Em
“A tosse de uma senhora alemã”, um artigo breve que publicou em
1994 na revista Proa, de Buenos Aires, o escritor argentino
Julio Cortázar defende a ideia de que a literatura é muito mais que
um exercício de linguagem, e bem mais ainda que uma construção
intelectual. Ela é uma espécie de operação fantástica, diz, que
nos leva a “deslizar até um outro lado”. Lançados na face
escura de nós mesmos, nossos poros se esgarçam. Experimentamos,
então, sensações e ouvimos coisas que desconhecíamos. O artigo de
Cortázar ressurge agora em Papéis inesperados (Civilização
Brasileira, organização de Aurora Bernárdez e Carles Álvarez
Garriga, tradução de Ari Roitman e Paulina Wacht).
A
viagem à face escura começa no dia em que o escritor ouve uma
antiga gravação do “Concerto em ré”, de Beethoven, realizada
em 1947. Gravado ao vivo pela Rádio Alemã, o concerto – que tem
na regência o falecido maestro Wilhelm Furtwängler – permaneceu
esquecido durante trinta anos. Nos anos 1970, ele ressurge nos
estúdios da rádio France-Musique, que lhe destina uma audição
especial. Exilado em Paris, Cortázar ouve o concerto. Emociona-se
não só com a regência de Furtwängler e com a performance do
violinista judeu Yehudi Menuhin. Algo o afeta mais ainda.
Em
meio a um “pianíssimo”, surge aquilo que realmente o derruba: um
único golpe seco e claro de tosse. Uma tosse de mulher, que não se
repete – a tosse imprevisível de uma senhora alemã. “Impossível
saber quem tossiu naquela noite”, Cortázar medita. “Nenhuma
ciência, nenhum cavalheiro Dupin poderia rastrear sua origem.”
Contudo, é na tosse bruta e inconveniente, que surge fora do lugar e
que não interessa a ninguém, que ele fixa sua atenção. Mais que a
melodia de Beethoven ou a habilidade do violinista, é nela, naquele
ruído desagradável e absurdo, que Cortázar constrói um caminho.
Mesmo
a ciência, que a tudo captura, reflete o escritor, mesmo ela se
torna impotente diante daquela tosse. Abandonando a catedral cheia de
intenções de Beethoven, e atravessando a performance impecável do
violinista Menuhin, um voluntarioso Cortázar desliza até os
subterrâneos da plateia escura onde, trinta anos antes, uma
desconhecida, atordoada por uma gripe ou por uma alergia passageira,
não controla a tosse, permitindo que ela escape e se grave onde não
devia estar nem devia se gravar.
Os
críticos mais severos, por certo, lamentaram aquela tosse
desnecessária e, mais que isso, inoportuna que por um ou dois
segundos feriu a perfeição do concerto. Julio Cortázar faz
exatamente o contrário: é daquele ponto deslocado e imprevisível
que, ele percebe, algo vivo se desenrola e se fixa. É ali que a
coisa está. Mas que coisa? Cortázar detecta naquela tosse “uma
ponte e um sinal e um chamado”. Ponte, sinal e chamado que abrem um
rombo na noite e sobre os quais a literatura, enfim, se ergue. A
literatura vista não mais como a costura impecável de uma trama,
mas como um incômodo e um ferimento.
Ainda
penso nas ideias de Cortázar quando me cai nas mãos um livrinho
simpático: 90 livros clássicos para apressadinhos, de Henrik
Lange (editora Record, tradução e adaptação de Ota). Conservo ao
meu lado a reunião dos inéditos do escritor argentino. Deixo os
dois livros frente a frente; deixo que se desafiem e lutem. O que faz
Henrik Lange senão buscar o sumo poderoso de noventa grandes
romances? O que faz, ao contrário, Cortázar senão nos mostrar que
este sumo não existe e que, mesmo que existisse, não teria
importância alguma?
Detenho-me
nas adaptações assinadas pelo desenhista sueco Henrik Lange de
livros fabulosos como Odisseia, Em busca do tempo perdido, Morte
em Veneza e Dom
Quixote. Cada uma delas se comprime em uma única página,
dividida em quatro partes, sendo a primeira, sempre, destinada ao
título. Nas outras três, desenhos bem-humorados sustentam uma ou
duas frases curtas, resumindo (comprimindo – como nas cápsulas
fantasiosas vendidas para emagrecer) o livro que os preguiçosos não
leem.
Lange
se concentra no conteúdo das ficções, isto é, em seu enredo –
naquilo que, em geral, supomos ser o próprio livro. Deixa de lado,
assim, o que a ficção tem de mais próprio e que, de fato,
constitui a sua alma: a voz singular (e feroz) de um autor. É claro:
Henrik Lange extrai humor dessas reduções absurdas, mostrando o
quanto é inútil se deter no enredo de um romance – como se
bastasse a um doente ler a bula de um remédio para se curar, ou a um
piloto estudar um guia de instruções aeronáutico para pilotar um
avião. Ele denuncia, assim, o quanto é perigoso reduzir um livro a
seu enredo. O quanto um enredo, em vez de fazer falar, amordaça e
ilude.
Uma
vez, em uma oficina literária, propus aos alunos que escrevessem uma
pequena narrativa. Deveriam contar a história de uma mulher que,
limpando o quarto de empregada, se depara com uma barata, a espreme
contra a porta do armário e depois a leva à boca. Meus alunos riram
de minha proposta, que acreditavam ser apenas uma piada cruel. Riram
e debocharam até que uma moça, um tanto aflita, os interrompeu para
exclamar: “Meu Deus, isso é A paixão segundo G. H., de
Clarice!”. E era mesmo. Arranquei do mais genial romance que
Clarice Lispector escreveu aquilo que ele tem de mais central, mas
também de mais insuficiente, e lhes ofereci como um desafio. Tentei,
assim, mostrar que toda escrita literária é lateral; que a
literatura não se interessa pela boa organização, pelo relato
coerente e pela ordem, mas, ao contrário, se debruça sobre tudo o
que deles sobra.
Diz
Julio Cortázar que a tosse da senhora alemã em meio ao concerto de
Beethoven é “uma ponte e um sinal e um chamado”. Ponte que nos
conduz a regiões que, em geral, desprezamos. Sinal da
impossibilidade de normalizar o mundo real. Chamado para que tenhamos
coragem de escutar o incoerente e o inconveniente. A literatura, nos
mostra Cortázar, não é uma fantasia consoladora. Não é uma
distração ou uma ilusão. Ela nos conduz aos limites escuros do
humano e, assim, reafirma a importância de “viver porosamente,
aberto a tudo o que habita e respira”.
José
Castello, in Sábados inquietos
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