sábado, 1 de dezembro de 2018

Sarmiento desaparecido

Passei a manhã trabalhando em uma coluna sobre Domingos F. Sarmiento – esta coluna que agora você lê. Minto: não esta, na verdade, mas uma coluna que escrevi e perdi. Trabalhei a manhã toda em meu notebook, que anda instável e arredio. A coluna estava pronta. Sarmiento me levou a pensar em Os sertões, de Euclides (o nosso Sarmiento?), e no Menino de engenho, de Zé Lins. Levou-me, com seu fabuloso Facundo, a fronteiras longínquas. Tão distantes que, como em um desmaio, eu me extraviei. Estou bem, não perdi os sentidos. Meu notebook encenou o desmaio por mim.
Quando me preparava para salvar a coluna em um pen-drive, ela desapareceu. Continua escondida em algum lugar do notebook, em alguma dessas brechas que eu, um leigo, sou incapaz de acessar. Tornou-se uma coluna secreta, que um dia, quem sabe, me voltará. Ou não. Mas isso já não importa: tenho um compromisso com o jornal, que devo honrar. Às pressas, desci até uma lan house para reescrevê-la. A mesma coluna, outra coluna: tudo aponta para Sarmiento, um escritor que fez da fronteira e da cisão a sua escrita.
Bobagem tentar reescrever o que escrevi. Uma escrita é sempre outra escrita. Melhor esquecer das coisas que disse e do sujeito que fui, para tentar ser outro sujeito que diz outras coisas. Foi o que fez Domingo Faustino Sarmiento (1811-1888), o fundador da literatura argentina. Antes dele, todos em Buenos Aires escreviam “à europeia”. Ser outro, ser europeu, era a única maneira de ser. Era ser o mesmo. Sarmiento acabou com isso, resolveu ser outro. Decidiu escrever um livro que seria o primeiro livro, e o fez.
Pensei em Euclides porque acho que, de outra maneira e em outro século, ele fez algo parecido. Tanto Facundo (Cosac Naify, tradução de Sérgio Alcides e posfácio de Francisco Foot Hardman) como Os sertões são livros marcados pela oscilação e pela indefinição. Nas primeiras linhas, Facundo parece um poema. Um poema ameaçador. Escreve Sarmiento: “Sombra terrível de Facundo, vou evocar-te, para que te ergas, sacudindo o pó ensanguentado que cobre tuas cinzas, e nos expliques a vida secreta e as convulsões internas que dilaceram as entranhas de um povo nobre!”. Leio e penso em Camões, em Shakespeare, em Dante. A poesia se anuncia, mas Facundo não é um poema nem Sarmiento um poeta. Ou é?
O livro é também um ensaio biográfico sobre Juan Facundo Quiroga, o caudilho que governou a região de La Rioja e terminou assassinado. É, mas não é. Sarmiento trata a verdade sabendo que ela é um camaleão. Ora está aqui, ora está ali – e nunca está onde esperamos que esteja, se é que está em algum lugar. Por isso ele oscila entre os gêneros, esquiva-se, muda de rumo. Também Euclides nos legou um livro, Os sertões, que pode ser um ensaio, pode ser uma peça da história, talvez seja um trabalho jornalístico, tem a forma de um romance. Tem poesia? Acho que tem. Sempre que o releio, me pergunto: o que ele é?
Muito antes das vanguardas e do Modernismo, Sarmiento e Euclides anunciaram uma verdade devastadora: ninguém pode retratar o mundo. Podemos rondar em torno dele, puxar-lhe as barbas de velho (vejam como fraqueja nosso planeta), acariciá-lo, desafiá-lo – para que, enfim, acorde. Disso escorrem fragmentos, e mais nada. Mas que retratos extraordinários, ainda assim, o homem (Sarmiento, Euclides) consegue pintar.
Facundo é um livro sobre a crueldade – Os sertões também. Mais de meio século os separa, o que na verdade é só um sopro. Lançado em 1845, o livro de Domingo Faustino Sarmiento é resultado de uma perseguição real: a que lhe moveu o caudilho Juan Manuel de Rosas, obrigando-o a se exilar no Chile. Lá escreveu seu livro. Se o livro de Sarmiento é resultado de uma escapada, o de Euclides, ao contrário, é resultado de um enfrentamento. Ele só o escreveu porque esteve cara a cara com a loucura de Canudos. Mas nada disso importa. Escapando ou, ao contrário, se atirando sobre as coisas, os dois chegaram aos mesmos estilhaços. A literatura é indiferente a relógios e fórmulas. Na verdade, eles a asfixiam e matam.
Sarmiento, como Euclides, via a Argentina (o Brasil) dividido entre a civilização e a barbárie. Seria fácil se soubéssemos dizer de que lado cada uma delas está. Não sabemos. Na verdade, nós as carregamos dentro de nós. Ainda agora, eu mesmo, tonto com a perda da primeira coluna que escrevi, outra coluna que seria esta coluna, me desforrei com uma patada em alguém que não a merecia nem merece. Facundo está dentro de mim. Sarmiento, de certa forma, é meu autor. De todos nós.
Penso na lucidez esplendorosa de Facundo, um livro que não se limitou a romper com os laços que prendiam a literatura argentina ao passado colonial, mas que lançou, para a frente, sempre para a frente, outros laços vigorosos, com que ela se agarra ao futuro. Lia Facundo e pensava em Menino de engenho, o livro de Zé Lins do Rego, que nos chega agora a uma elegante centésima edição (José Olympio). Li o romance de Zé Lins, pela primeira vez, quando era menino. Na semana passada, mais uma vez, eu o reli. Nas duas leituras, com desenhos distintos, o mesmo assombro. Eis outro livro que não receia mexer em feridas. Mais que isso: que se recusa a ver a literatura como uma cicatrização. Estes são os livros que nos fundam: os que se negam à visão cosmética e curada do real. Os que rondam em torno do mundo, sabendo que jamais conseguirão aterrissar em sua face.
Avalia Ricardo Piglia em seu prólogo: “Esse lugar incerto determina um aspecto incerto da obra de Sarmiento: o uso deslocado da ficção”. Piglia recorda, a respeito, uma avaliação do próprio Sarmiento: “Primeira vez em que as fantásticas ficções da imaginação me serviram para encobrir as fúrias de meu coração”. Sou um leitor apaixonado de Piglia, mas me pergunto se, nesse aspecto, ele chegou mesmo a entender Sarmiento. Se o próprio Sarmiento chegou a se entender. Uso deslocado da ficção? Visão da literatura como um placebo? Toda ficção sempre se desloca, toda literatura se esquiva e fere, ou literatura de fato não é. Escritores corajosos – como Sarmiento, Euclides, Piglia – sabem disso. Não importa se dizem isso ou não.
José Castello, in Sábados inquietos

Nenhum comentário:

Postar um comentário