiro retrato e não me resignei. Se S. me fugia, ou
eu não o alcançava e ele sabia, a solução estaria no segundo
retrato, pintado na ausência dele. Foi o que tentei. O modelo passou
a ser o primeiro retrato e o invisível que eu perseguia. Não
poderia bastar-me a semelhança, nem sequer a sondagem psicológica
ao alcance de qualquer aprendiz e que assenta em preceitos tão
banais como os que dão forma ao mais naturalista e exterior dos
retratos.
José
Saramago, in Manual de pintura e caligrafia
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