Nestes
quatrocentos anos de colonização literária recebemos a influência
de muitos países. Sempre tentamos reproduzir com todas as
minudências a língua, as ideias, a vida de outras terras. Não sei
donde vem esse medo que temos de sermos nós mesmos. Queremos que nos
tomem por outros.
Talvez
seja porque entre nós é fácil um preto casar com uma branca, uma
preta viver com um branco, sem casar. Os mulatinhos escondem-se dos
pais e, com o intuito de clarear a descendência, sujaram-se de pó
de arroz e imitaram os modos dos estrangeiros. A religião negra, a
arte negra, tudo quanto a África nos podia dar foi sufocado pelo
ingênuo desejo de arianizar isto depressa.
Havia
em Portugal uma certa quantidade de gramáticos. Arranjamos
gramáticos mais numerosos e procuramos há alguns anos escrever
melhor que os portugueses. Nunca houve lugar no mundo onde se
discutisse tanta sintaxe.
Tudo
nos vinha de fora.
Na
literatura de ficção é que a falta de caráter dos brasileiros se
revelou escandalosamente. Em geral os nossos escritores mostraram uma
admirável ignorância das coisas que estavam perto deles. Tivemos
caboclos brutos semelhantes aos heróis cristãos e bem-falantes em
excesso. Os patriotas do século passado, em vez de estudar os
índios, estudaram tupi nos livros e leram Walter Scott. Tivemos
Damas das Camélias em segunda mão. Tivemos paisagens inúteis
em linguagem campanuda, pores do sol difíceis, queimadas enormes,
secas cheias de adjetivos. Descrições. José Veríssimo construiu
um candeeiro em não sei quantas páginas.
Muito
pouco — rios, poentes cor de sangue, incêndios, candeeiros.
Os
ficcionistas indígenas engancharam-se regularmente na pintura dos
caracteres. Não mostraram os personagens por dentro: apresentaram o
exterior deles, os olhos, os cabelos, os sapatos, o número de
botões. Insistiram em pormenores desnecessários, e as figuras
ficaram paradas.
Os
diálogos antigos eram uma lástima. Em certos romances os indivíduos
emudeciam, em outros falavam bonito demais, empregavam linguagem de
discurso. Dois estrangeiros, perdidos nas brenhas, discutiam
política, sociologia, trapalhadas com pedantismo horrível que se
estiravam por muitas dezenas de folhas. Via-se perfeitamente que o
autor nunca tinha ouvido nada semelhante ao palavrório dos seus
homens.
Felizmente,
vamo-nos afastando dessa absurda contrafação de literaturas
estranhas. Os romancistas atuais compreenderam que para a execução
de obra razoável não bastam retalhos de coisas velhas e novas
importadas da França, da Inglaterra e da Rússia. E como deixaram de
ser obrigatórias as exibições da porta do Garnier, os provincianos
conservaram-se em suas cidadezinhas, acumulando documentos,
realizando uma honesta reportagem sobre a vida no interior.
O
trabalho que há no Nordeste é mais intenso que em qualquer outra
parte do Brasil, tão intenso que um crítico, visivelmente alarmado
com as produções daqui, disse ultimamente que não é só no Norte
que se faz literatura. Decerto. Era indispensável, porém, que
nossos romances não fossem escritos no Rio, por pessoas
bem-intencionadas, sem dúvida, mas que nos desconheciam
inteiramente.
Hoje
desapareceram os processos de pura composição literária. Em todos
os livros do Nordeste, nota-se que os autores tiveram o cuidado de
tornar a narrativa não absolutamente verdadeira, mas verossímil.
Ninguém se afasta do ambiente, ninguém confia demasiado na
imaginação.
E
é assim que deve ser. Se o Sr. Gastão Cruls vivesse aqui, não
teria podido escrever o seu Vertigem. Apesar de médico e
romancista, foi-lhe necessário estar habituado à cidade grande.
Também
não seria possível a um carioca, ainda que tivesse visitado o
interior do Ceará, conceber e realizar o João Miguel. Para
fazê-lo a Sra. Rachel de Queiroz consumiu largo tempo examinando uma
prisão da roça, registrou as palavras do cabo Salu, conversou com a
Filó, viu como ela enchia o cachimbo de barro.
O
Sr. Lins do Rego criou-se na bagaceira dum engenho, e julgo que nem
sabe que é bacharel. Conservou-se garoto de bagaceira, o que não
lhe teria acontecido se morasse no Rio, frequentando teatros e
metendo artigos nos jornais. Aqui está bem. Quando o cheiro das
tachas vai esmorecendo, dá um salto a uma engenhoca, escuta Zé
Guedes, seu Lula, a velha Sinhazinha.
O
Sr. Jorge Amado nasceu numa fazenda no sul da Bahia — e por isso
escreveu Cacau. Instalou-se depois na ladeira do Pelourinho,
68, onde travou relações com várias criaturas que entraram na
composição do seu último livro.
Esses
escritores são políticos, são revolucionários, mas não deram a
ideias nomes de pessoas: os seus personagens mexem-se, pensam como
nós, sentem como nós, preparam as suas safras de açúcar, bebem
cachaça, matam gente e vão para a cadeia, passam fome nos quartos
sujos duma hospedaria.
Os
nossos romancistas não saíram de casa à procura de reformas
sociais: a revolução chegou a eles e encontrou-os atentos,
observando uma sociedade que se decompõe.
Está
claro que ninguém aqui pretende haver construído monumentos.
Estamos ainda no começo, mas um excelente começo que nos dá grande
quantidade de volumes todos os anos.
Nessa
produção excessiva há falhas, topadas, marcas de trabalho feito à
pressa. Naturalmente porque estamos a correr sem nos termos
acostumado a andar.
O
que é certo é que o romance do Nordeste existe e vai para diante.
As livrarias estão cheias de nomes novos. Não é razoável
pensarmos que toda essa gente escreva porque um dia o Sr. José
Américo publicou um livro que foi notado com espanto no Rio:
— Um
romance do Nordeste! Que coisa extraordinária!
Graciliano
Ramos, in Garranchos (Diário de Pernambuco, Recife,
10/03/1935)
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