terça-feira, 29 de janeiro de 2019

O homem e as pedras que gritavam

Caminhava, pensando no seu desemprego. Chutou uma pedra e a pedra gritou. O grito se confundiu aos muitos ruídos da rua, naquela hora: ônibus, apitos, músicas, buzinas, máquinas, britadeiras, passos. De modo que o grito da pedra não foi ouvido. O homem continuou, preocupado com o desemprego e a sua idade: 40 anos.
Quando passou pela construção, sentiu uma pedra passar zunindo. Percebeu, ou pensou que percebeu, outro barulho qualquer relacionado com a pedra. Não prestou atenção, a pedra caiu aos pés, ele chutou. Estava na esquina, quando identificou: a pedra tinha gritado. Não, não era possível. Uma alucinação devido ao desemprego, aos problemas. Estava bastante lúcido, não delirava. No entanto, voltou. Era um homem curioso e interessado. Por ser curioso e interessado perdia os empregos, queria ir além da superfície e os chefes não gostavam. Cada um no seu lugar, fazendo o que deve. Direitos e deveres, proclamavam. O dever de um funcionário é ater-se ao seu trabalho, nada mais.
A pedra tinha caído junto ao tapume. Estavam construindo um prédio de 80 andares e havia placas e faixas comemorativas, um orgulho para a cidade. As pessoas que passavam diante do prédio costumavam bater palmas e gritar de alegria. Uma característica do paulistano era essa: satisfazer-se com as grandes obras de cimento e ferro, principalmente se fossem nas cores favoritas, o cinza e o preto, alternados com o marrom-escuro e o roxo quase negro.
Como reconhecer a pedra que havia gritado, se é que uma pedra tinha gritado? Havia muitas dessas pedras que são misturadas ao concreto grosso. Começou a pisá-las mansamente, preocupado com a sensibilidade das pedras. As pessoas olhavam e seguiam, depois começaram a parar, vendo aquele estranho balé. Então, ele localizou. Sob a pressão do pé, a pedra gemeu suavemente. Para se certificar, ele comprimiu mais e a pedra gritou. Verdadeiramente. Para espanto dos que olhavam.
Ele enfiou a pedra no bolso, e partiu. Ia levá-la para casa, estudá-la. Teria de caminhar, estava sem dinheiro. Na esquina da praça, viu um pedregulho negro, opaco. Pisou nele. O pedregulho gritou. O homem se abaixou, colocou-o no bolso. Se duas gritam, outras hão de gritar também. Estava excitado, esqueceu o desemprego, esbugalhou os olhos à procura de pedras. Foi encontrando, chutando, apanhando as que gritavam. Havia muitas. Mais do que ele pensava. Com os bolsos cheios, ameaçando arrebentar, amontoou as pedras nas mãos. Num supermercado, pediu um saquinho. Numa loja, conseguiu uma bolsa de plástico. Eram pedras gritadoras aos montes. Demais. Pesadas. Além disso, amontoadas umas sobre as outras, as pedras pareciam se sentir incomodadas e reclamavam. As pessoas que passavam olhavam para ele e para a bolsa e o saco que emitiam estranhos ruídos, não identificáveis. Nem humanos, nem animais.
À medida que andava, encontrava mais pedras e menos gente. As pedras estavam em montinhos nas esquinas, nas portas dos bares, isoladas em meio à calçada, perto dos pontos de ônibus. Menos gente, mais pedras. Até que a rua ficou deserta. Ele só via pedrinhas, pedrões, de todas as cores, tipos, formas. Pedras nas portas, janelas, nos balcões dos cafés. O homem sentiu que suas pernas se encolhiam, estava sendo difícil andar. Tudo escurecia. Percebeu que se arrastava pela calçada.
Começou a rolar. Devia estar na ladeira que conduzia ao seu prédio. Rolava, como se fosse algo redondo fácil de rolar. A calçada era irregular, ele saltava, mudava de direção, batia numa parede, voltava. Nenhuma angústia, apenas uma sensação desagradável de que era uma coisa inteiriça, compacta.
Até que parou de rolar, sem saber onde estava.
E sem se importar com isso, com o tempo e com o espaço, como se tivesse a eternidade à sua frente.
Ignácio de Loyola Brandão, in Cadeiras proibidas

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