Quem,
eu? Mexer-lhe nas suas coisas? O senhor pode inquirir em todos: não
mexi nem toquei na sua mala. Alguém fez. Não eu, Navaia Caetano.
Não vou dizer quem foi. A boca fala mas não aponta. Além disso, o
morcego chorou por causa da boca. Mas eu vi esse mexilhento. Sim, vi.
Era um vulto abutreando as coisas do senhor. Aquela sombra esvoou e
pousou nos meus olhos, pousou em todos os cantos da escuridão. Nem
parecia arte de gente. Chiças, até me estremexe a alma só de
lembrar.
Mas
agora eu pergunto: levaram-lhe coisas? É que os velhos, aqui, são
os próprios tiradores. Não é que roubem. Só tiram. Tiram sem
chegarem nunca a roubar. Eu explico: nesta fortaleza ninguém é dono
de nada. Se não há proprietário não há roubo. Não é assim?
Aqui o capim é que come a vaca.
Nego
o roubo mas confesso o crime. Digo logo, senhor inspector: fui eu que
matei Vasto Excelêncio. Já não precisa procurar. Estou aqui, eu.
Vou juntar outra verdade, ainda mais parecida com a realidade: esse
mulato se matou ele mesmo usando minhas mãos. Ele que se condenou,
eu só executei seu desejo matador. O que cumpri, se fiz com alma e
corpo, não foi por ódio. Não tenho força para odiar. Eu sou como
a minhoca: não encosto desvontades contra ninguém. A minhoca,
senhor inspector, assim cega e rasa, quem ela pode odiar?
Lhe
explico, com permissão de sua paciência. Chegue-se mais à luz, não
receie o fumo. Nem tenha medo de queimar: não há outra maneira de
me escutar. Minha voz se está enfraquecendo, mais débil ficando à
medida que eu desfiar estas confidências. Enquanto ouvir estes
relatos você se guarde quieto. O silêncio é que fabrica as janelas
por onde o mundo se transparenta. Não escreva, deixe esse caderno no
chão. Se comporte como água no vidro. Quem é gota sempre pinga,
quem é cacimbo se esvapora. Neste asilo, o senhor se aumente de
muita orelha. É que nós aqui vivemos muito oralmente.
Tudo
começa antes do antigamente. Nós dizemos: ntumbuluku. Parece longe
mas é lá que nascem os dias que estão ainda em botão. A morte
desse Excelêncio já começou antes dele nascer. Começou comigo, a
criança velha.
A
maldição pesa sobre mim, Navaia Caetano: sofro a doença da idade
antecipada. Sou um menino que envelheceu logo à nascença. Dizem
que, por isso, me é proibido contar minha própria história. Quando
terminar o relato eu estarei morto. Ou, quem sabe, não? Será mesmo
verdadeira esta condenação? Mesmo assim me intento, faço na
palavra o esconderijo do tempo. À medida que vou contando me sinto
cansado e mais velho. Está a ver estas rugas nos meus braços? São
novas, antes de falar consigo eu não as tinha. Mas eu sigo adiante,
não encontrando atalho nem alívio. Sou como a dor que não tivesse
carne onde sofrer, sou a unha que teima em nascer num pé que foi
cortado. Me dê suas paciências, doutor.
Meu
tio materno, Taúlo Guiraze, me disse: as demais pessoas contam a
história de suas vidas de maneira muito ligeira. Uma criança-velha
não. Enquanto os outros envelhecem as palavras, no meu caso quem
envelhece sou eu próprio. E me aconselhou:
— Meu
filho, eu lhe conheço uma saída. Caso se um dia você decidisse ser
contadeiro...
— E
qual seria?
Ele
ouvira falar de uma criança-velha nascida em outro tempo, outro
lugar. Essa criança se divertia contando a sua história, vendo como
os outros se angustiavam na ansiedade de o ver morrer. Findas as
muitas histórias, porém, ele permanecia vivo.
— Não
morreu, sabe porquê? Porque mentiu. Histórias dele eram inventadas.
Meu
tio me convidava a mentir? Só ele podia saber. O que vou contar
agora, com risco de meu próprio fim, são pedaços soltos de minha
vida. Tudo para explicar o sucedido no asilo. Eu sei, estou enchendo
de saliva sua escrita. Mas, no fim, o senhor vai entender isto que
estou para aqui garganteando.
Minha
mãe, abro falas nela. Nunca eu vi mulher tão demasiado parideira.
