A
morte vem para aqueles que esperam e aqueles que não esperam. Dia
escaldante, hoje, maldito dia escaldante. Saí do correio e meu carro
não pegou. Bom, eu sou um cidadão decente. Sou membro do Auto Club.
Assim, precisei de um telefone. Há 40 anos, havia telefones em todo
lado. Telefones e relógios. Você sempre podia olhar para o lado e
ver que horas eram. Isto não existe mais. Não há mais hora grátis.
E os telefones públicos estão desaparecendo.
Fui
por instinto. Fui ao correio, desci uma escada e lá, num canto
escuro, sozinho e sem ser anunciado, estava um telefone. Um telefone
sujo e grudento. Não havia outro num raio de três quilômetros.
Sabia como fazer um telefone funcionar. Talvez. Informações. A voz
da telefonista surgiu e achei que estava salvo. Era uma voz calma e
entendiada e me perguntou que cidade eu queria. Disse a cidade e o
autoclube. (Você tem que saber como fazer as pequenas coisas e você
tem que fazê-las sem parar ou está morto. Morto nas ruas. Ignorado,
indesejável.) A moça me deu um número, mas era o número errado.
Do escritório. Depois consegui a oficina. Uma voz de macho, calma,
cansada, mas combativa. Maravilhoso. Dei a ele a informação. “30
minutos”, ele disse.
Voltei
ao carro, abri uma carta. Era um poema. Cristo. Era sobre mim. E ele.
Nos encontramos, parece, duas vezes, há 15 anos. Ele também tinha
me publicado em sua revista. Eu era um grande poeta, ele disse, mas
eu bebia. E tinha vivido uma vida desgraçada e marginal. Hoje, os
jovens poetas bebiam e viviam vidas miseráveis e marginais porque
eles achavam que era assim que se fazia. Também, que eu tinha
atacado outras pessoas em meus poemas, inclusive ele. E que eu tinha
imaginado que ele tinha escrito poemas desfavoráveis sobre mim. Não
é verdade. Ele era uma pessoa legal, disse que tinha publicado
vários outros poetas em sua revista, por 15 anos. E eu não era uma
pessoa legal. Eu era um grande escritor, mas não uma pessoa legal. E
ele nunca teria se “amigado” comigo. Foi isso que ele escreveu:
“amigado”. E ele escrevia “vosê” o tempo todo em vez de
“você”... A ortografia dele não era boa.
Estava
quente dentro do carro. Fazia 39 graus, o primeiro de outubro mais
quente desde 1906.
Eu
não ia responder à sua carta. Ele escreveria de novo.
Outra
carta de um agente, contendo o trabalho de um escritor. Dei uma
olhada. Ruim. É claro. “Se você tiver qualquer sugestão sobre
seu texto ou qualquer dica de publicação, gostaríamos muito...”
Outra
carta de uma senhora me agradecendo por eu ter escrito algumas linhas
ao seu marido e feito um desenho por sua sugestão, que isto o tinha
deixado muito feliz. Mas agora estavam divorciados e ela estava
fazendo trabalhos free lance e ela poderia vir e me
entrevistar?
Duas
vezes por semana recebo pedidos de entrevistas. Não há muito o que
dizer. Existem muitas coisas para se escrever, mas não para se
falar.
Lembro
de uma vez, nos velhos tempos, de um jornalista alemão que me
entrevistou. Enchi-o de vinho e falamos por quatro horas. Depois
disso, ele se inclinou para frente, bêbado, e disse: “Não sou um
jornalista. Só queria uma desculpa para te ver”...
Joguei
as cartas de lado e fiquei sentado esperando. Daí vi o
caminhão-guincho. Um cara jovem e sorridente. Um garoto legal.
Claro.
“EI,
GAROTO!”, gritei, “AQUI!”
Ele
deu uma ré, saí do carro e contei o problema.
“Me
reboca até a oficina Acura”, disse para ele.
“O
carro ainda está na garantia?”, perguntou.
Ele
sabia muito bem que não estava. Estávamos em 1991 e eu estava
dirigindo um modelo 1989.
“Não
interessa”, disse eu, “me reboca até a loja Acura.”
“Eles
vão levar um tempão para consertar, talvez uma semana.”
“Claro
que não, eles são bem rápidos.”
“Escute”,
disse o garoto, “temos nossa própria oficina. Podemos levar o
carro lá, talvez consertá-lo hoje. Se não, nós te registramos e
telefonamos assim que possível.”
Naquele
momento, visualizei meu carro na sua oficina por uma semana. Pra me
dizerem que eu precisava de um novo eixo excêntrico. Ou fixar as
cabeças de cilindro.
