quinta-feira, 27 de dezembro de 2018

O monopólio do sofrimento

Eu me pergunto por que o sofrimento não oprime mais do que uma minoria. Existe uma razão desta seleção que isola, entre os indivíduos normais, uma categoria de eleitos destinados aos suplícios mais apavorantes? Certas religiões afirmam que o sofrimento é o meio do qual se serve a Divindade para nos testar, ou para nos fazer expiar um pecado. Esta concepção pode valer para um fiel, mas aquele que vê o sofrimento atacar indiferentemente puros e inocentes não saberia admiti-lo. Nada pode justificar o sofrimento, e querer fundá-lo numa hierarquia de valores é estritamente impossível - mesmo supondo que uma tal hierarquia pudesse existir.
O aspecto mais estranho dos sofredores reside na crença no valor absoluto de seu tormento - e que lhes dá a impressão de deter o monopólio. Eu tenho a ideia de ter concentrado em mim todo o sofrimento deste mundo e de ter o seu gozo exclusivo - mesmo que eu constate sofrimentos ainda mais atrozes, que se pode morrer perdendo pedaços de carne, desintegrando-se sob seus próprios olhos; sofrimentos monstruosos, criminosos, inadmissíveis. Pergunta-se como eles podem advir, e, uma vez que eles advêm, como falar ainda de finalidade e de outras trivialidades. O sofrimento impressiona-me tanto que perco quase toda a coragem. Eu não posso entender a razão do sofrimento no mundo; que ele derive da bestialidade, da irracionalidade, do demonismo da vida, isto explica sua presença, mas não fornece sua justificação. É, então, provável que o sofrimento não tenha nenhuma, da mesma forma que a existência em geral. A existência deveria ser? Ou ela tem uma razão puramente imanente? O ser não é apenas ser? Por que não admitir um triunfo final do não-ser, por que não admitir que a existência caminha em direção ao vazio, e o ser em direção ao não-ser? Este último ponto não constituiria a única realidade absoluta? Eis um paradoxo do tamanho do mundo.
Ainda que o sofrimento como fenômeno me impressione e, às vezes, mesmo me encante, eu não saberia escrever-lhe uma apologia, pois o sofrimento durável - e o verdadeiro sofrimento é assim - por mais purificador que ele seja na sua primeira fase, acaba por arruinar, destruir, desagregar. O entusiasmo fácil pelo sofrimento caracteriza os estetas e os diletantes, que o tomam por divertimento, ignorando sua terrível força de decomposição e seus recursos venenosos de desagregação, bem como sua fecundidade, à qual deve-se, entretanto, pagar muito caro. Deter o monopólio do sofrimento é voltar a viver suspenso sobre um abismo. Todo o verdadeiro sofrimento é um abismo.
Emil Cioran, in Nos cumes do desespero

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