Morei
algumas semanas numa rua estreita de Valparaíso, em frente à casa
de Dom Zoilo Escobar. Nossas sacadas quase se tocavam. Meu vizinho
saía cedo para o balcão e praticava uma ginástica de anacoreta que
revelava a harpa de suas costelas. Sempre vestido com um capote pobre
ou com jaquetões surrados, meio marinho, meio arcanjo, havia se
retirado faz tempo das navegações, da aduana, da marujada. Todos os
dias escovava o traje de gala com perfeição meticulosa. Era uma
roupa ilustre de fazenda negra que nunca, por longos anos, envergou,
uma roupa que sempre guardou no armário vetusto entre seus tesouros.
Mas
seu tesouro mais agudo e mais dilacerador era um violino
Stradivarius, conservado zelosamente toda a vida, sem tocá-lo nem
permitir que ninguém o tocasse. Dom Zoilo pensava vendê-lo em Nova
Iorque, onde dariam uma fortuna pelo instrumento ilustre. Às vezes
tirava-o do armário pobre e permitia que o contemplássemos com
emoção religiosa. Um dia Dom Zoilo Escobar viajaria para o norte e
voltaria sem violino mas carregado de anéis faustosos e com dentes
de ouro que substituiriam em sua boca as falhas que o prolongado
correr dos anos foi deixando.
Uma
manhã não saiu à sacada para a ginástica. Nós o enterramos lá
em cima, no cemitério da colina, com a roupa negra que pela primeira
vez cobriu seu pequeno esqueleto de ermitão. As cordas do
Stradivarius não puderam chorar-lhe a partida. Ninguém sabia
tocá-lo. E, além de tudo, o violino não apareceu quando foi aberto
o armário. Talvez voou até o mar ou até Nova Iorque para consumar
os sonhos de Dom Zoilo.
Valparaíso
é secreto, sinuoso, enovelado. A pobreza se derrama nos morros como
uma cascata. Sabe-se quanto come e como veste (e também quanto não
come e como não veste) a gente inumerável dos morros. A roupa
secando embandeira cada casa e a proliferação incessante de pés
descalços, que formam uma colmeia no barro, denuncia o amor
inextinguível.
Mas
perto do mar, na baixada, há casas com sacadas e janelas fechadas
onde entra pouca gente. Entre elas a mansão do explorador. Bati
muitas vezes seguidas com a aldraba de bronze até que me ouviram.
Finalmente aproximaram-se passos leves e um rosto inquiridor
entreabriu uma janelinha na porta com desconfiança, com intenção
de me deixar de fora. Era a velha criada da casa, uma sombra com xale
e avental que apenas sussurrava seus passos.
O
explorador, muito velho também, vivia sozinho com a criada na casa
espaçosa de janelas fechadas. Eu tinha vindo conhecer sua coleção
de ídolos. Enchiam corredores e paredes as criaturas vermelhas, as
máscaras estriadas de branco e cinza, as estátuas que reproduziam
desaparecidas anatomias de deuses oceânicos, as ressequidas
cabeleiras polinésias, os escudos hostis de madeira revestidos de
pele de leopardo, colares de dentes ferozes, os remos de botes que
cortaram talvez a espuma das águas tormentosas. Facas violentas
estremeciam os muros com folhas prateadas que serpenteavam na sombra.
Observei que os Deuses masculinos de madeira tinham sido censurados.
Os falos estavam cuidadosamente cobertos com tangas de fazenda, a
mesma fazenda que tinha servido de xale e avental à criada. Era
fácil comprovar. O velho explorador se movia discretamente entre os
troféus. Sala após sala, deu explicações - entre peremptórias e
irônicas - de quem viveu muito e continua vivendo no rescaldo de
suas imagens. Sua barbicha branca parecia a de um fetiche de Samoa.
Mostrou as espingardas e as pistolas com as quais perseguiu o inimigo
ou com que abateu o antiope e o tigre. Contava as aventuras sem
alterar o tom de seu murmúrio. Era como se o sol entrasse, apesar
das janelas fechadas, e deixasse somente um pequeno raio, uma pequena
mariposa viva que revoluteasse entre os ídolos.
Ao
partir, participei-lhe um projeto de viagem às Ilhas, o desejo de
sair breve rumo às areias douradas. Então, depois de olhar para
todos os lados, aproximou seus ralos bigodes brancos do meu ouvido e
me confidenciou tremulamente: “Que ela não saiba nem que venha a
saber mas eu também estou preparando uma viagem.”
Ficou
assim um instante, com um dedo nos lábios, escutando a provável
pisada de um tigre na selva. E logo a porta foi fechada, escura e
súbita, como quando cai a noite sobre a África.
Perguntei
aos vizinhos:
-
Há algum excêntrico novo? Valeu a pena ter regressado a Valparaíso?
Responderam-me:
-
Não temos quase nada de bom. Mas seguindo por esta rua toparás com
Dom Bartolomé.
-
E como vou conhecê-lo?
-
Não tem como errar. Viaja sempre numa carroça.
Poucas
horas depois eu comprava maçãs numa quitanda quando parou à porta
um carro puxado a cavalos, e uma figura alta, desmazelada e vestida
de negro desceu dele.
Vinha
também comprar maçãs. Levava no ombro um papagaio totalmente verde
que logo voou até mim e se empoleirou em minha cabeça sem nenhum
constrangimento.
-
O senhor é Dom Bartolomé?
-
É a pura verdade. Chamo-me Bartolomé - e tirando uma espada longa
que levava debaixo da capa passou-a para mim enquanto enchia a cesta
com as maçãs e as uvas que comprou. Era uma espada antiga, longa e
aguda, com cabo trabalhado por ourives famosos, um cabo que parecia
uma rosa aberta.
Não
o conhecia e nunca mais voltei a vê-lo. Mas acompanhei-o
respeitosamente até a rua, abri em silêncio a porta de sua
carruagem para que passasse com sua cesta de frutas e coloquei em
suas mãos, com solenidade, o pássaro e a espada.
Pequenos
mundos de Valparaíso, abandonados, sem razão e sem tempo, como
caixas que ficaram no fundo de uma adega sem nunca ninguém reclamar,
sem se saber de onde vieram nem se sairiam dali. Talvez que nestes
domínios secretos, nestas almas de Valparaíso, ficaram guardadas
para sempre a soberania perdida de uma onda, a tormenta, o sal, o mar
que zumbe e estremece. O mar de cada um, ameaçador e contido: um som
incomunicável, um movimento solitário que passou a ser farinha e
espuma dos sonhos.
Nas
vidas excêntricas que descobri me surpreendeu a unidade suprema que
mostravam com o porto dilacerador. Acima, pelos morros floresce a
miséria em borbotões frenéticos de alcatrão e alegria. Os
guindastes, os embarcadouros, o trabalho do homem cobrem a cintura da
costa com uma máscara pintada pela felicidade fugidia. Outros porém
não chegaram lá em cima, pelas colinas, e nem embaixo pela faina.
Guardaram em seu caixão o próprio infinito e seu fragmento de mar.
E
o protegiam com as armas próprias enquanto o esquecimento se
aproximava deles como a névoa.
Pablo Neruda, in Confesso que vivi
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