sábado, 1 de dezembro de 2018

Depois do fim

Depois do fim, o tempo desacelerou. Pelo menos foi essa a percepção de Ludo. A 23 de fevereiro de 1976 escreveu no primeiro dos diários: 
 
Hoje não aconteceu nada. Dormi. Dormindo sonhei que dormia. Árvores, bichos, uma profusão de insetos partilhavam os seus sonhos comigo. Ali estávamos todos, sonhando em coro, como uma multidão, num quarto minúsculo, trocando ideias e cheiros e carícias. Lembro-me que fui uma aranha avançando contra a presa e a mosca presa na teia dessa aranha. Senti-me flores desabrochando ao sol, brisas carregando pólenes. Acordei e estava sozinha. Se, dormindo, sonhamos dormir, podemos, despertos, acordar dentro de uma realidade mais lúcida? 
 
Uma manhã, levantou-se, abriu uma torneira e a água não jorrou. Assustou-se. Ocorreu-lhe pela primeira vez que poderia permanecer longos anos encerrada no apartamento. Fez um inventário do que havia na despensa. Não precisaria preocupar-se com o sal. Encontrou também farinha para vários meses, bem como sacos e sacos de feijão, pacotes de açúcar, grades de vinho e de refrigerantes, dezenas de latas de sardinha, de atum e de salsichas.
Nessa noite choveu. Ludo abriu um guarda-chuva e subiu ao terraço, arrastando baldes, bacias e garrafas vazias. Manhã cedo cortou as buganvílias e as flores ornamentais. Colocou uma mão-cheia de caroços de limão no canteiro onde enterrara o minúsculo assaltante. Em quatro outros semeou milho e feijão. Em outros cinco plantou as últimas batatas que lhe restavam. Uma das bananeiras carregava um enorme cacho. Tirou algumas bananas e levou-as para a cozinha. Mostrou-as a Fantasma:
Vês? Orlando plantou as bananeiras para que produzissem lembranças. A nós vão matar-nos a fome. Ou melhor, a mim vão matar-me a fome, suponho que tu não aprecias bananas.
No dia seguinte, a água retornou às torneiras. Dali para a frente iria falhar com frequência, assim como a eletricidade, até desaparecer de vez. Nas primeiras semanas, incomodavam-na mais os apagões do que os cortes de água. Fazia-lhe falta a rádio. Gostava de ouvir o noticiário internacional na BBC e na Rádio Difusão Portuguesa . Escutava também as estações angolanas, mesmo se a irritavam os constantes discursos contra o colonialismo, o neocolonialismo e as forças da reação. O rádio era um aparelho magnífico, com caixa de madeira, estilo art deco , e teclas em marfim. Carregava-se numa das teclas e ele iluminava-se como uma cidade. Ludo girava os botões à procura de vozes. Chegavam-lhe frases soltas em francês, inglês ou nalguma obscura língua africana:
Israeli commandos rescue airliner hostages at Entebe…
Mao Tse Tung est mort…
Combattants de l’indépendance aujourd’hui victorieuse…
Nzambe azali bolingo mpe atonda na boboto…
Além disso havia o gira-discos. Orlando colecionava LPs da canção francesa. Jacques Brel, Charles Aznavour, Serge Reggiani, Georges Brassens, Léo Ferré. A portuguesa ouvia Brel enquanto o mar engolia a luz. A cidade adormecendo e ela deslembrando nomes. Uma nesga de sol ardendo ainda. E a noite, pouco a pouco, e o tempo se alongando sem rumo. O corpo fatigado e a noite de azul em azul. O cansaço calcando-lhe os rins. Ela supondo-se rainha, acreditando que alguém, em algum lado, a esperaria como se espera uma rainha. Mas não havia ninguém, em qualquer lugar do mundo, aguardando por ela. A cidade adormecendo e os pássaros como vagas, e as vagas como aves, e as mulheres como mulheres, e ela nada segura de serem as mulheres o futuro do Homem.
Uma tarde, despertou-a um redondo alvoroço de vozes. Levantou-se em pânico, imaginando que iam invadir-lhe a casa. A sala de visitas dava para o apartamento de Rita Costa Reis. Colou o ouvido à parede. Duas mulheres, um homem, várias crianças. A voz do homem era ampla, sedosa, muito agradável. Falavam entre eles numa daquelas línguas melódicas e enigmáticas que por vezes o rádio lhe trazia. Uma ou outra palavra soltava-se do conjunto e ficava aos saltos, como uma bola colorida, indo e vindo no interior do seu cérebro:
Bolingô. Bisô. Matondi.
