domingo, 2 de dezembro de 2018

O amor platônico

Lucila tinha cabelos encaracolados. Era sorridente e mais baixa do que o normal. Desde que a conheci, no primário em São Paulo, fiquei apaixonado. Pensava nela quando subia na jabuticabeira de casa, para observar o suicídio das frutas maduras que se atiravam aleatoriamente dos galhos, enquanto minhas irmãs corriam pelo quintal.
Havia um canto debaixo da escada da garagem. Era o meu canto. Por que adoramos tocas? O darwinismo deve explicar nosso encanto por cantos. Mas faz parte da seleção natural os amores platônicos?
Meu pai decidiu se mudar para o Rio de Janeiro. Quando me comunicaram a notícia, sofri antecipadamente de saudades. Lucila… Como seria a minha vida sem ela? Que desgraça! A primeira coisa em que pensei foi fugir de casa, para marcar posição e o meu protesto.
Fui corrompido pela oferta de uma enorme festa só minha. Toda a escola seria convidada. Lucila então conheceria minha casa, minha árvore, meu canto. Correria pelo quintal. Brincaríamos.

Apareceu uma multidão. A casa parecia uma quermesse. Teve palhaço e mágico. Eu nem sabia que tinha tantos amigos. A maioria eu não conhecia. Era difícil se locomover entre tanta gente. Não encontrava a minha amada. Me lembro que, num certo momento, me escondi na garagem, sufocado, estressado.
E ela apareceu para se despedir, com aquele cabelo dourado cacheado, como molas.
Lucila era a fim de mim também, eu tinha certeza. Ficamos juntos conversando. Toda a escola respeitou nossa privacidade. Nos demos as mãos e fomos ver outro número do palhaço. Passamos o resto do dia grudados. Foi a única vez em que demos vazão para o nosso amor.
Se eu não tivesse que me mudar, eu sabia, seríamos o casal mais feliz da cidade, eu com seis anos, e ela com cinco.
Como a vida atrapalha histórias de amor… Que lição meu pai me dava ao me amputar a paixão.

Vivi no Rio com saudades. Pensava, sonhava, imaginava. Lucila.
Lá, reencontrei meu melhor amigo, Eduardo G., outro paulista exilado. Estudamos na mesma classe. Edu já estava enturmado, o que me ajudou no convívio.
Ficamos amigos de Roberta e Isabel, duas morenas amadas por toda a escola.
Nas aulas, dividíamos as mesas com elas. Eu com Roberta, ele com Isabel, conhecida como Isaboa. Ou vice-versa.
Passávamos os recreios com elas, para a inveja coletiva. Nas aulas de música, tocávamos triângulo, elas, coco. Ou vice-versa. Ficávamos juntos, fora do ritmo, tocando uma outra música, só nossa.
Havia um obstáculo para o desenvolvimento das paixões. As duas eram maiores do que eu. Se não me engano, Roberta era a mais alta de todas. Para um moleque, é um entrave que afugenta o amor. Especialmente aos oito anos.
Apesar de toda a escola achar que namorávamos as duas, era pura amizade. E eu não me esquecia de Lucila e seus cachos malucos. Um dia, eu iria reencontrá-la.

Até passar para o ginasial, mudar de prédio, recepcionar novas turmas e conhecer Carla, loirinha enigmática, linda como a vista do recreio, o Pão de Açúcar. Do meu tamanho.
Nutri por ela uma paixão secreta. Quando ela passava, minhas pernas tremiam. A timidez era na mesma proporção que a minha admiração. Nunca ouviu a minha voz. Puro amor platônico.
A maioria de nós compreendia o que significava o amor platônico e já vivera o seu, idealizara uma garota e sofrera por causa de uma timidez revoltante. Apesar de a maioria não ter ideia de quem foi Platão, nem de que seu amor foi definido na Renascença, baseado nos diálogos do filósofo, que apontavam que o amor mistura fantasia e realidade pelo ser perfeito, e a essência desse amor é a idealização.
O amor platônico é comparado a um amor a distância, sem envolvimento e contato, que os inseguros alimentam especialmente na adolescência.
Carla despertava o amor platônico em todo o Colégio Andrews. Para nos confundir, ela era filha do nosso maior ídolo, Carlos Niemeyer, do Canal 100, telejornal que revolucionou a linguagem, era exibido antes dos filmes, e terminava com imagens em câmera lenta, com câmeras na beira dos gramados, de lances do último clássico de futebol, sob uma trilha sonora marcante. Queríamos Carla e conviver com a sua família, sermos convidados para ver os jogos de perto e termos em mãos aquele acervo.

A ditadura apertou o cerco. Edu se exilou em Londres. Me mandava cartas perguntando de futebol e de Carla. Eu mentia. Dizia que estávamos namorando. Que ficávamos na casa dela nos pegando, apesar dos 11 anos de idade.

Meu pai foi preso e morto naquele ano. Me fechei. Meu olhar ficou triste, como o de um cachorro molhado. Muitos passaram a me evitar. Afinal, eu era filho de um terrorista que atrapalhava o desenvolvimento do país, como aprendiam com alguns pais, professores, liam na imprensa, viam nos telejornais.
Eu ficava muito tempo sozinho no banco da escola. Aos poucos amigos, eu tentava explicar que meu pai não era bandido. A maioria não tinha ideia do que se passava nos porões. A censura e o milagre brasileiro cegavam.

No meio do ano, minha família foi obrigada a sair do Rio. Na festa de São João, comuniquei a mudança aos coleguinhas cariocas. Muitos vieram se despedir. Eu estava numa barraquinha comprando doces, quando Carla se aproximou para se despedir. Minhas pernas tremeram, como sempre. Fiquei sem ar.
Ela disse o meu nome, Marrrcelo, com aquele sotaque carioca delicioso. Me beijou. “Você vai embora, Marrrcelo?” Eu não disse nada. Mais um amor era deixado pra trás.

Reencontrei Lucila no colégio, na volta para São Paulo. Não tinha mais os cachos. Continuava encantadora. Relembramos o passado. Para ela, eu também representava o primeiro namorado. Fui gentil. Descobri com 13 anos que talvez o poeta tenha razão, e o amor acaba. Ou muda de classe.
Pois tinha uma baixinha moreninha no primeiro colegial, misteriosa, secreta, apaixonante, de poucas palavras… O problema é que, pra variar, ela nem reparava na minha existência e nos meus olhos tristes.
São os cometas da memória.
Marcelo Rubens Paiva, in As verdades que ela não diz

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