Lucila
tinha cabelos encaracolados. Era sorridente e mais baixa do que o
normal. Desde que a conheci, no primário em São Paulo, fiquei
apaixonado. Pensava nela quando subia na jabuticabeira de casa, para
observar o suicídio das frutas maduras que se atiravam
aleatoriamente dos galhos, enquanto minhas irmãs corriam pelo
quintal.
Havia
um canto debaixo da escada da garagem. Era o meu canto. Por que
adoramos tocas? O darwinismo deve explicar nosso encanto por cantos.
Mas faz parte da seleção natural os amores platônicos?
Meu
pai decidiu se mudar para o Rio de Janeiro. Quando me comunicaram a
notícia, sofri antecipadamente de saudades. Lucila… Como seria a
minha vida sem ela? Que desgraça! A primeira coisa em que pensei foi
fugir de casa, para marcar posição e o meu protesto.
Fui
corrompido pela oferta de uma enorme festa só minha. Toda a escola
seria convidada. Lucila então conheceria minha casa, minha árvore,
meu canto. Correria pelo quintal. Brincaríamos.
Apareceu
uma multidão. A casa parecia uma quermesse. Teve palhaço e mágico.
Eu nem sabia que tinha tantos amigos. A maioria eu não conhecia. Era
difícil se locomover entre tanta gente. Não encontrava a minha
amada. Me lembro que, num certo momento, me escondi na garagem,
sufocado, estressado.
E
ela apareceu para se despedir, com aquele cabelo dourado cacheado,
como molas.
Lucila
era a fim de mim também, eu tinha certeza. Ficamos juntos
conversando. Toda a escola respeitou nossa privacidade. Nos demos as
mãos e fomos ver outro número do palhaço. Passamos o resto do dia
grudados. Foi a única vez em que demos vazão para o nosso amor.
Se
eu não tivesse que me mudar, eu sabia, seríamos o casal mais feliz
da cidade, eu com seis anos, e ela com cinco.
Como
a vida atrapalha histórias de amor… Que lição meu pai me dava ao
me amputar a paixão.
Vivi
no Rio com saudades. Pensava, sonhava, imaginava. Lucila.
Lá,
reencontrei meu melhor amigo, Eduardo G., outro paulista exilado.
Estudamos na mesma classe. Edu já estava enturmado, o que me ajudou
no convívio.
Ficamos
amigos de Roberta e Isabel, duas morenas amadas por toda a escola.
Nas
aulas, dividíamos as mesas com elas. Eu com Roberta, ele com Isabel,
conhecida como Isaboa. Ou vice-versa.
Passávamos
os recreios com elas, para a inveja coletiva. Nas aulas de música,
tocávamos triângulo, elas, coco. Ou vice-versa. Ficávamos juntos,
fora do ritmo, tocando uma outra música, só nossa.
Havia
um obstáculo para o desenvolvimento das paixões. As duas eram
maiores do que eu. Se não me engano, Roberta era a mais alta de
todas. Para um moleque, é um entrave que afugenta o amor.
Especialmente aos oito anos.
Apesar
de toda a escola achar que namorávamos as duas, era pura amizade. E
eu não me esquecia de Lucila e seus cachos malucos. Um dia, eu iria
reencontrá-la.
Até
passar para o ginasial, mudar de prédio, recepcionar novas turmas e
conhecer Carla, loirinha enigmática, linda como a vista do recreio,
o Pão de Açúcar. Do meu tamanho.
Nutri
por ela uma paixão secreta. Quando ela passava, minhas pernas
tremiam. A timidez era na mesma proporção que a minha admiração.
Nunca ouviu a minha voz. Puro amor platônico.
A
maioria de nós compreendia o que significava o amor platônico e já
vivera o seu, idealizara uma garota e sofrera por causa de uma
timidez revoltante. Apesar de a maioria não ter ideia de quem foi
Platão, nem de que seu amor foi definido na Renascença, baseado nos
diálogos do filósofo, que apontavam que o amor mistura fantasia e
realidade pelo ser perfeito, e a essência desse amor é a
idealização.
O
amor platônico é comparado a um amor a distância, sem envolvimento
e contato, que os inseguros alimentam especialmente na adolescência.
Carla
despertava o amor platônico em todo o Colégio Andrews. Para nos
confundir, ela era filha do nosso maior ídolo, Carlos Niemeyer, do
Canal 100, telejornal que revolucionou a linguagem, era
exibido antes dos filmes, e terminava com imagens em câmera lenta,
com câmeras na beira dos gramados, de lances do último clássico de
futebol, sob uma trilha sonora marcante. Queríamos Carla e conviver
com a sua família, sermos convidados para ver os jogos de perto e
termos em mãos aquele acervo.
A
ditadura apertou o cerco. Edu se exilou em Londres. Me mandava cartas
perguntando de futebol e de Carla. Eu mentia. Dizia que estávamos
namorando. Que ficávamos na casa dela nos pegando, apesar dos 11
anos de idade.
Meu
pai foi preso e morto naquele ano. Me fechei. Meu olhar ficou triste,
como o de um cachorro molhado. Muitos passaram a me evitar. Afinal,
eu era filho de um terrorista que atrapalhava o desenvolvimento do
país, como aprendiam com alguns pais, professores, liam na imprensa,
viam nos telejornais.
Eu
ficava muito tempo sozinho no banco da escola. Aos poucos amigos, eu
tentava explicar que meu pai não era bandido. A maioria não tinha
ideia do que se passava nos porões. A censura e o milagre brasileiro
cegavam.
No
meio do ano, minha família foi obrigada a sair do Rio. Na festa de
São João, comuniquei a mudança aos coleguinhas cariocas. Muitos
vieram se despedir. Eu estava numa barraquinha comprando doces,
quando Carla se aproximou para se despedir. Minhas pernas tremeram,
como sempre. Fiquei sem ar.
Ela
disse o meu nome, Marrrcelo, com aquele sotaque carioca delicioso. Me
beijou. “Você vai embora, Marrrcelo?” Eu não disse nada. Mais
um amor era deixado pra trás.
Reencontrei
Lucila no colégio, na volta para São Paulo. Não tinha mais os
cachos. Continuava encantadora. Relembramos o passado. Para ela, eu
também representava o primeiro namorado. Fui gentil. Descobri com 13
anos que talvez o poeta tenha razão, e o amor acaba. Ou muda de
classe.
Pois
tinha uma baixinha moreninha no primeiro colegial, misteriosa,
secreta, apaixonante, de poucas palavras… O problema é que, pra
variar, ela nem reparava na minha existência e nos meus olhos
tristes.
São
os cometas da memória.
Marcelo
Rubens Paiva, in As verdades que ela não diz
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