terça-feira, 1 de janeiro de 2019

Pequenos mundos de Valparaíso

Morei algumas semanas numa rua estreita de Valparaíso, em frente à casa de Dom Zoilo Escobar. Nossas sacadas quase se tocavam. Meu vizinho saía cedo para o balcão e praticava uma ginástica de anacoreta que revelava a harpa de suas costelas. Sempre vestido com um capote pobre ou com jaquetões surrados, meio marinho, meio arcanjo, havia se retirado faz tempo das navegações, da aduana, da marujada. Todos os dias escovava o traje de gala com perfeição meticulosa. Era uma roupa ilustre de fazenda negra que nunca, por longos anos, envergou, uma roupa que sempre guardou no armário vetusto entre seus tesouros.
Mas seu tesouro mais agudo e mais dilacerador era um violino Stradivarius, conservado zelosamente toda a vida, sem tocá-lo nem permitir que ninguém o tocasse. Dom Zoilo pensava vendê-lo em Nova Iorque, onde dariam uma fortuna pelo instrumento ilustre. Às vezes tirava-o do armário pobre e permitia que o contemplássemos com emoção religiosa. Um dia Dom Zoilo Escobar viajaria para o norte e voltaria sem violino mas carregado de anéis faustosos e com dentes de ouro que substituiriam em sua boca as falhas que o prolongado correr dos anos foi deixando.
Uma manhã não saiu à sacada para a ginástica. Nós o enterramos lá em cima, no cemitério da colina, com a roupa negra que pela primeira vez cobriu seu pequeno esqueleto de ermitão. As cordas do Stradivarius não puderam chorar-lhe a partida. Ninguém sabia tocá-lo. E, além de tudo, o violino não apareceu quando foi aberto o armário. Talvez voou até o mar ou até Nova Iorque para consumar os sonhos de Dom Zoilo.

Valparaíso é secreto, sinuoso, enovelado. A pobreza se derrama nos morros como uma cascata. Sabe-se quanto come e como veste (e também quanto não come e como não veste) a gente inumerável dos morros. A roupa secando embandeira cada casa e a proliferação incessante de pés descalços, que formam uma colmeia no barro, denuncia o amor inextinguível.
Mas perto do mar, na baixada, há casas com sacadas e janelas fechadas onde entra pouca gente. Entre elas a mansão do explorador. Bati muitas vezes seguidas com a aldraba de bronze até que me ouviram. Finalmente aproximaram-se passos leves e um rosto inquiridor entreabriu uma janelinha na porta com desconfiança, com intenção de me deixar de fora. Era a velha criada da casa, uma sombra com xale e avental que apenas sussurrava seus passos.
O explorador, muito velho também, vivia sozinho com a criada na casa espaçosa de janelas fechadas. Eu tinha vindo conhecer sua coleção de ídolos. Enchiam corredores e paredes as criaturas vermelhas, as máscaras estriadas de branco e cinza, as estátuas que reproduziam desaparecidas anatomias de deuses oceânicos, as ressequidas cabeleiras polinésias, os escudos hostis de madeira revestidos de pele de leopardo, colares de dentes ferozes, os remos de botes que cortaram talvez a espuma das águas tormentosas. Facas violentas estremeciam os muros com folhas prateadas que serpenteavam na sombra. Observei que os Deuses masculinos de madeira tinham sido censurados. Os falos estavam cuidadosamente cobertos com tangas de fazenda, a mesma fazenda que tinha servido de xale e avental à criada. Era fácil comprovar. O velho explorador se movia discretamente entre os troféus. Sala após sala, deu explicações - entre peremptórias e irônicas - de quem viveu muito e continua vivendo no rescaldo de suas imagens. Sua barbicha branca parecia a de um fetiche de Samoa. Mostrou as espingardas e as pistolas com as quais perseguiu o inimigo ou com que abateu o antiope e o tigre. Contava as aventuras sem alterar o tom de seu murmúrio. Era como se o sol entrasse, apesar das janelas fechadas, e deixasse somente um pequeno raio, uma pequena mariposa viva que revoluteasse entre os ídolos.
Ao partir, participei-lhe um projeto de viagem às Ilhas, o desejo de sair breve rumo às areias douradas. Então, depois de olhar para todos os lados, aproximou seus ralos bigodes brancos do meu ouvido e me confidenciou tremulamente: “Que ela não saiba nem que venha a saber mas eu também estou preparando uma viagem.”
Ficou assim um instante, com um dedo nos lábios, escutando a provável pisada de um tigre na selva. E logo a porta foi fechada, escura e súbita, como quando cai a noite sobre a África.
Perguntei aos vizinhos:
- Há algum excêntrico novo? Valeu a pena ter regressado a Valparaíso?
Responderam-me:
- Não temos quase nada de bom. Mas seguindo por esta rua toparás com Dom Bartolomé.
- E como vou conhecê-lo?
- Não tem como errar. Viaja sempre numa carroça.
Poucas horas depois eu comprava maçãs numa quitanda quando parou à porta um carro puxado a cavalos, e uma figura alta, desmazelada e vestida de negro desceu dele.
Vinha também comprar maçãs. Levava no ombro um papagaio totalmente verde que logo voou até mim e se empoleirou em minha cabeça sem nenhum constrangimento.
- O senhor é Dom Bartolomé?
- É a pura verdade. Chamo-me Bartolomé - e tirando uma espada longa que levava debaixo da capa passou-a para mim enquanto enchia a cesta com as maçãs e as uvas que comprou. Era uma espada antiga, longa e aguda, com cabo trabalhado por ourives famosos, um cabo que parecia uma rosa aberta.
Não o conhecia e nunca mais voltei a vê-lo. Mas acompanhei-o respeitosamente até a rua, abri em silêncio a porta de sua carruagem para que passasse com sua cesta de frutas e coloquei em suas mãos, com solenidade, o pássaro e a espada.

Pequenos mundos de Valparaíso, abandonados, sem razão e sem tempo, como caixas que ficaram no fundo de uma adega sem nunca ninguém reclamar, sem se saber de onde vieram nem se sairiam dali. Talvez que nestes domínios secretos, nestas almas de Valparaíso, ficaram guardadas para sempre a soberania perdida de uma onda, a tormenta, o sal, o mar que zumbe e estremece. O mar de cada um, ameaçador e contido: um som incomunicável, um movimento solitário que passou a ser farinha e espuma dos sonhos.
Nas vidas excêntricas que descobri me surpreendeu a unidade suprema que mostravam com o porto dilacerador. Acima, pelos morros floresce a miséria em borbotões frenéticos de alcatrão e alegria. Os guindastes, os embarcadouros, o trabalho do homem cobrem a cintura da costa com uma máscara pintada pela felicidade fugidia. Outros porém não chegaram lá em cima, pelas colinas, e nem embaixo pela faina. Guardaram em seu caixão o próprio infinito e seu fragmento de mar.
E o protegiam com as armas próprias enquanto o esquecimento se aproximava deles como a névoa.
Pablo Neruda, in Confesso que vivi

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