Domingo.
Deliciavam-se no café da manhã, dia da semana em que tudo era
permitido: queijo gordo, geleias, croissant, ovos com
salchicha, até bacon. Combinaram na lua de mel em Cancún que
em todos os domingos teriam um café da manhã digno de um resort
mexicano.
Liam
o jornal e se esbaldavam. Mas de férias, de repente do nada, ela se
virou para ele e sugeriu depois de ler o caderno de economia: “Vamos
nos separar?”
Ele
estava com a xícara erguida. Deteve o movimento. Olhou pensativo.
Deu um gole no café. Delicioso. Era ele quem o preparava como um
connaisseur. Depositou a xícara sobre o caderno de esporte e
respondeu: “Bora.”
Ela
estendeu a mão para firmar o pacto: “Promete?”
Ele
estendeu a sua. Apertaram, olhos nos olhos: “Prometo.”
Voltaram
a ler o jornal. Ele abriu o caderno de cultura, e ela leu os
editoriais. Depois de um tempo, ela comentou:
“Você
aceitou tão rápido. Já tinha pensando nisso?”
“Na
verdade, não. Tá vendo como mesmo depois de tantos anos você não
me conhece?”
“Não
conheço, mesmo. Achei que ia fazer um escândalo, tentar me
convencer do contrário.”
“Tô
de boa. Você sugeriu com tanta convicção, que achei que é a coisa
certa. Senti isso. Reparou como a gente sempre sabe o que o outro
está pensando antes de ele falar?”
“É
o convívio.”
“Como
você quer fazer?”
“Não
pensei nisso ainda.”
“Posso
ir prum flat.”
“De
boa?”
“Sempre
quis morar num. Imagine… Você deixa o quarto uma zona, vai
trabalhar, volta, e ele está arrumadinho.”
“Posso
ajudar a decorar?”
“Lógico.
Você tem um puta bom gosto. Por isso me casei com você. Entre
outras coisas…”
“Tipo?”
“Ah,
você é uma baita gostosa, linda…” “Cê acha, é?”
“Puxa,
agora que vou morar sozinho, vou falar palavrões. Acho tão avançado
homem que fala palavrão, desprendido…”
Ela
pegou na mão dele, colocou-a no seu rosto, beijou, abaixou para o
peito. Ele fez carinhos nela, ela tirou e disse: “Achei que ia
brigar pelo apê.”
“Nada
de separação litigiosa. Acho coisa de gente rancorosa, mal
resolvida…”
“Meu
Deus, o que a gente fala pras crianças?!”
“Hum,
boa pergunta. Precisamos de um motivo.”
“Bora
dar um Google.”
“Motivos
mais comuns em divórcios? Elas não são mais crianças, estão já
namorando, na faculdade, daqui a pouco vão morar com amigos, fazer
intercâmbio na Espanha. Estão se lixando para nós. Vão até
gostar. Terão duas contas bancárias para explorar.”
“E
pros amigos, o que a gente diz?”
“Vamos
falar da crise dos sete anos. Sempre tem a desculpa da crise dos sete
anos.”
“Mas
nós somos casados há vinte.”
“Vamos
dizer que há treze anos a gente não superou a crise dos sete.”
“Ninguém
vai cair nessa.”
“É
verdade. Vou dar um Google. Olha, só não vale falar que decidimos
por causa da falta de tesão, que com o tempo diminuiu a frequência.
Acho muito baixo-astral casal que se separa e sai espalhando que não
transava mais, que pareciam dois irmãos na cama…”
“Até
porque no nosso caso não é verdade. Nossa média é alta, comparada
a de outros casais.”
“Então,
por que nos separamos?”
“Boa
pergunta. Deixa eu ver… O que diz o Google?”
“A
conexão tá lenta…”
“E
se a gente não disser nada?”
“Como
assim?!”
“Ué,
se perguntarem, a gente faz aquela cara dissimulada, sabe? De gente
fechada que não gosta de falar das suas intimidades.”
“Hum,
você é tão esperto. Me dá um tesão. Por isso me casei com você.”
Ela
o abraçou por trás e beijou o pescoço dele.
“Pensei
que fosse por causa da minha barriga tanquinho.”
“Tanquinho
industrial?”
Ela
deu um apertão na gordura da cintura dele e começou a recolher a
louça. Ele ficou se examinando, se apalpando, se olhou no reflexo da
janela:
“Preciso
emagrecer. Agora que sou um divorciado de meia-idade disponível no
mercado.”
“Relaxa.
Mulheres não ligam pra isso.”
“Não?