Quantas vezes ela saltou a lua? Lhe nasciam muitos filho. Digo bem:
filho, não filhos. Pois ela dava à luz sempre o mesmo ser. Quando
ela paria um novo menino, desaparecia o anterior filho. Mas todos
esses que se sucediam eram idênticos, gotas rivalizando a mesma
água. A gente da aldeia suspeitava de castigo, uma desobediência às
leis dos antigos. Qual a razão desse castigo? Ninguém falava, mas a
origem do mal todos conheciam: meu pai visitava muito o corpo de
minha mãe. Ele não tinha paciências para esperar durante o tempo
que minha mãe aleitava. É ordem da tradição: o corpo da mulher
fica intocável nos primeiros leites. Meu velho desobedecia. Ele
mesmo anunciou como superar o impedimento. Levaria para os namoros um
cordão abençoado. Quando se preparasse para trebeliscar a esposa
ele amarraria um nó na cintura da criança. O namoro poderia então
acontecer sem consequências.
Resolvia-se,
na aparência, o adoentado destino de minha mãe. Digo bem,
aparência. Porque começou aí minha desgraça. Agora sei: nasci de
um desses nós mal atados na cintura de um falecido irmão.
Calma,
inspetor, estou chegando a mim. Não se lembra como falei? Nasci em
corpito frágil, sempre dispensado da sede. Minha estreia parecia ter
sido abençoada: foram lançadas as seis sementes de hacata. Os
caroços tombaram de modo certeiro, alinhados pelos bons espíritos.
— Esta
criança há-de ser mais antiga que a vida.
Meu
avô me levantou em bênção e me deixou suspenso em seus braços.
Ficou sem falar como se pesasse a minha alma. Quem sabe o que ele
procurava? Entre os mil bichos, só o homem é um escutador de
silêncios. Meu avô me voltou a ajeitar no seu peito, todo ele posto
em riso. Mas a felicidade dele se enganava. Sobre mim recaía a
maldição. Fui sabendo dessa maldição nas primeiras vezes que
chorei. Enquanto lacrimejava eu ia desaparecendo. As lágrimas
lavavam a minha matéria, me dissolviam a substância. Mas não era
apenas aquele o sinal da minha condição. Antes, eu já havia
nascido sem parto. Ao sair do corpo não dei nenhuma sofrência para
minha mãe, desprovido de substância. Escorreguei ventre abaixo, me
drenei pela carne materna mais líquido que o próprio sangue.
Minha
mãe logo pressentiu que eu era um enviado dos céus. Chamou meu pai
que baixou os olhos em nenhuma direção. Um homem está interdito de
enfrentar o filho antes que lhe caia o cordão umbilical. Meu velho
mandou chamar o chirema. O adivinho me cheirou os espíritos,
espirrou, tossiu e, depois, vaticinou:
— Este
menino não pode sofrer nenhuma tristeza. Qualquer tristeza, mesmo
que mínima, lhe será muito mortal.
O
velho acenou fingindo perceber. Fica mal um homem perguntar
explicação de prosa alheia. Minha mãe é que confessou não ter
entendimento:
— O
que lhe digo, mamã, é que, se chorar, esta criança pode nunca mais
reaparecer.
— Basta
uma lágrima?
— Menos
de uma. Basta um pedaço de lágrima.
As
lágrimas me confirmavam criança, negando meu corpo envelhecido. O
chirema voltou a ser atacado por convulsões. Os espíritos falavam
por sua boca mas era como se, antes, atravessassem a minha carne mais
profunda. A poderosa voz do adivinho seguia entre rouquidão e canto.
Se entornava em frases, ascendia por espasmos. Às vezes, simples
fio, sem corpo. Outras, torrente, espantada com sua própria
grandeza.
Eu
era mais recém que recente mas já escutava com total discernência.
O curandeiro me perguntou qualquer coisa em xi-ndau, língua que eu
desconhecia e ainda hoje desconheço. Mas alguém, dentro de mim, me
ocupou a voz e respondeu nesse estranho idioma. Os ossinhos da
adivinhação disseram que me devia ser posto um xi-tsungulo .
Rodeou-me o pescoço com esse colar feito de panos. Eu não sabia
mas, dentro dos panos, estavam os remédios contra a tristeza. Esse
feitiço me haveria de defender contra o tempo.
— Agora,
vai.
