terça-feira, 15 de janeiro de 2019

O Troisgros

O Armando Coelho Borges e eu namorávamos, de longe, um restaurante francês, o Frères Troisgros. Com a melancólica resignação dos amores impossíveis. Eu já vira duas ou três referências ao restaurante, sabia que ele ostentava três das consagradoras estrelas conferidas pelo Guide Michelin — a cotação máxima — e um dia li na Playboy a apreciação de um especialista em gastronomia que não fazia por menos: o Frères Troisgros, em Roanne, uma pequena cidade perto de Lyon, era o melhor restaurante da França, logo, do mundo. Chegamos a planejar, o casal Coelho Borges e nós, o almoço que um dia faríamos juntos no Troisgros. Brincando, mas não muito. Um dia, quem sabe, por que não?
O dia do Armando ficou para mais tarde, mas o meu, contra todo o bom senso, contra todas as regras de contenção e previdência que devem guiar os passos de um assalariado em férias, o meu — deixa eu secar esta saudosa lágrima que me surge, estranhamente, no canto da boca — chegou. Estávamos em Genebra e íamos para Paris. Por que não entrar na França por Lyon, bem perto da fronteira suíça? E, de Lyon, por que não dar um pulo até Roanne, tão pertinho, se mais não fosse só para passar a mão pela maçaneta (la pommette?) da porta do Troisgros?
Tomamos o trem para Lyon. De chegada, ainda na estação, tracei as coordenadas da operação. Haveria um trem para Roanne às 10 e pouco do dia seguinte. Fomos para um hotel, dormimos cedo, e de manhã, em jejum — a correta preparação física é importantíssima nestes casos —, rumamos para Roanne. A viagem em si foi um aperitivo perfeito para o que estava para vir. Campos, fazendas, coxilhas polvilhadas de simpáticas vacas francesas, e de repente uma floresta de pinheiros ainda coberta de neve! Em menos de uma hora, atingíamos o nosso objetivo. Não tínhamos a menor ideia de como localizar o restaurante. Na frente da estação, eu procurava um mapa ou qualquer coisa para me orientar quando ouvi a Lúcia soletrando o nome de um hotel diretamente à nossa frente, do outro lado da rua: Frères Troisgros... Era ele.
Era ele, Armando. O hotel em si é de segunda categoria, pequeno e sem graça como o resto da cidade. O restaurante fica logo à direita da porta de entrada. Não é luxuoso, é perfeito. Tem lugar para umas 60 pessoas. Atapetado, bem decorado, com grandes vasos de flores em todas as mesas. Ainda era cedo para o almoço. Reservamos uma mesa e saímos a caminhar por Roanne, para fazer hora. Nunca foi tão difícil fazer uma hora. Mal tentamos disfarçar a emoção, ainda fomos os primeiros a chegar.
Como todos os restaurantes da França, mesmo os mais estrelados, o Troisgros oferece menus de preço fixo, além da carte propriamente dita. Escolhemos o menu mais barato, que até a extravagância tem limite. Primeiro um pâté de grives en terrine. Depois um salmão grelhado com um molho, não me perguntem de quê, amarelo e sensacional. Terceiro, entrecôte ao molho de vinho com batatas sautées. Nos ofereceram queijos. Àquela altura, se nos servissem as flores da mesa nós as devoraríamos entre hosanas. Duas enormes bandejas de queijos de todos os sabores e cheiros. E ainda um caminhão de sobremesas, não quero nem falar nos morangos. A todas estas, bebíamos um Meursault. E os dois irmãos Troisgros que trabalham na cozinha — há um terceiro que não aparece — às vezes passavam pela sala com seus chapelões de cozinheiro, cumprimentando conhecidos e colhendo elogios com evidente prazer. Um dos frères, o de barbicha, andava por entre as mesas acompanhado de um enorme cachorro. Pensei vagamente em cochichar uma proposta no ouvido do cachorro. Escuta, você volta para Porto Alegre no m eu lugar, vai escrever crônica e anúncio, trabalho mole, salário razoável, ninguém vai notar a diferença, e eu fico aqui no teu. Hein? Hein? Só não fiz a proposta para não matar o animal de riso. Saímos, relutantemente, do Troigros, atravessamos a rua e pegamos o trem de volta para Lyon.
Botei a conta do almoço num envelope e mandei para o Armando, sem qualquer comentário. De pura maldade.
Luís Fernando Veríssimo, in A mesa voadora

Nenhum comentário:

Postar um comentário