I
“Não”,
disse um dos jovens cinéfilos.
Então
percebi que estava envelhecendo. Quase ao mesmo tempo, percebi que os
jovens desinformados de uma metrópole podem envelhecer precocemente.
Porque quem gosta de cinema deveria ver Iracema, o clássico
de Jorge Bodanzky.
O
filme fez a cabeça da minha geração e sua atualidade é notável.
É um documentário que pode ser visto como uma ficção. Mas é
também uma ficção arraigada no cotidiano da Amazônia. Iracema
dilui as fronteiras entre ficção e documentário. É uma mescla
muito habilidosa de gêneros e, nesse sentido, foi um marco do cinema
brasileiro. Há poucos e bons atores profissionais, mas a personagem
principal é construída durante a filmagem: uma menina de quinze
anos, atriz que se forma na estrada, diante da câmera, nos
descaminhos de uma vida inventada, mas profundamente vivida. É como
se o roteiro acompanhasse o imponderável e a própria maleabilidade
da vida. Essa espontaneidade apenas aparente foi pensada e construída
com rigor. Além disso, no caso de Iracema conta muito a
experiência de Bodanzky na região Norte. O olhar do fotógrafo
talentoso e tarimbado — sua atividade anterior e de sempre — está
registrado em cada cena. Um olhar em movimento, que capta a expressão
dos personagens — o que há no íntimo de cada ser. E, num ângulo
mais aberto ou em panorâmica, capta os quadros calcinados e tristes
de uma natureza destruída pela ganância e ignorância. A violência
da vida brasileira não está na denúncia política, e sim onde
interessa à arte: no drama particular de uma personagem.
O
subtítulo — Uma transa amazônica — alude a uma das
alucinações da ditadura militar: a estrada que rasga o coração da
Amazônia e inaugura a devastação sistemática do meio ambiente.
O
filme começa no porto de Belém e termina na estrada que fere a
floresta, abrindo caminho para madeireiras, queimadas, trabalho
escravo e prostituição. Iracema, de carona pela transamazônica,
simboliza o descaminho de uma pobre mulher numa região tão rica,
comentada e debatida, mas quase desconhecida. Daí a dimensão humana
ser tão ou mais importante do que o delírio desenvolvimentista do
regime militar.
II
Há
pouco tempo fui ver o belo filme de Karim Aïnouz: O céu de
Suely. Entre Suely e Iracema há mais do que uma aliteração.
Há, acima de tudo, um diálogo de duas épocas num mesmo país
dilacerado. Diálogo que passa por uma poética do olhar: uma maneira
singular de ver o mundo, um recorte dramático construído pelo
olhar.
Mais
de trinta anos separam os dois filmes, mas eles se encontram no
interior do Brasil e nos sonhos e pesadelos de suas protagonistas.
Apesar das diferenças formais entre os dois filmes, alguma coisa une
a trajetória dessas duas mulheres tão brasileiras. Talvez sejam
histórias que se complementam, num movimento de continuidade que
significa também uma ruptura. O fim de cada filme diz algo sobre o
destino da personagem principal.
Numa
pequena cidade do sertão, Suely rifa o próprio corpo, que será
usado e abusado uma única vez. O nome da rifa — Uma noite no
Paraíso — podia ser o subtítulo do filme de Aïnouz. Como a
imensa maioria dos brasileiros, Suely e Iracema buscam uma vida
melhor. As andanças de Iracema
terminam na beira da estrada. Ou à margem de uma sociedade que
empurra os pobres para um beco sem saída.
Suely
deixa o filho com a tia e a avó e parte em busca de um sonho, que
pode ser um emprego ou uma nova paixão: um céu diminuto que cabe
numa janela. Aïnouz deixa essa janela aberta como uma possibilidade
de esperança.
III
No
começo da década de 1970, a esperança era uma quimera. Nesse
sentido, a degradação física de Iracema mostra o impasse de um
tempo nublado, para não dizer totalmente fechado. Mais de três
décadas depois, em plena democracia, talvez haja alguma razão para
sonhar. Não conhecemos o destino de Suely. E essa dúvida ou
interrogação dá ao espectador a possibilidade de imaginar vários
desfechos, inclusive o que há de imponderável na vida de uma
sonhadora. Na nossa própria vida.
Milton
Hatoum, in Um solitário à espreita
Nenhum comentário:
Postar um comentário