O Prédio dos Invejados foi-se animando com a chegada de novos moradores. Gente vinda dos musseques, camponeses recém-chegados à cidade, angolanos regressados do vizinho Zaire e legítimos zairenses. Nenhum habituado a viver em prédios de apartamentos. Uma madrugada, bem cedo, Ludo espreitou pela janela do quarto e deu com uma mulher a urinar na varanda do décimo A. Na varanda do décimo D, cinco galinhas assistiam ao nascer do sol. As traseiras do edifício davam para um extenso átrio, que, poucos meses antes, ainda servira de parque de estacionamento. Construções altas, ao lado e adiante, fechavam o espaço. Uma flora desvairada arremessava-se sobre toda a extensão. Água emergia de algum abismo, no centro, e corria solta, até morrer entre montes de lixo e barro, junto às paredes dos prédios. Naquele local espreguiçara-se em tempos uma lagoa. Orlando gostava de recordar os anos trinta, ele, um menino, quando vinha brincar com os amigos entre o capim alto. Encontravam ossadas de crocodilos e hipopótamos. Caveiras de leões.
Ludo testemunhou o ressuscitar da lagoa. Assistiu, inclusive, ao regresso dos hipopótamos (sejamos objetivos: de um hipopótamo). Isso sucedeu muitos anos depois. Lá chegaremos. Nos meses que se seguiram à Independência, a mulher e o cão repartiram atum e sardinhas, salsichas e chouriços. Esgotadas as latas, passaram a comer sopas de feijão e arroz. Por essa altura, já se sucediam dias inteiros sem energia elétrica. Ludo começou a fazer pequenas fogueiras na cozinha. Primeiro, queimou os caixotes, papéis sem préstimo, os galhos secos da buganvília. A seguir os móveis inúteis. Ao retirar as traves da cama do casal descobriu, debaixo do colchão, uma bolsinha de couro. Abriu-a, e, sem surpresa, viu dezenas de pequenas pedras rolarem no soalho. Após queimar camas e cadeiras começou a arrancar os ladrilhos. A madeira densa, pesada, ardia devagar, gerando um belo fogo. Ao princípio usou fósforos. Esgotados os fósforos passou a servir-se de uma das lupas com que Orlando costumava estudar a sua coleção de selos ultramarinos. Esperava que o sol, por volta das dez da manhã, inundasse de luz o chão da cozinha. Evidentemente, só conseguia cozinhar em dias de sol.
Veio a fome. Durante semanas, longas como meses, Ludo mal comeu. Alimentou Fantasma a papas de farinha de trigo. As noites fundiam-se com os dias. Acordava e via o cão a vigiá-la numa feroz ansiedade. Adormecia e sentia-lhe o bafo ardente. Foi à cozinha procurar uma faca, a de lâmina mais longa, a mais afiada, e passou a trazê-la presa à cintura, como uma espada. Também ela se debruçava sobre o sono do animal. Várias vezes lhe encostou a faca ao pescoço.
Entardecia, amanhecia, e era o mesmo vazio sem princípio ou fim. A indeterminada altura escutou, vindo do terraço, um forte restolhar. Subiu, apressada, e encontrou Fantasma a devorar um pombo. Adiantou-se, decidida a arrancar-lhe um pedaço. O cão fincou as patas no chão e mostrou-lhe os dentes. Um sangue espesso, noturno, ao qual se agarravam ainda restos de penas e de carne, cobria-lhe o focinho. A mulher recuou. Lembrou-se então de preparar um conjunto de armadilhas muito simples. Caixotes virados com a boca para baixo, numa inclinação precária, apoiados num graveto. Um fio atado ao graveto. À sombra, dois ou três diamantes. Esperou mais de duas horas, agachada, escondida atrás do guarda-chuva, até um pombo pousar no pátio. A ave aproximou-se com titubeantes passinhos de bêbado. Recuou. Bateu asas, afastou-se, perdeu-se no céu iluminado. Regressou dali a pouco. Desta vez rodeou a armadilha, bicou o fio, com desconfiança, e então, atraída pelo brilho das pedras, avançou para a sombra do caixote. Ludo puxou o fio. Nessa tarde caçou outros dois pombos. Cozinhou-os e recuperou as forças. Nos meses seguintes apanhou muitos mais.
Não choveu durante muito tempo. Ludo regou os canteiros com a água acumulada na piscina. Finalmente, rasgou-se a fria cortina de nuvens baixas, a que em Luanda se chama cacimbo, e a água voltou a cair. O milho cresceu. Os feijoeiros deram flor e vagens. A romãzeira encheu-se de frutos vermelhos. Por essa altura, começaram a rarear os pombos no céu da cidade. Um dos últimos a cair na armadilha trazia uma anilha enrolada à pata direita. Ludo encontrou, presa à anilha, um pequeno cilindro de plástico. Abriu-o e retirou um papelinho enrolado, como uma rifa. Leu a frase escrita a tinta lilás, numa caligrafia miúda, firme:
Amanhã. Seis horas, lugar habitual. Muito cuidado. Amo-te.
Voltou a enrolar o papel e a recolocá-lo no pequeno cilindro. Hesitou. A fome roía-lhe o estômago. Além disso, o pombo engolira uma ou duas das pedras. Restavam poucas, algumas demasiado grandes para servirem de isco. Por outro lado, o bilhete intrigava-a. Sentia-se, de súbito, poderosa. O destino de um casal estava ali, nas suas mãos, palpitando de puro terror. Segurou-o com firmeza, a esse destino alado, e lançou-o de encontro ao amplo céu. Escreveu no diário: 
 