E
explicou: aquelas palavras eram chaves que se quebravam dentro das
portas depois de as terem aberto. Não serviam duas vezes. Minha mãe
guardou silêncio e assim, internada em si mesma, me foi arrastando
no caminho de casa.
— Mãe:
qual é a doença que eu sofro?
Minha
mãe me apertou com força. Nunca eu sentiria tal firmeza em sua mão.
— Não
posso falar disso, meu filho.
Parecia
ela estava em véspera de lágrima. Mas não, simplesmente virou o
rosto. E se afastou, cabisbaixa. Herdei de minha mãe esse modo de
entristecer: só quando não choro eu acredito em minhas lágrimas.
Naquele momento, restava meu tio Taúlo para me desvendar os meus
padecimentos. O irmão de minha mãe me falou:
— Você,
Caetanito, você não tem nenhuma idade.
Tinha
sido assim: eu nascera, crescera e envelhecera num só dia. A vida da
pessoa se estende por anos, demorada como um desembrulho que nunca
mais encontra as destinadas mãos. Minha vida, ao contrário, se
despendera toda num único dia. De manhã, eu era criança, me
arrastando, gatinhoso. De tarde, era homem feito, capaz de acertar no
passo e no falar. Pela noite, já minha pele se enrugava, a voz
definhava e me magoava a saudade de não ter vivido.
Passou-se
o dia primeiro, a minha família chamou os habitantes e pediu que
esperassem à volta da nossa casa. O menino que assim nascera
certamente trazia novidades, presságios sobre o futuro da terra.
Nessa altura, já eu não exibia convidativas aparências: minha pele
tinha mais rugas que a tartaruga, os cabelos me tinham crescido e as
unhas eram compridas e curvas como um lagarto. Sofria de fomes
sucessivas e quando minha pobre mãe me ofereceu o seio mamei com tal
sofreguidão que ela quase desfaleceu. Preparava-se a seguinte
mamada, meu tio Taúlo levantou o braço e mandou parar o mundo:
— Nenhuma
mulher lhe ofereça o peito!
Ele
estava avisado. Se lembrava de um outro menino-velho: chupou o seio
da mãe com tais ganâncias que ela não resistiu e faleceu, mirrada
como a cana numa prensa. Vieram as tias, ofereceram o seio: também
elas morreram. Sempre de braço em riste, meu tio Taúlo concluía:
— Ninguém
lhe dê de mamar!
Minha
mãe sacudiu uma invisível mosca e se aproximou de mim, deitando-me
em seu colo.
— Não
posso deixar o meu filho sofrer de fome, disse
ela.
E
puxou o seio para fora da capulana. Os presentes taparam o rosto.
Todos recusaram assistir, mesmo meu tio. Foi pena. Assim, ninguém
testemunhou como ela morreu.
Foi
então que me expulsaram, me excomungando para este asilo. Eu trazia
maldição, estava contaminado com um mupfukwa, o espírito dos que
morreram por minha culpa. Minha doença foi nascer. Estou pagando com
minha própria vida. Outra condenação me atrapalha: quando acabar
de contar minha história eu morrerei. Como essas mães que amamentam
até se extinguirem. Agora entendo. O parto é uma mentira: nós não
nascemos nele. Antes, já estamos nascendo. A gente vai acordando no
antecedente tempo, antes mesmo de nascer. É como a planta que, no
segredo da terra, já é raiz antes de proclamar seu verde sobre o
mundo.
O
que é, inspetor? Está a ouvir essa coruja? Não receie. Ela é a
minha dona, eu pertenço a essa ave. Essa coruja me padrinhou e
sustenta. Todas as noites ela me traz restos de comida. Ao senhor lhe
faz medo. Entendo-lhe, inspetor. O piar da coruja faz eco no oco da
nossa alma. A gente se arrepia por vermos confirmados os buracos por
onde nos vamos escoando. Antes, eu me assustava também. Agora, essa
piagem me requenta as minhas noites. Daí a um apouco vou ver o que,
desta vez, ela me trouxe.
Estou
me perdendo, o senhor diz. Não, só estou enxotando cacimbos. Quando
começar o serviço de duvidar, o senhor vai pensar que quem matou o
diretor foi o velho português, o Domingos Mourão. Não encontrou
ainda com ele? Amanhã, vai ver. Depois de falar com esse branco já
você vai escolher decisão. Mas tome cuidado, inspetor: quem matou
Vasto Excelêncio fui eu. É verdade: o português lhe vai presentar
razões para deitar morte no mulato. Minhas razões são, no entanto,
mais poderosas. Já vai ver. Continuo, vou puxando lembrança.
