O
Egito floresceu no século XI sob o domínio dos fatímidas, tirando
sua riqueza do vale do Nilo e do comércio com seus vizinhos do
Mediterrâneo, enquanto suas fronteiras arenosas eram protegidas por
um exército recrutado no exterior - berberes, sudaneses e turcos.
Esse arranjo heterogêneo de comércio internacional e mercenários
deu ao Egito fatímida todas as vantagens e desígnios de um estado
verdadeiramente cosmopolita. Em 1004, o califa al-Hakim (que assumira
o poder aos onze anos de idade e desaparecera misteriosamente durante
uma caminhada solitária 25 anos depois) fundou uma grande academia
no Cairo - a Dar al-Ilm, ou Casa da Ciência - segundo o modelo de
instituições pré-islâmicas, doando ao povo sua importante coleção
de manuscritos e decretando que “todo mundo pode vir aqui para ler,
transcrever e instruir-se”. As decisões excêntricas de al-Hakim -
proibiu jogo de xadrez e a venda de peixes sem escamas - e sua
notória sede de sangue foram temperadas, na imaginação popular,
por seu sucesso administrativo. Seu objetivo era tornar o Cairo
fatímida não apenas o centro simbólico do poder político, mas
também a capital da busca artística e da pesquisa científica; com
essa ambição, convidou para a corte muitos astrônomos e
matemáticos famosos, entre eles al-Haytham. A missão oficial de
al-Haytham era estudar um método que regulasse o fluxo do Nilo. Isso
ele fez, sem êxito, mas também gastou seus dias preparando uma
refutação das teorias astronômicas de Ptolomeu (que, segundo seus
inimigos, “era menos uma refutação do que um novo conjunto de
dúvidas”) e suas noites escrevendo o grosso volume sobre ótica
que lhe asseguraria a fama.
De
acordo com al-Haytham, todas as percepções do mundo externo
envolvem uma certa influência deliberada que deriva da nossa
faculdade de julgar. Para desenvolver essa teoria, al-Haytham seguiu
o argumento básico da teoria da intromissão de Aristóteles -
segundo a qual as qualidades do que vemos entram no olho por meio do
ar - e fundamentou sua escolha com explicações físicas,
matemáticas e fisiológicas precisas.
Mas,
de forma mais radical, al-Haytham fez uma distinção entre “sensação
pura” e “percepção”, sendo a primeira inconsciente ou
involuntária - ver a luz fora da minha janela e as formas cambiantes
da tarde – e exigindo a segunda um ato voluntário de
reconhecimento seguir um texto numa página. A importância do
argumento de al-Haytham estava em identificar pela primeira vez, no
ato de perceber, uma gradação da ação consciente que vai do ver
ao decifrar ou ler.
Al-Haytham
morreu no Cairo, em 1038. Dois séculos mais tarde, o erudito inglês
Roger Bacon - tentando justificar o estudo da ótica ao papa Clemente
IV numa época em que certas facções da Igreja Católica
sustentavam violentamente que a pesquisa científica era contrária
ao dogma cristão – ofereceu um resumo revisado da teoria
al-Haytham.
Segundo
al-Haytham (e, ao mesmo tempo, minimizando a importância da
sabedoria islâmica), Bacon explicou a Sua Santidade a mecânica da
teoria da intromissão.
Segundo
Bacon, quando olhamos para um objeto (uma árvore ou as letras SOL),
forma-se uma pirâmide visual que tem sua base no objeto e seu ápice
no centro da curvatura da córnea. Nós “vemos” quando a pirâmide
entra em nosso olho e seus raios são dispostos sobre a superfície
do nosso globo ocular, refratados de tal forma que não se cruzam.
Ver, para Bacon, era o processo ativo pelo qual uma imagem do objeto
entrava no olho e era então apreendida pelos “poderes visuais”
dele.
Mas
como essa percepção se torna leitura? Como o ato de apreender
letras relaciona-se com um processo que envolve não somente visão e
percepção, mas inferência, julgamento, memória, reconhecimento,
conhecimento, experiência, prática? Al-Haytham sabia (e Bacon
certamente concordava) que todos esses elementos necessários para
realizar o ato de ler conferiam-lhe uma complexidade impressionante,
cujo desempenho satisfatório exigia a coordenação de centenas de
habilidades diferentes. E não apenas essas habilidades, mas o
momento, o lugar e a plaquinha, o rolo, a página ou a tela sobre a
qual o ato é realizado afetam a leitura: para o pastor sumério
anônimo, a aldeia perto de onde pastoreava suas cabras e a argila
arredondada; para al-Haytham, a nova sala branca da academia do Cairo
e o manuscrito de Ptolomeu lido desdenhosamente; para Bacon, a cela
da prisão a que fora condenado por seus ensinamentos heterodoxos e
seus preciosos volumes científicos; para Leonardo, a corte do rei
Francisco I, onde passou seus últimos anos, e os cadernos de
anotações que mantinha em código secreto, os quais só podem ser
lidos diante de um espelho. Todos esses elementos desconcertantemente
diversos unem-se naquele ato único; até aí, al-Haytham presumira.
Mas
o modo como tudo acontecia, que conexões intrincadas e fabulosas
esses elementos estabeleciam entre eles, essa era uma questão que,
para al-Haytham e seus leitores, permanecia sem resposta.
Os
estudos modernos de neurolinguística, a relação entre cérebro e
linguagem, começaram quase oito séculos e meio depois de
al-Haythan, em 1865. Naquele ano, dois cientistas franceses, Michel
Dax e Paul Brocat sugeriram em estudos simultâneos, mas separados,
que a grande maioria da humanidade, em consequência de um processo
genético que começa na concepção, nasce com um hemisfério
cerebral esquerdo que se tornará a parte dominante do cérebro para
codificar e decodificar a linguagem; uma proporção muito menor, em
sua maioria canhotos ou ambidestros, desenvolve essa função no
hemisfério direito. Em uns poucos casos (pessoas predispostas
geneticamente a um hemisfério esquerdo dominante), danos precoces ao
hemisfério esquerdo resultam numa reprogramação cerebral e levam
ao desenvolvimento da função da linguagem no hemisfério direito.
Mas nenhum dos hemisférios atuará como codificador e decodificador
enquanto a pessoa não for exposta efetivamente à linguagem.
No
momento em que o primeiro escriba arranhou e murmurou as primeiras
letras, o corpo humano já era capaz de executar os atos de escrever
e ler que ainda estavam no futuro.
Ou
seja, o corpo era capaz de armazenar, recordar e decifrar todos os
tipos de sensação, inclusive os sinais arbitrários da linguagem
escrita ainda por ser inventados. Essa noção de que somos capazes
de ler antes de ler de fato - na verdade, antes mesmo de vermos uma
página aberta diante de nós - leva-nos de volta à ideia platônica
do conhecimento preexistente dentro de nós antes de a coisa ser
percebida. A própria fala desenvolve-se seguindo um padrão
semelhante. “Descobrimos” uma palavra porque o objeto ou ideia
que ela representa já está em nossa mente, pronto para ser ligado à
palavra. É como se nos fosse oferecido um presente do mundo externo
(por nossos antepassados, por aqueles que primeiro falam conosco),
mas a capacidade de apreender o presente é nossa. Nesse sentido, as
palavras ditas (e, mais tarde, as palavras lidas) não pertencem a
nós nem aos nossos pais, aos nossos autores: elas ocupam um espaço
de significado compartilhado, um limiar comum que está no começo da
nossa relação com as artes da conversação e da leitura.
Alberto
Manguel, in Uma história da leitura
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