quarta-feira, 16 de janeiro de 2019

Flores secas do serrado

Há pessoas silenciosas ou de poucas palavras, mas em Brasília até as paredes emitem sons suspeitos. Silêncio, mesmo, só na lonjura, no cerrado original.
Na parede do quarto do hotel observo um origami com dobras geométricas; da janela vejo árvores desfolhadas com galhos retorcidos, o gramado marrom, o horizonte queimado pela seca de setembro. No centro da paisagem calcinada, a praça dos Três Poderes… Dizem que a nova Biblioteca de Brasília foi inaugurada sem livros. Será uma metáfora da cabeça de muitos políticos? Ou do tempo em que vivemos?
A arrumadeira do hotel é uma mulher de Minas; o recepcionista é um rapaz pernambucano, e um dos ajudantes do chef de cozinha, baiano. O Brasil todo está aqui, e esse Brasil de verdade parece ausente nas esculturas côncava e convexa do Congresso Nacional. Cada vez que entro no elevador ouço sons de pássaros. Cantam e não aparecem: onde estão? Não há pássaros nas imagens do Pantanal e da Amazônia coladas em duas paredes de vidro do elevador panorâmico. Mas quando subo ou desço dezessete andares, sou obrigado a ouvir trinados metálicos na caixa de vidro e aço. Recordo o conto “Paolo Uccello”, de Marcel Schwob. O genial artista florentino do Quattrocento era obcecado por pássaros, e também pela geometria e perspectiva. Uccello queria entender o mundo (o espaço) em profundidade. Ele pintava pássaros nas paredes de seu ateliê, daí o apelido Uccello e o título do conto de Schwob. Mas a vida não é imaginária, nem sempre é, sobretudo quando o elevador para no térreo e o cronista se senta à mesa do café da manhã e escuta pedaços de conversas indiscretas:
Volto na próxima semana por causa do resultado da licitação…”
Acertei com o senador, só falta…”
Consegui marcar uma audiência, agora vai ser mais fácil…”
A mulher de Minas ganha menos de dois salários mínimos e mora em Samambaia, uma das favelas do Distrito Federal. Na época em que morei em Brasília ninguém dizia favela, e sim cidade-satélite. Esse eufemismo urbano ainda persiste, mas o tempo também apaga os eufemismos. O Plano Piloto da nova capital foi construído sob o signo da miséria brasileira: os candangos pobres, operários, artesãos e desempregados migraram de todos os quadrantes e foram morar na periferia da cidade-monumento.
Como seriam o Brasil e Brasília se não houvesse existido o toque militar de recolher e sua noite longa e infame?
O ajudante do chef de cozinha ganha mais do que a mulher de Minas e mora em Sobradinho.
Se eu não comesse no hotel, passaria fome. Meus dois meninos são filhos da Capital.”
Gêmeos da era Collor, vieram ao mundo durante um pesadelo político. Sobradinho. Nunca me esqueci das cidades-satélites, aonde íamos pichar muros com slogans contra a censura e a brutalidade do regime militar. Por onde andam meus amigos daquela época? Zé Wilson, o Cuca, viajou ainda jovem para o outro lado do espelho, nem me deu adeus. Ainda me lembro do entusiasmo com que comentava os clássicos; lia tudo e nos olhava por trás de lentes grossas no rosto de criança. Chico dos Anjos, filho do escritor Cyro dos Anjos, também partiu antes do tempo. Disse ao Chico: “O amanuense Belmiro é um belo romance. E como os mineiros escrevem bem, de dar inveja”.
Percebi uma ponta de orgulho no olhar do meu amigo. Depois deu uma gargalhada. O Chico ria quando todos ficavam sérios, não era tempo de risadas, mas ele tinha humor, e um astral na lua.
Em 1968 nada era muito asséptico em Brasília, uma cidade embrionária, capital pequena. E vigiada. Alguns homens do poder usavam terno e gravata, muitos ostentavam farda e metais, eram ferozes com suas armas, mas também tinham medo, porque o medo, a violência e o barro estavam nas entranhas de Brasília. A poeira vermelha cobria as superquadras, manchava as fachadas dos ministérios e as garras curvilíneas da Catedral, então inacabada. A poeira barrenta borrava o Palácio do Planalto; o outro, da Alvorada, também avermelhava. “Barro subversivo, barro maldito”, diziam. Até o barro primordial do cerrado era comunista. O setor hoteleiro era acanhado, lembro as duas noites em que dormi no Hotel das Nações, noites de angústia, meu coração moído de saudades do Norte. Depois fui morar num quarto de uma casa na avenida W3-Sul: aluguel barato de uma pensão informal. Uma família de negros: o pai era um mestre de obras baiano, candango de primeira mão, que trabalhara na construção do Hotel das Nações, inaugurado em 1962. Essas casas da W3-Sul tinham um pátio nos fundos, que podia ser um quintal, mas agora estão desfiguradas. Duas crianças brincavam de cabra-cega ao redor da pitangueira. Um dia elas me ofereceram um punhado de frutas e comecei a gostar de Brasília. Agora os pátios foram cobertos por puxadinhos, ocupados por quartos pequenos e contíguos, promessa de cortiço. As famílias cresceram, a renda caiu, os proprietários alugam os fundos da casa.
Nem Brasília, planejada com uma racionalidade extrema e desumana, resistiu ao caos urbano-arquitetônico. A miséria e suas favelas cercam os três poderes da República, o medo e a violência do passado voltaram com outra feição. Chico dos Anjos, Cuca, vocês não viram isso. João Luiz Lafetá, um crítico fino que morou em Brasília nos anos 1960, também partiu sem ver o país subtraído de uma esperança teimosa, tão brasileira. João Alexandre Barbosa, outro amigo, crítico literário dos mais eruditos, também nos deixou. Ele e centenas de professores da UnB foram exonerados dessa instituição na década de 1960. Mas a Universidade de Brasília resistiu, sobreviveu.
Penso em vocês enquanto escuto trinados metálicos de pássaros ausentes. Dezessete andares em trinta segundos. Melhor caminhar a esmo, rever Brasília no escuro da madrugada, à espera do amanhecer. Saio da jaula de aço e vidro e vejo na recepção duas mulheres falsamente louras conversando com lobistas. Estão sentadas em poltronas forradas de couro e bebem uísque, talvez faturem por noite o que a mulher de Minas ganha por mês, e seus parceiros lobistas ganharão mais do que todas as putas e outras mulheres trabalhadoras ganhariam em dez anos de labuta.
O origami na parede não me diz nada, é mais um ornato no quarto de um hotel que poderia estar nas Filipinas, na Holanda ou na África do Sul. Faço uma viagem à deriva pelo cerrado, quero encontrar um lugar do passado, o Poço Azul, onde me refugiava do medo e dos homens.
Viagem no tempo: o visível, o invisível na opacidade da memória. Aqui, há pássaros de verdade: sanhaços e saíras e saís-azuis pousam nas sombras de jatobás e bicam a polpa carnosa dos pequis. Corpos nus deitados nas pedras do Poço Azul e a mata úmida que se debruça sobre o riacho. Não vejo árvores anãs com galhos retorcidos, nem braços tortos de seres vegetais, trágicos. Aqui, o passado não lanha meu corpo nem minha alma, posso colher flores secas do cerrado e escrever esta crônica de amor a uma cidade que não sai de mim.
Milton Hatoum, in Um solitário à espreita

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