domingo, 9 de dezembro de 2018

O casamento entre ciência e império

Qual a distância entre o Sol e a Terra? Essa é uma pergunta que intrigou muitos astrônomos no início da era moderna, em particular depois que Copérnico afirmou que o Sol, e não a Terra, é o centro do universo. Uma série de astrônomos e matemáticos tentaram calcular a distância, mas seus métodos deram resultados muitíssimo variados. Finalmente, em meados do século XVIII, alguém propôs um meio confiável de fazer a medição. A cada poucos anos, o planeta Vênus passa diretamente entre o Sol e a Terra. A duração do trânsito difere quando visto de pontos distantes da superfície da Terra, devido à diferença minúscula no ângulo em que o observador se encontra. Se várias observações do mesmo trânsito fossem feitas de diferentes continentes, a trigonometria simples seria tudo que necessitaríamos para calcular a distância exata entre a Terra e o Sol.
Os astrônomos previram que os próximos trânsitos de Vênus ocorreriam em 1761 e 1769. Então, expedições foram enviadas da Europa aos quatro cantos do mundo a fim de observar o trânsito de tantos pontos distantes quanto possível. Em 1761, os cientistas observaram o trânsito da Sibéria, da América do Norte, de Madagascar e da África do Sul. Quando o trânsito de 1769 se aproximava, a comunidade científica europeia fez um esforço ainda maior e enviou cientistas para o norte do Canadá e a Califórnia (que, na época, era uma região de natureza selvagem). A Sociedade Real de Londres para o Progresso do Conhecimento Natural concluiu que isso não era suficiente. Para obter os resultados mais precisos, era necessário enviar um astrônomo ao sudoeste do oceano Pacífico.
A Sociedade Real resolveu enviar um astrônomo eminente, Charles Green, para o Taiti e não poupou esforços nem dinheiro. Mas, tendo em vista que estava financiando uma expedição tão cara, não fazia muito sentido usá-la para apenas uma única observação astronômica. Por isso, Green foi acompanhado de uma equipe de outros oito cientistas de várias disciplinas, liderados pelos botânicos Joseph Banks e Daniel Solander. A equipe também incluía artistas incumbidos de produzir desenhos das novas terras, plantas, animais e pessoas que os cientistas certamente encontrariam. Equipada com os instrumentos científicos mais avançados que Banks e a Sociedade Real puderam comprar, a expedição foi entregue ao comando do capitão James Cook, um marinheiro experiente, além de geógrafo e etnógrafo tarimbado.
A expedição partiu da Inglaterra em 1768, observou o trânsito de Vênus do Taiti em 1769, fez o reconhecimento de várias ilhas do Pacífico, visitou a Austrália e a Nova Zelândia e regressou à Inglaterra em 1771. Trouxe de volta uma enorme quantidade de dados astronômicos, geográficos, meteorológicos, botânicos, zoológicos e antropológicos. Suas descobertas fizeram importantes contribuições para uma série de disciplinas, instigaram a imaginação dos europeus com histórias impressionantes do Pacífico Sul e inspiraram futuras gerações de naturalistas e astrônomos.
Um dos campos que se beneficiaram da expedição de Cook foi a medicina. Na época, os navios que partiam para terras distantes sabiam que mais da metade dos membros de sua tripulação morreria durante a viagem. O adversário não eram nativos furiosos, navios inimigos ou saudades da terra natal, e sim uma enfermidade misteriosa chamada escorbuto. Os homens acometidos pela doença ficavam letárgicos e deprimidos, e suas gengivas e outros tecidos moles sangravam. À medida que a doença avançava, seus dentes caíam, surgiam feridas abertas, e eles ficavam febris, amarelados e perdiam o controle dos membros. Estima-se que, entre os séculos XVI e XVIII, o escorbuto tenha cobrado a vida de 2 milhões de marinheiros. Ninguém sabia o que o causava e, por mais que se experimentassem vários medicamentos, os marinheiros continuavam morrendo às dezenas. A situação mudou em 1747, quando um médico britânico, James Lind, realizou um experimento controlado em marinheiros que sofriam da doença. Ele os separou em vários grupos e deu a cada grupo um tratamento diferente. Um dos grupos de teste foi instruído a ingerir frutas cítricas, um remédio popular contra o escorbuto. Os pacientes nesse grupo se recuperaram rapidamente. Lind não sabia o que as frutas cítricas continham que faltava nos corpos dos marinheiros, mas hoje sabemos que é vitamina C. Na época, a dieta típica de um navio era notadamente pobre em alimentos que são ricos nesse nutriente essencial. Em viagens longas, os marinheiros geralmente subsistiam à base de biscoitos e carne seca e quase não comiam frutas e legumes.
