Há
pessoas silenciosas ou de poucas palavras, mas em Brasília até as
paredes emitem sons suspeitos. Silêncio, mesmo, só na lonjura, no
cerrado original.
Na
parede do quarto do hotel observo um origami com dobras geométricas;
da janela vejo árvores desfolhadas com galhos retorcidos, o gramado
marrom, o horizonte queimado pela seca de setembro. No centro da
paisagem calcinada, a praça dos Três Poderes… Dizem que a nova
Biblioteca de Brasília foi inaugurada sem livros. Será uma metáfora
da cabeça de muitos políticos? Ou do tempo em que vivemos?
A
arrumadeira do hotel é uma mulher de Minas; o recepcionista é um
rapaz pernambucano, e um dos ajudantes do chef de cozinha, baiano. O
Brasil todo está aqui, e esse Brasil de verdade parece ausente nas
esculturas côncava e convexa do Congresso Nacional. Cada vez que
entro no elevador ouço sons de pássaros. Cantam e não aparecem:
onde estão? Não há pássaros nas imagens do Pantanal e da Amazônia
coladas em duas paredes de vidro do elevador panorâmico. Mas quando
subo ou desço dezessete andares, sou obrigado a ouvir trinados
metálicos na caixa de vidro e aço. Recordo o conto “Paolo
Uccello”, de Marcel Schwob. O genial artista florentino do
Quattrocento era obcecado por pássaros, e também pela geometria e
perspectiva. Uccello queria entender o mundo (o espaço) em
profundidade. Ele pintava pássaros nas paredes de seu ateliê, daí
o apelido Uccello e o título do conto de Schwob. Mas a vida não é
imaginária, nem sempre é, sobretudo quando o elevador para no
térreo e o cronista se senta à mesa do café da manhã e escuta
pedaços de conversas indiscretas:
“Volto
na próxima semana por causa do resultado da licitação…”
“Acertei
com o senador, só falta…”
“Consegui
marcar uma audiência, agora vai ser mais fácil…”
A
mulher de Minas ganha menos de dois salários mínimos e mora em
Samambaia, uma das favelas do Distrito Federal. Na época em que
morei em Brasília ninguém dizia favela, e sim cidade-satélite.
Esse eufemismo urbano ainda persiste, mas o tempo também apaga os
eufemismos. O Plano Piloto da nova capital foi construído sob o
signo da miséria brasileira: os candangos pobres, operários,
artesãos e desempregados migraram de todos os quadrantes e foram
morar na periferia da cidade-monumento.
Como
seriam o Brasil e Brasília se não houvesse existido o toque militar
de recolher e sua noite longa e infame?
O
ajudante do chef de cozinha ganha mais do que a mulher de Minas e
mora em Sobradinho.
“Se
eu não comesse no hotel, passaria fome. Meus dois meninos são
filhos da Capital.”
Gêmeos
da era Collor, vieram ao mundo durante um pesadelo político.
Sobradinho. Nunca me esqueci das cidades-satélites, aonde íamos
pichar muros com slogans contra a censura e a brutalidade do regime
militar. Por onde andam meus amigos daquela época? Zé Wilson, o
Cuca, viajou ainda jovem para o outro lado do espelho, nem me deu
adeus. Ainda me lembro do entusiasmo com que comentava os clássicos;
lia tudo e nos olhava por trás de lentes grossas no rosto de
criança. Chico dos Anjos, filho do escritor Cyro dos Anjos, também
partiu antes do tempo. Disse ao Chico: “O amanuense Belmiro
é um belo romance. E como os mineiros escrevem bem, de dar inveja”.
Percebi
uma ponta de orgulho no olhar do meu amigo. Depois deu uma
gargalhada. O Chico ria quando todos ficavam sérios, não era tempo
de risadas, mas ele tinha humor, e um astral na lua.
Em
1968 nada era muito asséptico em Brasília, uma cidade embrionária,
capital pequena. E vigiada. Alguns homens do poder usavam terno e
gravata, muitos ostentavam farda e metais, eram ferozes com suas
armas, mas também tinham medo, porque o medo, a violência e o barro
estavam nas entranhas de Brasília. A poeira vermelha cobria as
superquadras, manchava as fachadas dos ministérios e as garras
curvilíneas da Catedral, então inacabada. A poeira barrenta borrava
o Palácio do Planalto; o outro, da Alvorada, também avermelhava.
“Barro subversivo, barro maldito”, diziam. Até o barro
primordial do cerrado era comunista. O setor hoteleiro era acanhado,
lembro as duas noites em que dormi no Hotel das Nações, noites de
angústia, meu coração moído de saudades do Norte. Depois fui
morar num quarto de uma casa na avenida W3-Sul: aluguel barato de uma
pensão informal. Uma família de negros: o pai era um mestre de
obras baiano, candango de primeira mão, que trabalhara na construção
do Hotel das Nações, inaugurado em 1962. Essas casas da W3-Sul
tinham um pátio nos fundos, que podia ser um quintal, mas agora
estão desfiguradas. Duas crianças brincavam de cabra-cega ao redor
da pitangueira. Um dia elas me ofereceram um punhado de frutas e
comecei a gostar de Brasília. Agora os pátios foram cobertos por
puxadinhos, ocupados por quartos pequenos e contíguos, promessa de
cortiço. As famílias cresceram, a renda caiu, os proprietários
alugam os fundos da casa.
Nem
Brasília, planejada com uma racionalidade extrema e desumana,
resistiu ao caos urbano-arquitetônico. A miséria e suas favelas
cercam os três poderes da República, o medo e a violência do
passado voltaram com outra feição. Chico dos Anjos, Cuca, vocês
não viram isso. João Luiz Lafetá, um crítico fino que morou em
Brasília nos anos 1960, também partiu sem ver o país subtraído de
uma esperança teimosa, tão brasileira. João Alexandre Barbosa,
outro amigo, crítico literário dos mais eruditos, também nos
deixou. Ele e centenas de professores da UnB foram exonerados dessa
instituição na década de 1960. Mas a Universidade de Brasília
resistiu, sobreviveu.
Penso
em vocês enquanto escuto trinados metálicos de pássaros ausentes.
Dezessete andares em trinta segundos. Melhor caminhar a esmo, rever
Brasília no escuro da madrugada, à espera do amanhecer. Saio da
jaula de aço e vidro e vejo na recepção duas mulheres falsamente
louras conversando com lobistas. Estão sentadas em poltronas
forradas de couro e bebem uísque, talvez faturem por noite o que a
mulher de Minas ganha por mês, e seus parceiros lobistas ganharão
mais do que todas as putas e outras mulheres trabalhadoras ganhariam
em dez anos de labuta.
O
origami na parede não me diz nada, é mais um ornato no quarto de um
hotel que poderia estar nas Filipinas, na Holanda ou na África do
Sul. Faço uma viagem à deriva pelo cerrado, quero encontrar um
lugar do passado, o Poço Azul, onde me refugiava do medo e dos
homens.
Viagem
no tempo: o visível, o invisível na opacidade da memória. Aqui, há
pássaros de verdade: sanhaços e saíras e saís-azuis pousam nas
sombras de jatobás e bicam a polpa carnosa dos pequis. Corpos nus
deitados nas pedras do Poço Azul e a mata úmida que se debruça
sobre o riacho. Não vejo árvores anãs com galhos retorcidos, nem
braços tortos de seres vegetais, trágicos. Aqui, o passado não
lanha meu corpo nem minha alma, posso colher flores secas do cerrado
e escrever esta crônica de amor a uma cidade que não sai de mim.
Milton
Hatoum, in Um solitário à espreita
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