Quando
cheguei ao asilo entendi que esta era minha última e definitiva
residência. Fiquei derreado, durante dias e dias nem pus dente em
côdea. Padeci tais fomes que só não morri porque a morte não me
encontrou, tão magro que estava. Nessa altura, fiz pacto com a
coruja e recebi migalhas das suas réstias. Depois, muito depois, uma
notícia me trouxe esperança.
Nessa
altura chegou ao asilo uma velha chamada de Nãozinha. Logo correram
os ditos: ela era uma feiticeira. Uma ideia me luzinhou: se calhar
ela me podia ajudar a voltar à minha verdadeira idade! Falei com
essa Nãozinha. A feiticeira primeiro negou-se. Ela dizia não ter
poderes. Minha esperança se desfez.
Um
dia, porém, ela mudou de ideias, sem explicação. Chamou-me para me
dizer que iria aprontar uma cerimónia para agarrar o mupfukwa, esse
mau espírito que me perseguia . Era preciso um animal, carecia-se de
fazer descer o sangue à terra. Mas animal, ali, onde eu iria
desencantar? Falei com a coruja e lhe encomendei peça viva. Nessa
noite, me coube uma garça em estado moribundo. Despescoçámos a
garça. Contudo, o sangue da ave era tão leve que não tombou no
soalho. Foi preciso apanhá-lo junto do pescoço. A cerimónia estava
pronta a ter início. Nãozinha falou claro: o espírito de minha mãe
que exigia satisfação.
— O
que ela quer?, perguntei.
Minha
velhota falou por voz do nyanga: a paz só me visitaria se, em
trocapartida, eu lhe concedesse paz a ela. Eu que desse total
andamento à minha infância. De dia me ocupasse de brincar,
redondeando alegrias pela velha fortaleza. Fosse totalmente menino,
para que ela escutasse minhas folias. E se consolasse em estado de
mãe.
Desde
então, meus gritos e risos se acenderam nos corredores do asilo. Era
eu menino a tempo quase inteiro. De dia, meu lado criança governava
meu corpo. De noite, me pesava a velhice. Deitado no meu leito,
chamava os outros velhos para lhes contar um pedaço de minha
história. Meus companheiros conheciam o perigo mortal daqueles
relatos. No final de um trecho, eu podia ser abocanhado pela morte.
Mesmo assim me pediam que prosseguisse minhas narrações. Desfiava
prosa e mais prosa e eles se cansavam:
— Porra,
este gajo não morre nunca...
— Acabam
as histórias, acabamos nós e ele ainda há-de sobresistir...
— Com
certeza, ele inventa. Anda-se a esquivar da verdade.
Era
verdade que inventava. Mas nem sempre, nem tudo. Certa noite, depois
de muita palavreação me senti esgotar. Pensei: agora é que estou
pisando o fim! Passaram diante de mim estrelas que em nenhuma noite
foram vistas. Por minha boca já não transitavam palavras. Será que
eu tinha morrido?
Não,
meu peito ainda se movia. E o mais estranho: enquanto roçava a
derradeira fronteira meu corpo se desenrugava, eu perdia a aparência
da velhice. A vida me expirava o prazo e eu desabrochava em aspecto
de renascer?
Os
velhos se entreolhavam: desta vez eu teria contado a verdade? Senti
que alguns deles choravam. Primeiro, ansiavam ver o espectáculo de
uma morte. Agora, se arrependiam. Porque esse que em mim morria não
era, afinal, parecido com eles. Era uma criança, um ser totalmente
em infância. Esse menino não podia morrer. Lhes doía uma súbita
saudade das minhas criançuras. Eu era a única luz que entrava nos
escuros corredores. Meu arco quem o brincaria, agora? Aquela roda de
bicicleta que antes barulhava pelos corredores, quem lhe iria agora
dar voltas e tonturas?
Me
vendo morrer eles se decidiram. Havia que acontecer urgente e
autenticada cerimônia. Havia que reclamar a salvação desse menino,
eu, Navaia Caetano. E se prepararam: tambores, capulanas, panos
escondidos. Tudo para sossegar o muzimo que me tinha ocupado.
— Afinal,
tínhamos as tantas coisas, nós?
Sim,
até tambores se inventaram. Se improvisaram panelas, tubos da
canalização. De tudo, enfim, a tristeza tem artes de fazer música.