E do que elas gostam? Conta outra…”
“De
cara interessante.”
“Será
que sou um cara interessante?”
“Você
vai catar geral, será seletivo ou dará um tempo sozinho?”
“Não
me decidi. Posso catar geral?”
“Por
mim… Exceto minhas amigas, OK?”
“Por
que não?”
“Nem
vem!”
“Estou
pensando em partir pra outra geração.”
“Que
faixa?!”
“Dez
anos a menos, no máximo.”
“Ufa,
que susto. Tudo bem. Deve ser interessante pegar uma geração
diferente, outros costumes, bandas, gírias, lugares, bares. Contanto
que não seja a geração dos nossos filhos. É doente, isso.”
“E
você?”
“Não
planejei nada. Mas…”
“Fala.”
“Ai,
tenho vergonha…”
“Pode
se abrir. A gente é amigo agora.”
“Você
não vai me zoar? Tá bom, eu falo. Eu queria pegar, sei lá… Outra
mulher. Pronto, falei.”
“Uau!
Que legal.”
“Ah,
nunca fiquei. Me sinto uma careta. Hoje em dia é tão normal. Deve
ser uma experiência diferente. Já levei cantadas de umas mulheres
bem interessantes. Gatas.”
“Você
sente atração?”
“Não
sei explicar.”
“Mas
você não vai virar lésbica, nem coisa do tipo.”
“Sei
lá. Por quê?”
“Porque
daí teríamos o motivo. ‘Ah, se separaram porque ela é gay,
sempre foi, desde pequena, ficou anos casada com aquele cara, mas no
fundo gosta de mulher.’”
“E
daí? Deixa falar. Te incomoda? Antigamente até iam pensar, ‘Pô,
o cara é tão devagar que a mulher trocou por outra, o cara nem sabe
fazer direito’. Hoje em dia as pessoas estão mais abertas. Até a
sua turma do clube.” “Dane-se. Eles vão é morrer de inveja
quando me virem na piscina com uma gata dez anos mais nova com um
baita corpão e um biquininho mínimo…”
“Bobo.
Você nem vai na piscina com medo de pegar doença de pele, seu
hipocondríaco!”
Riram.
Terminaram de lavar a louça. Começaram a enxugar.
“O
título do clube fica com quem?”, ela perguntou.
“Se
tiver algum entrave no estatuto, pode ficar pra você. Vou pegar um
flat com piscina.”
“Boa.
Posso vender o meu carro? Não aguento mais esse trânsito. Tô
pensando em andar só de bicicleta agora.”
“Coisa
de sapata.”
“Hiii,
começou a gozação.”
“Ah,
acho bacana. Alguém tem que fazer alguma coisa pelo planeta.”
“E
os livros?”
“A
gente divide: o que eu não li fica pra mim e vice-versa.”
“Os
móveis?”
“Posso
ficar com a LCW? É design do Charles Eames. Deve caber no
flat.”
“Olha
só… Não sabia que você era ligado em design.”
“Você
não sabe muita coisa de mim, baby. Tem cem anos que o cara
desenhou essa poltrona. É um clássico.”
Começaram
a guardar a louça. Ele desmontou a cafeteira italiana, tirou o pó,
limpou, segurou-a um instante. Perguntou:
“Posso
ficar com a cafeteira?”
“Oi?”
“Não
consigo tomar café de outra.”
“Foi
tio Modesto quem me deu.”
“Eu
sei.”
“É
uma Moka legítima.”
“Hoje
em dia qualquer supermercado vende.”
“Então
compra uma.”
“Só
consigo fazer café nesta daqui.”
“Não.”
“Não
o quê?”
“A
cafeteira não sai daqui.”
“Me
apeguei a ela. É a única coisa que estou pedindo, além da LCW.”
Disputaram
a cafeteira.
“Me
dá aqui. Quer fazer cafezinho nela pra sua Lolita, seu pedófilo.
Não vai!”
“Solta!
Você não vai usar a herança do tio Modesto com um sapatão, sua
degenerada!”
Cada
um segurou uma parte dela. Até ela se dividir, e ambos rolarem pelo
chão. Cena patética presenciada pelos filhos recém-chegados à
porta da cozinha.
O
resultado foi óbvio. Não se separam, pois não queriam abrir mão
daquele bem. Estão casados até hoje. Nunca mais tocaram no assunto.
A única diferença é que ela ficou mais gostosa depois que começou
a andar de bike, e ele perdeu a barriga proeminente graças à
natação no clube. E começou a falar palavrão.
Marcelo
Rubens Paiva, in As verdades que ela não diz
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