Em
um momento de tristeza, quando a poesia lhe parece insuficiente e o
prestígio lhe esmaga os ossos, o poeta francês Paul Valéry anota:
“Enfastiado de ter razão, de fazer o que tem sucesso, da
eficiência dos procedimentos, tentar outra coisa”.
Mas
o quê ? Diz-se que, pouco antes de morrer, Valéry balbuciou: “Minha
vida, eu te perdi!”. Guiou-o, sempre, o projeto de “ir até o fim
dentro de mim mesmo”. Mas quem consegue isso? Optar pela poesia não
leva ao sucesso, tampouco garante o consolo da eficiência. Não é
garantia de nada – mas é aquilo que um poeta, se de fato aposta
nas palavras, pode fazer.
Estar
sempre “a caminho de”: que melhor expressão define um poeta?
Sabe que não chegará, conhece os limites estreitos de sua escolha.
Neles se move, entre eles se espreme, com eles escreve. Como Alberto
Martins, no magnífico Em trânsito (Companhia das Letras), um
livro que não paro de reler.
Martins
fala do poeta como um “homem-sanduíche”, desses que, nas ruas,
carregam no corpo anúncios de compra e venda. Avançam, espremidos
entre o mundo e as palavras. São veículos, fazem conexões. Sob o
peso das palavras, desaparecem. O poeta, Martins sugere, é uma torre
de eletricidade, uma corrente de transmissão. Não trabalha só com
palavras, mas com “energias”.
Essas
energias – como o queijo que acomodamos em um sanduíche –
escorrem pelas bordas. O poeta não as domina ou manipula; ele as
representa (“alguém está dublando a realidade”, Martins
escreve, e este alguém é o poeta). Espécie de fio condutor, ele se
deixa moldar por forças secretas. De onde elas vêm? O que
significam? – todo poeta pergunta.
Em
um tempo de respostas práticas e de definições totais, o poeta
persiste no indefinido, pois sabe “que cada passo é um erro, é um
logro”. Só por isso desistir? “Quem não joga perde a vez e
nunca mais volta para o jogo”, ele adverte. E por isso continua a
escrever, mesmo sem saber para quê.
Há
alguns meses, fui apresentado a Alberto Martins. Um cumprimento
rápido e, de seu rosto, além do sorriso afetuoso, me ficou a imagem
dos óculos quadrados, um pouco desproporcionais – como se ele
quisesse me dizer que não tem vergonha alguma (e tem até orgulho)
de não ver, ou pouco ver.
Em
um de seus poemas, “Na volta do oculista”, essa imagem de um
Martins massacrado pelos óculos me volta. Como saber quais são as
lentes corretas? Com um par de óculos novo, as letras crescem uma
enormidade; mas sem eles o mundo perde a nitidez. Se, ao contrário,
usamos óculos “para longe”, as coisas do mundo se avolumam, mas
as letras se esmagam. Que danação!
Em
Martins, os óculos servem como metáfora da poesia – imagem que
ele, o homem Alberto, carrega no rosto. A poesia para quê? Ela é
inútil em palanque político ou em um gabinete de empresário.
Também de nada serve ao cirurgião ou ao pesquisador de laboratório.
Mas se nos colocamos entre eles, se persistimos em um intervalo de
contemplação, como dispensá-la? É nesse trânsito, entre o grande
e o pequeno, que o poeta se posta.
Em
outro poema, sobre Anchieta, um corajoso Martins, depois de observar
que “não há nada no mar além do mar”, pergunta, um tanto
perplexo: “Então por que meus lábios se abrem e a boca ferida
prefere estes sons?”. A poesia, para quê? Volto a pensar nos
óculos, que são, eles também, intermediários – linhas que
conectam o olho e o mundo. Através deles circulam imagens, energias.
Só fazem sentido se os usamos – um par de óculos, no fundo de uma
gaveta, não passa de um dejeto. Só existem como transmissores.
Sozinhos, nada são.
Sem
seus óculos, o poeta (Martins) acorda de madrugada. Insone, busca um
livro que o proteja dos pesadelos. Avança pelo quarto, procura, não
encontra. “Dá um pouco de medo/ passar assim em silêncio/ entre
as paredes/ rente a mim mesmo”, ele escreve. Quer o livro, só tem
a si mesmo. Até que uma voz (a sua) o salva: “É por aqui,
Alberto!”. Entre o homem e o livro (um sanduíche), esconde-se o
poeta.
Mesmo
que sirva de consolo, mesmo que possa ser usada como um sedativo, a
poesia destampa e perfura. Permite que as energias circulem e
escorram. Faz acontecer. Alberto Martins escreve belos poemas
narrativos – como o dedicado a Attila József, o poeta húngaro que
conviveu com os expressionistas. Não teve pai, não teve mãe. “Seus
tios lhe disseram que seu nome não era um nome.” De um nome que
não se diz, Martins tira um retrato de espantosa nitidez.
Acompanha
o peruano César Vallejo, o “poeta da dor”, e a seu lado sofre.
Segue o fotógrafo americano Robert Capa, para quem a fotografia
mostrava o inexistente. Pobres retratistas! Depois, vai à padaria
com o amigo Flávio Di Giorgi. Enquanto tomam um café, o poeta se
recorda de Horácio, que encontrou uma ânfora com um vinho fabricado
no ano de seu nascimento. Provou do vinho, como quem toma a si mesmo.
Confirmou-se poeta, que trabalha com o que é.
A
poesia ardente de Alberto Martins me leva a pensar na tese enganosa
(e dura) da mestria – que transporta para outro lugar (um lugar
inexistente) aquilo que está bem aqui, em nós mesmos. A poesia
começa onde o trabalho do mestre se esgota, onde a imagem do grande
sábio se evapora. Martins resume: “Quem está formado segue ao
sabor dos próprios erros”. A poesia se torna, com isso, a difícil
arte de “cair em si”.
Essa
“queda em si”, contudo, é só um resvalar. Não passa
(aposso-me, de novo, das palavras de Martins) de um conservar-se
“rente a si mesmo”. Seu livro, ele nos diz, se destina àqueles
que usam os poemas “como um meio de transporte”. Com a mente em
outro lugar, distraído (iludido), como se estivesse em um ponto de
ônibus, você sobe em um poema e nele se aboleta. Que alívio! As
palavras o carregam, e isso, a princípio, adocica e tempera o
coração.
Por
algum tempo, alguns versos, você se sente amparado. Entrega ao
mestre das palavras seu destino. Mas, de repente, em um desvio,
alguma freada brusca, percebe que subiu (caiu) em si. Que é você,
leitor, quem está na direção. Espremido entre o mundo e as
palavras, sua alma escorre e você treme – e isso é a poesia.
José
Castello, in Sábado inquietos
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