Passei
a manhã trabalhando em uma coluna sobre Domingos F. Sarmiento –
esta coluna que agora você lê. Minto: não esta, na verdade, mas
uma coluna que escrevi e perdi. Trabalhei a manhã toda em meu
notebook, que anda instável e arredio. A coluna estava pronta.
Sarmiento me levou a pensar em Os sertões, de Euclides (o
nosso Sarmiento?), e no Menino de engenho, de Zé Lins.
Levou-me, com seu fabuloso Facundo, a fronteiras longínquas.
Tão distantes que, como em um desmaio, eu me extraviei. Estou bem,
não perdi os sentidos. Meu notebook encenou o desmaio por mim.
Quando
me preparava para salvar a coluna em um pen-drive, ela desapareceu.
Continua escondida em algum lugar do notebook, em alguma dessas
brechas que eu, um leigo, sou incapaz de acessar. Tornou-se uma
coluna secreta, que um dia, quem sabe, me voltará. Ou não. Mas isso
já não importa: tenho um compromisso com o jornal, que devo honrar.
Às pressas, desci até uma lan house para reescrevê-la. A mesma
coluna, outra coluna: tudo aponta para Sarmiento, um escritor que fez
da fronteira e da cisão a sua escrita.
Bobagem
tentar reescrever o que escrevi. Uma escrita é sempre outra escrita.
Melhor esquecer das coisas que disse e do sujeito que fui, para
tentar ser outro sujeito que diz outras coisas. Foi o que fez Domingo
Faustino Sarmiento (1811-1888), o fundador da literatura argentina.
Antes dele, todos em Buenos Aires escreviam “à europeia”. Ser
outro, ser europeu, era a única maneira de ser. Era ser o mesmo.
Sarmiento acabou com isso, resolveu ser outro. Decidiu escrever um
livro que seria o primeiro livro, e o fez.
Pensei
em Euclides porque acho que, de outra maneira e em outro século, ele
fez algo parecido. Tanto Facundo (Cosac Naify, tradução de
Sérgio Alcides e posfácio de Francisco Foot Hardman) como Os
sertões são livros marcados pela oscilação e pela
indefinição. Nas primeiras linhas, Facundo parece um poema.
Um poema ameaçador. Escreve Sarmiento: “Sombra terrível de
Facundo, vou evocar-te, para que te ergas, sacudindo o pó
ensanguentado que cobre tuas cinzas, e nos expliques a vida secreta e
as convulsões internas que dilaceram as entranhas de um povo
nobre!”. Leio e penso em Camões, em Shakespeare, em Dante. A
poesia se anuncia, mas Facundo não é um poema nem Sarmiento
um poeta. Ou é?
O
livro é também um ensaio biográfico sobre Juan Facundo Quiroga, o
caudilho que governou a região de La Rioja e terminou assassinado.
É, mas não é. Sarmiento trata a verdade sabendo que ela é um
camaleão. Ora está aqui, ora está ali – e nunca está onde
esperamos que esteja, se é que está em algum lugar. Por isso ele
oscila entre os gêneros, esquiva-se, muda de rumo. Também Euclides
nos legou um livro, Os sertões, que pode ser um ensaio, pode
ser uma peça da história, talvez seja um trabalho jornalístico,
tem a forma de um romance. Tem poesia? Acho que tem. Sempre que o
releio, me pergunto: o que ele é?
Muito
antes das vanguardas e do Modernismo, Sarmiento e Euclides anunciaram
uma verdade devastadora: ninguém pode retratar o mundo. Podemos
rondar em torno dele, puxar-lhe as barbas de velho (vejam como
fraqueja nosso planeta), acariciá-lo, desafiá-lo – para que,
enfim, acorde. Disso escorrem fragmentos, e mais nada. Mas que
retratos extraordinários, ainda assim, o homem (Sarmiento, Euclides)
consegue pintar.
Facundo
é um livro sobre a crueldade – Os sertões também. Mais de
meio século os separa, o que na verdade é só um sopro. Lançado em
1845, o livro de Domingo Faustino Sarmiento é resultado de uma
perseguição real: a que lhe moveu o caudilho Juan Manuel de Rosas,
obrigando-o a se exilar no Chile. Lá escreveu seu livro. Se o livro
de Sarmiento é resultado de uma escapada, o de Euclides, ao
contrário, é resultado de um enfrentamento. Ele só o escreveu
porque esteve cara a cara com a loucura de Canudos. Mas nada disso
importa. Escapando ou, ao contrário, se atirando sobre as coisas, os
dois chegaram aos mesmos estilhaços. A literatura é indiferente a
relógios e fórmulas. Na verdade, eles a asfixiam e matam.
Sarmiento,
como Euclides, via a Argentina (o Brasil) dividido entre a
civilização e a barbárie. Seria fácil se soubéssemos dizer de
que lado cada uma delas está. Não sabemos. Na verdade, nós as
carregamos dentro de nós. Ainda agora, eu mesmo, tonto com a perda
da primeira coluna que escrevi, outra coluna que seria esta coluna,
me desforrei com uma patada em alguém que não a merecia nem merece.
Facundo está dentro de mim. Sarmiento, de certa forma, é meu autor.
De todos nós.
Penso
na lucidez esplendorosa de Facundo, um livro que não se
limitou a romper com os laços que prendiam a literatura argentina ao
passado colonial, mas que lançou, para a frente, sempre para a
frente, outros laços vigorosos, com que ela se agarra ao futuro. Lia
Facundo e pensava em Menino de engenho, o livro de Zé
Lins do Rego, que nos chega agora a uma elegante centésima edição
(José Olympio). Li o romance de Zé Lins, pela primeira vez, quando
era menino. Na semana passada, mais uma vez, eu o reli. Nas duas
leituras, com desenhos distintos, o mesmo assombro. Eis outro livro
que não receia mexer em feridas. Mais que isso: que se recusa a ver
a literatura como uma cicatrização. Estes são os livros que nos
fundam: os que se negam à visão cosmética e curada do real. Os que
rondam em torno do mundo, sabendo que jamais conseguirão aterrissar
em sua face.
Avalia
Ricardo Piglia em seu prólogo: “Esse lugar incerto determina um
aspecto incerto da obra de Sarmiento: o uso deslocado da ficção”.
Piglia recorda, a respeito, uma avaliação do próprio Sarmiento:
“Primeira vez em que as fantásticas ficções da imaginação me
serviram para encobrir as fúrias de meu coração”. Sou um leitor
apaixonado de Piglia, mas me pergunto se, nesse aspecto, ele chegou
mesmo a entender Sarmiento. Se o próprio Sarmiento chegou a se
entender. Uso deslocado da ficção? Visão da literatura como um
placebo? Toda ficção sempre se desloca, toda literatura se esquiva
e fere, ou literatura de fato não é. Escritores corajosos – como
Sarmiento, Euclides, Piglia – sabem disso. Não importa se dizem
isso ou não.
José
Castello, in Sábados inquietos
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