Para
o habitante do litoral o sertanejo é um indivíduo meio selvagem,
faminto, esfarrapado, sujo, com um rosário de contas enormes, chapéu
de couro e faca de ponta. Falso, preguiçoso, colérico e vingativo.
Não tem morada certa, desloca-se do Juazeiro do Padre Cícero para o
grupo de Lampião , abandona facilmente a mulher e os filhos, bebe
cachaça e furta como rato.
É
esse, pouco mais ou menos, o sertanejo que a gente da cidade se
acostumou a ver em jornais e em livros. Como, porém, livros e
jornais de ordinário são feitos por cidadãos que nunca estiveram
no interior, o tipo que apresentam é um produto literário. Essa
mistura de retirante, beato e cangaceiro, enfeitada com um patuá,
duas alpercatas e muitas figuras de retórica, torna-se rara. Os
homens de minha terra podem ter por dentro a cartucheira e os
molambos, mas exteriormente são criaturas vulgares, sem nenhum
pitoresco.
Os
sertanejos dos campos estiveram no Amazonas, em São Paulo e no
Espírito Santo; tiraram borracha, plantaram café, voltaram com
maços de notas e dispostos a esbanjá-las depressa. Alguns,
incapazes de exercícios pesados, meteram-se no exército e na
marinha, e os que haviam ido à cadeia e levado pancada entraram na
polícia e vingaram-se.
Todos
esses sujeitos regressaram muito sabidos, estranhando tudo, falando
difícil, desconhecendo os amigos, ignorando os nomes dos objetos
mais corriqueiros, confundindo bode com onça. Naturalmente não
quiseram mais criar bodes. Tornaram-se negociantes ambulantes ou
adquiriram um pedaço de terra e foram explorar o trabalho dos
outros.
Os
moradores das cidades leram jornais e aprenderam bastante. A
literatura e a ciência deles, que estavam contidas no Carlos
Magno e no Lunário Perpétuo, aumentaram de modo
considerável. Conhecem o José de Alencar, o Júlio Verne, a
Constituição brasileira e a seleção natural.
Aparecem
entre eles alguns doutores que defendem a liberdade, outros atacam o
vigário. E há o rábula, o farmacêutico, o tabelião, o caixeiro
que estuda gramática, o redator da folha semanal.
As
pessoas notáveis do lugar são comerciantes que passam metade dos
dias encostados à carteira, cochilando, e a outra metade debaixo das
árvores do largo da feira, tesourando a vida alheia, tecendo
mexericos. O assunto preferido é a política. Escangalham o prefeito
e o delegado de polícia, vão subindo e, com ligeiras paradas nas
secretarias e no gabinete do governador, acabam desmantelando o
ministério e o presidente da República.
Falam
demais, não ganham quase nada e começam a sentir necessidades
exorbitantes. Têm rodovias, estradas de ferro, luz elétrica,
cinema, praças com jardins, filarmônicas, máquinas de escrever e
pianos. Só faltam escolas e hospitais. Por isso os sertanejos andam
carregados de muita verminose e muita ignorância.
Trabalham
pouco, pensam pouco. Mas querem progresso, o progresso que veem,
encantados, nas fitas americanas. E progridem sem tomar fôlego. Numa
casa velha de taipa arranjam uma sala bonita e metem dentro quadros,
cortinas e penduricalhos.
Dançam
o charleston, jogam o foot-ball, ouvem o jazz,
conhecem o box e o flirt. Até nos jogos de cartas
esqueceram o honesto sete e meio e adotaram, sem nenhuma vergonha, as
ladroeiras do poker. Daí tiraram o bluff, que invadiu
o comércio e a política. Em algumas regiões já existe o turf.
E em toda a parte a gasolina, o motor U.S.A.
Entretanto
os rios estão secos, o gado morre, a lagarta rosada deu no algodão.
Tudo tão pobre...
Para
que esse bando de coisas de nomes esquisitos? Não era melhor que
continuássemos a cultivar o terço, o reisado, o pastoril, a
quadrilha, a cavalhada, o bozó pelo Natal, as sortes em noites de S.
João? Isto é nosso e é barato. O resto é dos outros e caro.
Dentro
em pouco estarão todos no sertão falando inglês. Mas nós não
somos ingleses…
Graciliano
Ramos, in Novidade, Maceió,
nº 1, 11 de abril de 1931, p. 11.
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