A Marinha Real não se convenceu com os experimentos de Lind, mas James Cook, sim. Ele resolveu provar que o médico estava certo. Carregou o barco com uma grande quantidade de chucrute e ordenou que seus marinheiros comessem frutas e legumes frescos em abundância sempre que a expedição parasse em terra firme. Cook não perdeu um único marinheiro vítima de escorbuto. Nas décadas seguintes, as marinhas do mundo inteiro adotaram a dieta náutica de Cook, e a vida de inúmeros marinheiros e passageiros foi poupada.
No entanto, a expedição de Cook teve outro resultado, muito menos benigno. Cook era não só um marinheiro e geógrafo experiente como também um oficial da marinha. A Sociedade Real financiou grande parte das despesas da expedição, mas o navio propriamente dito foi fornecido pela Marinha Real. A marinha também disponibilizou 85 navegantes e marinheiros bem armados e equipou o navio com artilharia, mosquetes, pólvora e outros armamentos. Grande parte das informações coletadas pela expedição – em particular, os dados astronômicos, geográficos, meteorológicos e antropológicos – tinha um claro valor político e militar. A descoberta de um tratamento eficaz para o escorbuto contribuiu enormemente para o controle britânico dos oceanos e sua capacidade de enviar exércitos para o outro lado do mundo. Cook reivindicou para a Grã-Bretanha muitas das ilhas e terras que ele “descobriu”, mais notadamente a Austrália. E sua expedição assentou as bases para a ocupação britânica no sudoeste do oceano Pacífico, para a conquista da Austrália, da Tasmânia e da Nova Zelândia, para o assentamento de milhões de europeus nas novas colônias e para a exterminação de suas culturas nativas e da maior parte de suas populações nativas.
No século que se seguiu à expedição de Cook, as terras mais férteis da Austrália e da Nova Zelândia foram tomadas de seus antigos habitantes pelos colonizadores europeus. A população nativa foi reduzida em 90%, e os sobreviventes foram submetidos a um regime cruel de opressão racial. Para os aborígenes da Austrália e os maoris da Nova Zelândia, a expedição de Cook foi o começo de uma catástrofe da qual jamais se recuperaram.
Um destino ainda pior acometeu os nativos da Tasmânia. Tendo sobrevivido por 10 mil anos em total isolamento, eles foram completamente exterminados, até o último homem, mulher e criança, um século após a chegada de Cook. Primeiro os colonizadores europeus os expulsaram das partes mais ricas da ilha e depois, cobiçando até mesmo as terras inóspitas que sobraram, os perseguiram e mataram sistematicamente. Os poucos sobreviventes foram acossados para um campo de concentração evangélico, onde missionários bem-intencionados, mas não exatamente tolerantes, tentaram doutriná-los nos costumes do mundo moderno. Os tasmanianos foram instruídos na leitura e na escrita, no cristianismo e em várias “habilidades produtivas”, como costurar roupas e trabalhar na lavoura. Mas eles se recusavam a aprender. Foram se tornando cada vez mais melancólicos, deixavam de ter filhos, perdiam todo o interesse pela vida e acabavam por escolher a única forma de escapar do mundo moderno da ciência e do progresso: a morte.
Infelizmente, a ciência e o progresso os perseguiram até mesmo após a morte. Em nome da ciência, antropólogos e curadores se apropriaram dos cadáveres dos últimos tasmanianos, os quais foram dissecados, pesados e medidos, e analisados em artigos especializados. Seus cérebros e esqueletos foram expostos em museus e em coleções antropológicas. Foi só em 1976 que o Museu da Tasmânia permitiu o enterro do esqueleto de Truganini, o último tasmaniano nativo, morto cem anos antes. O Colégio Real de Cirurgiões da Inglaterra manteve amostras de sua pele e de seu cabelo até 2002.
O navio de Cook foi uma expedição científica protegida por uma força militar ou uma expedição militar acompanhada por alguns cientistas? Isso é como perguntar se o copo está meio cheio ou meio vazio. A resposta é: ambos. A Revolução Científica e o imperialismo moderno foram inseparáveis. Pessoas como o capitão James Cook e o botânico Joseph Banks dificilmente conseguiriam distinguir a ciência do império. E o desafortunado Truganini também não.
Yuval Noah Harari, in Sapiens: uma breve história da humanidade

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