Em
1984, duas pequenas placas de argila de formato vagamente retangular
foram encontradas em Tel Brak, Síria, datando do quarto milênio
antes de Cristo. Eu as vi, um ano antes da guerra do Golfo, numa
vitrine discreta do Museu Arqueológico de Bagdá.
São
objetos simples, ambos com algumas marcas leves: um pequeno entalhe
em cima e uma espécie de animal puxado por uma vara no centro. Um
dos animais pode ser uma cabra, e nesse caso o outro é provavelmente
uma ovelha. O entalhe, dizem os arqueólogos, representa o número
dez. Toda a nossa história começa com essas duas modestas placas.'
Eles estão - se a guerra os poupou - entre os exemplos mais antigos
de escrita que conhecemos.
Há
algo intensamente comovente nessas placas. Quando olhamos essas peças
de argila levadas por um rio que não existe mais, observando as
incisões delicadas que retratam animais transformados em pó há
milhares e milhares de anos, talvez uma voz seja evocada, um
pensamento, uma mensagem que nos diz: “Aqui estiveram dez cabras”,
“Aqui estiveram dez ovelhas”, palavras pronunciadas por um
fazendeiro cuidadoso no tempo em que os desertos eram verdes. Pelo
simples fato de olhar essas placas, prolongamos a memória dos
primórdios do nosso tempo, preservamos um pensamento muito tempo
depois que o pensador parou de pensar e nos tornamos participantes de
um ato de criação que permanece aberto enquanto as imagens
entalhadas forem vistas, decifradas, lidas.
Tal
como meu nebuloso ancestral sumério lendo as duas pequenas placas
naquela tarde inconcebivelmente remota, eu também estou lendo, aqui
na minha sala, através de séculos e mares. Sentado à minha
escrivaninha, cotovelos sobre a página, queixo nas mãos, abstraído
por um momento da mudança de luz lá fora e dos sons que se elevam
da rua, estou vendo, ouvindo, seguindo (mas essas palavras não fazem
justiça ao que está acontecendo dentro de mim) uma história, uma
descrição, um argumento. Nada se move, exceto meus olhos e a mão
que vira ocasionalmente a página, e contudo algo não exatamente
definido pela palavra texto desdobra-se, progride, cresce e deita
raízes enquanto leio. Mas como acontece esse processo?
A
leitura começa com os olhos. “O mais agudo dos nossos sentidos é
a visão”, escreveu Cícero, observando que quando vemos um texto
lembramo-nos melhor dele do que quando apenas o ouvimos. Santo
Agostinho louvou (e depois condenou) os olhos como o ponto de entrada
do mundo,’ e santo Tomás de Aquino chamou a visão de “o maior
dos sentidos pelo qual adquirimos conhecimento”.’ Até aqui está
óbvio para qualquer leitor: as letras são apreendidas pela visão.
Mas por meio de qual alquimia essas letras se tornam palavras
inteligíveis? O que acontece dentro de nós quando nos defrontamos
com um texto? De que forma as coisas vistas, as “substâncias”
que chegam através dos olhos ao nosso laboratório interno, as cores
e formas dos objetos e das letras se tornam legíveis?
O
que é, na verdade, o ato que chamamos de ler?
Empédocles,
no século v a.C., descreveu os olhos como nascidos da deusa
Afrodite, que “confinou um fogo nas membranas e tecidos delicados;
estes seguraram a águia profunda que fluía em torno, mas deixaram
passar as chamas internas para fora”. Mais de um século depois,
Epicuro imaginou essas chamas como películas finas de átomos que
fluíam da superfície de cada objeto e entravam em nossos olhos e
mentes como uma chuva constante e ascendente, encharcando-nos de
todas as qualidades do objeto.
Euclides,
contemporâneo de Epicuro, propôs uma teoria oposta: dos olhos do
observador saem raios para apreender o objeto observado. Problemas
aparentemente insuperáveis infestavam ambas as teorias. Por exemplo,
no caso da primeira, a assim chamada teoria da “intromissão”,
como poderia a película de átomos emitida por um objeto grande —
um elefante ou o monte Olimpo entrar num espaço tão pequeno como o
olho humano?
Quanto
à segunda, a teoria da “extromissão”, que raio poderia sair dos
olhos e, numa fração de segundo, alcançar as longínquas estrelas
todas as noites?
Algumas
décadas antes, Arístóteles sugerira uma outra teoria. Antecipando
e corrigindo Epicuro, ele afirmara que eram as qualidades das coisas
observadas — e não uma película de átomos — que viajavam
através do ar (ou de algum outro meio) até os olhos do observador
assim, o que se apreendia não eram as dimensões reais, mas o
tamanho e a forma relativos de uma montanha. O olho humano, segundo
Aristóteles, era como um camaleão, assumindo a forma e a cor do
objeto observado e passando essa informação, via humores do olho,
para as todo-poderosas entranhas (splanchna), um conglomerado
de órgãos que incluía coração, fígado, pulmões, bexiga e vasos
sanguíneos e controlava os movimentos e os sentidos.