Penso na mulher esperando o pombo. Não confia nos correios – ou já não haverá correios? Não confia nos telefones – ou os telefones terão, entretanto, deixado de funcionar? Não confia nas pessoas, isso é certo. A humanidade nunca funcionou muito bem. Vejo-a segurando o pombo, sem saber que, antes dela, eu o tive a tremer entre as minhas mãos. A mulher quer fugir. Não sei do que quer fugir. Deste país que se desmorona, de um casamento sufocante, de um futuro que lhe aperta os pés, como sapatos alheios? Pensei em acrescentar ao bilhete uma pequena nota – “Mate o Mensageiro”. Sim, se ela matasse o pombo, encontraria um diamante. Assim lerá o bilhete, antes de devolver o pombo ao pombal. Às seis da manhã irá encontrar-se com um homem que eu imagino alto, de gestos sucintos e coração atento. Uma vaga tristeza o ilumina (a este homem) enquanto prepara a fuga. Fugir fará dele um traidor à Pátria. Errará pelo mundo, amparando-se ao amor de uma mulher, mas nunca mais conseguirá adormecer sem antes levar a mão direita ao lado esquerdo do peito. A mulher reparará no gesto.
Dói-te alguma coisa?
O homem sacudirá a cabeça, negando. Nada. Não tem nada. Como explicar que lhe dói a infância perdida? 
 
Espreitando através da janela do quarto, podia ver, nas dilatadas manhãs de sábado, uma das vizinhas, na varanda do décimo A, a pilar milho. Via-a depois a bater o funge. A preparar e a grelhar peixe, ou, outras vezes, gordas pernas de frango. O ar enchia-se de um fumo áspero, cheiroso, que abria o apetite. Orlando apreciava a culinária angolana. Ludo, porém, recusou-se sempre a cozinhar coisas de pretos. Muito se arrependeu. Naqueles dias só lhe apetecia comer churrasco. Começou a vigiar as galinhas que ficavam na varanda, ciscando, ao amanhecer, os primeiros grãos de sol. Aguardou por uma madrugada de domingo. A cidade dormia. Debruçou-se da janela e fez deslizar um cordel, com um nó corredio na ponta, até à varanda do décimo A. Ao fim de uns quinze minutos conseguiu laçar o pescoço de um enorme galo negro. Deu um puxão forte, e alçou-o rapidamente. Para sua surpresa o animal ainda estava vivo (embora não muito) quando o pousou no chão do quarto. Sacou a faca da cintura, ia para o degolar – quando a deteve súbita inspiração. Teria bastante milho durante os próximos meses, além de feijões e bananas. Com um galo e uma galinha poderia começar uma criação. Seria bom comer ovos frescos todas as semanas. Voltou a descer a corda e dessa vez conseguiu laçar uma das galinhas por uma pata. A infeliz debateu-se num horrendo alarido, soltando plumas e penas e poeira. No instante seguinte, o prédio despertou com os gritos da vizinha:
Ladrões! Ladrões!
A seguir, constatada a impossibilidade de alguém haver galgado as lisas paredes para alcançar a varanda e roubar os galináceos, as acusações transformaram-se num aterrorizado lamento:
Feitiço... Feitiço...
E logo a seguir numa certeza:
A Kianda... A Kianda...
Ludo ouvira Orlando falar da Kianda. O cunhado tentou explicar-lhe a diferença entre Kiandas e sereias:
A Kianda é uma entidade, uma energia capaz do bem e do mal. Essa energia se exprime através de luzes coloridas emergindo da água, das ondas do mar e da fúria dos ventos. Os pescadores prestam-lhe tributo. Quando eu era criança e brincava junto à lagoa, atrás deste prédio, encontrava sempre oferendas. Às vezes a Kianda sequestrava um passeante. As pessoas reapareciam dias depois, muito longe, junto a outras lagoas ou rios, ou numa praia qualquer. Isso acontecia muito. A partir de certa altura a Kianda passou a ser representada como uma sereia. Transformou-se numa sereia, mas manteve os poderes originais.
Foi desta forma, com um furto grosseiro, e um golpe de sorte, que Ludo iniciou uma pequena criação de galináceos, no terraço, contribuindo ao mesmo tempo para reforçar a crença dos luandenses na presença e na autoridade das Kiandas.
José Eduardo Agualusa, in Teoria geral do esquecimento

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