“Me
reboca para a Acura”, eu disse.
“Espere”,
disse o garoto. “Tenho que ligar para o chefe primeiro.”
Esperei.
Ele voltou.
“Ele
disse pra fazer pegar no tranco.”
“O
quê?”
“Pegar
no tranco.”
“Tudo
bem. Vamos lá.”
Entrei
no meu carro e deixei que escorregasse até o caminhão. Ele me puxou
um pouco e o carro deu a partida imediatamente. Assinei os papéis e
ele foi embora e eu fui embora...
Então,
decidi deixar o carro na oficina da esquina.
“Nós
conhecemos você. Você tem vindo aqui há anos”, disse o gerente.
“Legal”,
disse eu, e sorri: “Então, não me sacaneiem.”
Ele
só me olhou.
“Nos
dê 45 minutos.”
“Tudo
bem.”
“Precisa
de uma carona?”
“Claro.”
Apontou.
“Ele te leva.”
Um
garoto legal parado ali. Fomos até o carro dele. Dei o endereço a
ele. Subimos a colina. “Você ainda está fazendo filmes?”, me
perguntou.
Eu
era uma celebridade, sabe.
“Não”,
eu disse. “Foda-se Hollywood.”
Ele
não entendeu aquilo.
“Pare
aqui”, eu disse.
“Ei,
esta casa é grande.”
“Eu
só trabalho aqui”, disse eu.
Era
verdade.
Saí
do carro. Dei dois dólares a ele. Ele protestou, mas ficou com eles.
Andei
pelo caminho da entrada. Os gatos estavam espalhados por ali,
esgotados. Na minha próxima vida, quero ser um gato. Dormir 20 horas
por dia e esperar ser alimentado. Sentar por aí lambendo meu cu. Os
humanos são desgraçados demais, irados demais, obcecados demais.
Fui
pra cima e sentei na frente do computador. É o meu novo consolador.
Meu trabalho dobrou em potência e produção desde que o comprei. É
uma coisa mágica. Sento na frente dele como a maioria das pessoas
senta na frente dos seus aparelhos de tv.
“É
só uma máquina de escrever melhorada”, me disse meu genro uma
vez.
Mas
ele não é um escritor. Ele não sabe o que é quando as palavras
surgem no espaço, brilham na luz, quando os pensamentos que vêm na
sua cabeça podem ser seguidos imediatamente por palavras, que
encorajam mais pensamentos e mais palavras a seguir. Com uma máquina
de escrever, é como caminhar na lama. Com um computador, é como
patinar no gelo. É uma rajada brilhante. Claro, se não há nada
dentro de você, não importa. E depois tem o trabalho de limpeza, as
correções. Diabos, eu costumava escrever tudo duas vezes. A
primeira, para colocar as ideias, e a segunda, para corrigir os
erros. Assim, é uma vez só para o divertimento, a glória e a fuga.
Imagino
qual será o próximo passo depois do computador. Provavelmente, você
só apertará os dedos nas têmporas e sairá esse monte de palavras
perfeitas. É claro, você terá que encher o tanque antes de
começar, mas tem sempre os sortudos que conseguem fazer isso.
Espero.
O
telefone tocou.
“É
a bateria”, ele disse,
“você
precisava de uma bateria nova.”
“E
se eu não puder pagar?”
“Daí
vamos ficar com a sua estepe.”
“Já
vou aí.”
E
assim que comecei a descer a ladeira, ouvi meu vizinho idoso. Estava
gritando para mim. Subi a escadaria da sua casa. Ele estava vestido
com calças de pijama e um velho abrigo cinza. Fui até ele e o
cumprimentei com um aperto de mãos.
“Quem
é você?”, perguntou.
“Sou
seu vizinho. Moro aqui há dez anos.”
“Tenho
96 anos”, disse ele.
“Eu
sei, Charley.”
“Deus
não quer me levar porque Ele tem medo que eu fique com o emprego
dele.”
“Você
poderia.”
“Poderia
ficar com o trabalho do Diabo, também.”
“Poderia.”
“Quantos
anos você tem”?
“71.”
“71?”
“É.”
“Isso
é ser velho também.”
“É,
eu sei, Charley.”
Apertamos
as mãos e desci as escadas e depois ladeira abaixo, passando pelas
plantas cansadas, pelas casas cansadas. Eu estava a caminho do posto
de gasolina.
Mais
um dia chutado no traseiro.
Charles
Bukowski, in O capitão saiu para o almoço e os marinheiros
tomaram conta do navio
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