Seis
séculos mais tarde, o médico grego Galeno apresentou uma quarta
solução, contradizendo Epicuro e seguindo Euclides. Galeno propôs
que um “espírito visual”, nascido no cérebro, cruzava o olho
através do nervo ótico e saía para o ar. O próprio ar tornava-se
então capaz de percepção, apreendendo as qualidades dos objetos
percebidos, por mais longe que estivessem. Através do olho, essas
qualidades eram retransmitidas de volta ao cérebro e desciam pela
medula aos nervos dos sentidos e do movimento. Para Aristóteles, o
observador era uma entidade passiva que recebia pelo ar a coisa
observada, sendo esta em seguida comunicada ao coração, sede de
todas as sensações, inclusive a visão. Para Galeno, o observador,
tornando o ar sensível, desempenhava um papel ativo, e a raiz de
onde nascia a visão estava no fundo do cérebro.
Os
estudiosos medievais, para quem Galeno e Aristóteles eram as fontes
do conhecimento científico, acreditavam em geral que se poderia
encontrar uma relação hierárquica entre essas duas teorias. Não
se tratava de uma teoria superar a outra: o importante era extrair de
cada uma delas a compreensão de como as diferentes partes do corpo
relacionavam-se com as percepções do mundo externo - e também como
essas partes relacionavam-se umas com as outras. Gentile da Foligno,
médico italiano do século XIV, sentenciou que essa compreensão era
“um passo tão essencial para a medicina quanto o é o alfabeto
para a leitura” e recordou que santo Agostinho, um dos primeiros
Pais da Igreja, já dedicara atenção cuidadosa à questão. Para
ele, cérebro e coração funcionavam como pastores daquilo que os
sentidos armazenavam na nossa memória, e ele usou o verbo col
igere (significando ao mesmo tempo coletar e resumir) para
descrever como essas impressões eram recolhidas de compartimentos
separados da memória e “guiadas para fora de suas velhas tocas,
porque não há nenhum outro lugar para onde possam ir”.
A
memória era apenas uma das funções que se beneficiavam dessa
administração zelosa dos sentidos. Era comumente aceito pelos
estudiosos medievais (como Galeno sugerira) que visão, audição,
olfato, gosto e tato alimentavam-se de um repositório sensorial
geral Localizado no cérebro, uma área conhecida às vezes como
"senso comum", da qual derivava não apenas a memória, mas
também o conhecimento, as fantasias e os sonhos.
Essa
área, por sua vez, estava conectada ao splanchna
aristotélico, então reduzido pelos comentadores medievais
exclusivamente ao coração, centro de todos os sentimentos.
Assim,
atribuiu-se aos sentidos um parentesco direto com o cérebro,
enquanto se declarava que o coração, em última instância, era o
senhor do corpo. Um manuscrito em alemão do tratado de Aristóteles
sobre lógica e filosofia natural, datado do final do século XIV,
retrata a cabeça de um homem, olhos e boca abertos, narinas
alargadas, uma orelha cuidadosamente realçada. Dentro do cérebro
estão cinco pequenos círculos conectados que representam, da
esquerda para a direita, a sede principal do senso comum e, na
sequência, as sedes da imaginação, da fantasia, do poder
cogitativo e da memória. De acordo com o comentário que acompanha a
ilustração, o círculo do senso comum relaciona-se ainda com o
coração, também representado no desenho. Esse esquema é um bom
exemplo de como se imaginava o processo da percepção no final da
Idade Média, com um pequeno adendo: embora não esteja presente
nessa ilustração, supunha-se comumente (com base em Galeno) que na
base do cérebro havia uma “rede maravilhosa” – rete
mirabile - de pequenos vasos que agiam como canais de comunicação
quando qualquer coisa que chegasse ao cérebro era refinada. Essa
rete mirabile aparece no desenho de um cérebro que Leonardo
da Vínci fez por volta de 1508, marcando claramente os ventrículos
separados e atribuindo as várias faculdades mentais a seções
diferentes. Segundo Leonardo, “o senso comune é que julga
as impressões transmitidas pelos outros sentidos [...] e seu lugar é
no meio da cabeça, entre a impresiva [centro das impressões]
e a memoria [centro da memória]. Os objetos circundantes
transmitem suas imagens para os sentidos e estes as passam para a
impresiva. A impresiva comunica-os ao senso
comume e dali elas
são impressas na memória, onde se tornam mais ou menos fixas, de
acordo com a importância e a força do Objeto em questão.” A
mente humana, na época de Leonardo, era considerada um pequeno
laboratório onde o material recolhido pelos olhos, Ouvidos e outros
órgãos da percepção tornavam-se “impressões” no cérebro,
sendo então canalizadas através do centro do senso comum e depois
transformadas em umas das várias faculdades - como a memória - sob
a influência do coração supervisor. A visão de letras negras
(para usar uma imagem alquímica) tornou-se, por meio desse processo,
o ouro do conhecimento).
Mas
uma questão fundamental continuava sem solução: somos nós,
leitores, que nos estendemos e capturamos as letras numa página, de
acordo com as teorias de Euclides e Galeno? Ou são as letras que vêm
aos nossos sentidos, como Epicuro e Aristóteles afirmaram? Para
Leonardo e seus contemporâneos, a resposta (ou indícios de
resposta) poderia ser encontrada numa tradução do século XIII de
um livro escrito duzentos anos antes (tão demoradas são às vezes
as hesitações da erudição), no Egito, pelo estudioso de Basra
al-Hasan ibn al-Haytham, conhecido no Ocidente como Alhazen.
Alberto
Manguel, in Uma história da leitura
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