sábado, 19 de janeiro de 2019

O homem-sanduíche

Em um momento de tristeza, quando a poesia lhe parece insuficiente e o prestígio lhe esmaga os ossos, o poeta francês Paul Valéry anota: “Enfastiado de ter razão, de fazer o que tem sucesso, da eficiência dos procedimentos, tentar outra coisa”.
Mas o quê ? Diz-se que, pouco antes de morrer, Valéry balbuciou: “Minha vida, eu te perdi!”. Guiou-o, sempre, o projeto de “ir até o fim dentro de mim mesmo”. Mas quem consegue isso? Optar pela poesia não leva ao sucesso, tampouco garante o consolo da eficiência. Não é garantia de nada – mas é aquilo que um poeta, se de fato aposta nas palavras, pode fazer.
Estar sempre “a caminho de”: que melhor expressão define um poeta? Sabe que não chegará, conhece os limites estreitos de sua escolha. Neles se move, entre eles se espreme, com eles escreve. Como Alberto Martins, no magnífico Em trânsito (Companhia das Letras), um livro que não paro de reler.
Martins fala do poeta como um “homem-sanduíche”, desses que, nas ruas, carregam no corpo anúncios de compra e venda. Avançam, espremidos entre o mundo e as palavras. São veículos, fazem conexões. Sob o peso das palavras, desaparecem. O poeta, Martins sugere, é uma torre de eletricidade, uma corrente de transmissão. Não trabalha só com palavras, mas com “energias”.
Essas energias – como o queijo que acomodamos em um sanduíche – escorrem pelas bordas. O poeta não as domina ou manipula; ele as representa (“alguém está dublando a realidade”, Martins escreve, e este alguém é o poeta). Espécie de fio condutor, ele se deixa moldar por forças secretas. De onde elas vêm? O que significam? – todo poeta pergunta.
Em um tempo de respostas práticas e de definições totais, o poeta persiste no indefinido, pois sabe “que cada passo é um erro, é um logro”. Só por isso desistir? “Quem não joga perde a vez e nunca mais volta para o jogo”, ele adverte. E por isso continua a escrever, mesmo sem saber para quê.
Há alguns meses, fui apresentado a Alberto Martins. Um cumprimento rápido e, de seu rosto, além do sorriso afetuoso, me ficou a imagem dos óculos quadrados, um pouco desproporcionais – como se ele quisesse me dizer que não tem vergonha alguma (e tem até orgulho) de não ver, ou pouco ver.
Em um de seus poemas, “Na volta do oculista”, essa imagem de um Martins massacrado pelos óculos me volta. Como saber quais são as lentes corretas? Com um par de óculos novo, as letras crescem uma enormidade; mas sem eles o mundo perde a nitidez. Se, ao contrário, usamos óculos “para longe”, as coisas do mundo se avolumam, mas as letras se esmagam. Que danação!
Em Martins, os óculos servem como metáfora da poesia – imagem que ele, o homem Alberto, carrega no rosto. A poesia para quê? Ela é inútil em palanque político ou em um gabinete de empresário. Também de nada serve ao cirurgião ou ao pesquisador de laboratório. Mas se nos colocamos entre eles, se persistimos em um intervalo de contemplação, como dispensá-la? É nesse trânsito, entre o grande e o pequeno, que o poeta se posta.
Em outro poema, sobre Anchieta, um corajoso Martins, depois de observar que “não há nada no mar além do mar”, pergunta, um tanto perplexo: “Então por que meus lábios se abrem e a boca ferida prefere estes sons?”. A poesia, para quê? Volto a pensar nos óculos, que são, eles também, intermediários – linhas que conectam o olho e o mundo. Através deles circulam imagens, energias. Só fazem sentido se os usamos – um par de óculos, no fundo de uma gaveta, não passa de um dejeto. Só existem como transmissores. Sozinhos, nada são.
Sem seus óculos, o poeta (Martins) acorda de madrugada. Insone, busca um livro que o proteja dos pesadelos. Avança pelo quarto, procura, não encontra. “Dá um pouco de medo/ passar assim em silêncio/ entre as paredes/ rente a mim mesmo”, ele escreve. Quer o livro, só tem a si mesmo. Até que uma voz (a sua) o salva: “É por aqui, Alberto!”. Entre o homem e o livro (um sanduíche), esconde-se o poeta.
Mesmo que sirva de consolo, mesmo que possa ser usada como um sedativo, a poesia destampa e perfura. Permite que as energias circulem e escorram. Faz acontecer. Alberto Martins escreve belos poemas narrativos – como o dedicado a Attila József, o poeta húngaro que conviveu com os expressionistas. Não teve pai, não teve mãe. “Seus tios lhe disseram que seu nome não era um nome.” De um nome que não se diz, Martins tira um retrato de espantosa nitidez.
Acompanha o peruano César Vallejo, o “poeta da dor”, e a seu lado sofre. Segue o fotógrafo americano Robert Capa, para quem a fotografia mostrava o inexistente. Pobres retratistas! Depois, vai à padaria com o amigo Flávio Di Giorgi. Enquanto tomam um café, o poeta se recorda de Horácio, que encontrou uma ânfora com um vinho fabricado no ano de seu nascimento. Provou do vinho, como quem toma a si mesmo. Confirmou-se poeta, que trabalha com o que é.
A poesia ardente de Alberto Martins me leva a pensar na tese enganosa (e dura) da mestria – que transporta para outro lugar (um lugar inexistente) aquilo que está bem aqui, em nós mesmos. A poesia começa onde o trabalho do mestre se esgota, onde a imagem do grande sábio se evapora. Martins resume: “Quem está formado segue ao sabor dos próprios erros”. A poesia se torna, com isso, a difícil arte de “cair em si”.
Essa “queda em si”, contudo, é só um resvalar. Não passa (aposso-me, de novo, das palavras de Martins) de um conservar-se “rente a si mesmo”. Seu livro, ele nos diz, se destina àqueles que usam os poemas “como um meio de transporte”. Com a mente em outro lugar, distraído (iludido), como se estivesse em um ponto de ônibus, você sobe em um poema e nele se aboleta. Que alívio! As palavras o carregam, e isso, a princípio, adocica e tempera o coração.
Por algum tempo, alguns versos, você se sente amparado. Entrega ao mestre das palavras seu destino. Mas, de repente, em um desvio, alguma freada brusca, percebe que subiu (caiu) em si. Que é você, leitor, quem está na direção. Espremido entre o mundo e as palavras, sua alma escorre e você treme – e isso é a poesia.
José Castello, in Sábado inquietos

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