Na noite anterior tinham preparado o tontonto. Roubaram produtos na
despensa do asilo. Durante horas festejaram, bebendo, excedendo as
bocas. De quando em quando, me espreitavam no leito: eu ainda
resistia. E, de novo, dançavam, cantavam. Mesmo o velho branco era
atiçado a dançar. A feiticeira colocou as duas mãos sobre o rosto
do português e lhe disse:
— Quero
saber que língua fala o teu demônio.
Assim
falou Nãozinha, ordenando às gentes que continuassem dançando.
Depois, de mão em mão, transitaram ervas fumáveis e os perfumes se
espalharam como tonturas.
— Vejo
o mar — disse o branco.
Não
admirava: o português sempre via o mar, só via o mar. A feiticeira
então baralhou os braços nos gestos, entrando em transe. Parecia o
corpo lhe saía fora da alma. Por sua fala começou a caminhar uma
outra voz, vinda das profundidades. Mandei os outros se calarem:
— Deixem
ouvir!
— O
espírito fala português.
— Isso
é português? Nem se entende...
Era
língua portuguesa mas de antigamente. O espírito era o de um
soldado branco que morrera no pátio desta fortaleza. Esse português,
disse a feiticeira, esperava um barco, olhando o mar.
— É
como você, Domingos, sempre a olhar o mar.
— Mas
eu não espero nenhum barco...
— Isso
pensa você, velho.
— Calem-se
vocês, deixem ouvir o espírito.
— Sim,
queremos saber quem é esse soldado.
O
soldado tinha adoecido, quase ficara louco. De tanto olhar o mar seus
olhos mudaram de cor. A última coisa que ele viu foi a chegada do
temporal, a branca viuvez da garça. Depois, os olhos lhe
desapareceram. Ficaram só duas cavidades, grutas por onde ninguém
ousava espreitar. Ele morreu sem enterro, sem despedida...
De
súbito, surgiu o estrondo. Parecia a guerra tinha retornado. Paramos
a dança e olhamos Nãozinha, cheios de inquietação. Ela nos
sossegou: apenas eram nuvens entrechocando. Olhei o céu mas não
havia vestígio de nuvem. No fundo estreloso da noite não vislumbrei
senão a fugidia passagem de uma ave rapineira. Atravessava,
soberana, a claridade da noite. Seria a coruja? E, afinal, onde se
raspavam tais nuvens? Deflagrou um segundo estrondo, desta vez bem
terrestre. Olhei: afinal, era o director pontapeando o bidão de
tontonto. A bebida se vazou pelo chão, desperdiçada. Nem os
antepassados careciam de tanto beber.
— Que
merda é esta? Que se passa aqui?
Nossa
cerimônia era bruscamente interrompida por Vasto Excelêncio. O
diretor abusou de boca, sujou-nos o nome.
— Eu
não disse que estão proibidas estas macacadas no asilo?
Os
outros velhos explicaram: aquela cerimônia era para me salvar a mim.
O mulato me olhou, espantado. Se aproximou do meu leito como se se
quisesse certificar da minha identidade. Quando seus olhos se fixaram
nos meus foi como se um golpe o derrubasse. Sacudiu a cabeça,
esfregou as pálpebras a esborratar a visão. Depois, virou-me as
costas e proclamou:
— Ou
me arrumam já esta merda ou pego fogo a tudo, bebidas, velhos,
crianças, tudo.
E
saiu. Os velhos se olharam, mais vazios que o tontonto. Nãozinha se
levantou e chegou-se ao meu leito. Ergueu o lençol e começou a
esfregar-me as pernas com óleos. As forças lhe vão chegar , disse.
Eu senti um calor me corroendo os ossos interiores. Passado um tempo,
a feiticeira me encorajou a sair da cama:
— Vai
você, Navaia. Faz o que tem a fazer-se...
Sem
esforço, me levantei. Havia como que uma mão invisível me
empurrando. E as vozes me incitavam:
— Você
é que é criança, tem forças de meninice.
— Sim,
Navaia, vai lá matar esse filho de uma quinhenta...
Fechei
os olhos. Afinal, tinha sido para matar que a morte disputara meu
corpo? Desencrispei as mãos. Apoiado pelos velhos fui sendo
arrastado para a porta. Sobre mim tombou o luar. Só então notei um
punhal brilhando, justiceiro, em minha mão direita.
Mia
Couto,
in A varanda
do
frangipani
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