domingo, 25 de novembro de 2018

Revolução espiritual

Walter e ele tinham sido jovens naquela época esquecida, logo depois da virada do século, quando muitas pessoas imaginavam que o século também era jovem.
O que acabava de ser sepultado não se distinguira muito na sua segunda metade. Fora inteligente em técnicas, comércio e pesquisa, mas além desses focos de energia, quieto e enganoso como um pântano. Pintara como os antigos, fizera poemas como Goethe e Schiller, construíra casas em estilo gótico e renascentista. A exigência do ideal reinava como uma espécie de delegacia de polícia sobre todas as manifestações de vida. Mas, através daquela lei secreta que impede os homens de fazerem imitações sem colocar nelas algum exagero, tudo naquele tempo era feito com tamanha obediência às regras da arte como nem nos admirados modelos antigos se vira; era um método cujos resquícios ainda podemos ver em ruas e museus, e que, não sabemos se tendo relação com isso ou não, fazia as castas e tímidas mulheres usarem roupas que as cobriam das orelhas aos pés, mas apresentando seios grandes e traseiros abundantes. De resto, não há período passado do qual se saiba, por vários motivos, tão pouco quanto daquelas três a cinco décadas situadas entre nossos vinte anos e os vinte anos de nossos pais. Por isso, é bom lembrar que em tempos maus se fazem as piores casas e os piores poemas, seguindo princípios tão belos quanto os dos melhores tempos; todas as pessoas ocupadas em destruir os êxitos de um período positivo precedente pensam que os estão corrigindo; e os jovens pálidos dessa época têm tanta presunção, com seu sangue jovem, quanto os moços de todos os tempos.
E é sempre como um milagre, quando depois de um desses períodos de decadência de repente a alma se alteia um pouco, como aconteceu então. Do espírito estagnado das duas últimas décadas do século XIX surgira por toda a Europa, repentinamente, uma febre que dava asas a todos. Ninguém sabia exatamente o que acontecia; ninguém podia dizer se seria uma nova arte, um novo homem, uma nova moral, ou talvez uma alteração nas camadas sociais. Por isso, todos diziam o que lhes convinha melhor. Mas por toda parte pessoas erguiam-se para combater as coisas antigas. Aqui e ali aparecia de repente o homem certo no lugar certo; e, o que é tão importante, homens com senso prático e empreendedor encontravam-se com intelectuais empreendedores. Surgiam talentos antigamente sufocados ou que nem participavam da vida pública. Eram muito diversificados, e as contradições de seus objetivos eram insuperáveis. Amava-se o super-homem e também o subhomem; adoravam-se a saúde e o sol, adorava-se a fragilidade de mocinhas tuberculosas; havia entusiasmo pelo herói e pelo homem comum; havia a um só tempo crentes e céticos, naturalistas e sofisticados, robustos e mórbidos; sonhava-se com velhas alamedas de castelos, jardins outonais, lagos de vidro, pedras preciosas, haxixe, doença, demônios, mas também com prados, horizontes imensos, forjas e laminadoras, lutadores nus, rebeliões de operários escravizados, casais primitivos e destruição da sociedade. Eram realmente contradições e gritos de guerra muito diversos, mas tinham, todos juntos, um ritmo comum; se alguém dissecasse aquele tempo, a insensatez apareceria como um círculo quadrado que quer consistir de madeira de ferro, mas na verdade tudo se fundia num único significado cintilante.
Essa ilusão corporificada na data mágica da virada do século era tão forte que uns se precipitavam entusiasmados para o século novo, ainda intacto, e outros aproveitavam para se comportar no século velho como numa casa da qual vamos nos mudar, sem que essas duas atitudes parecessem muito diferentes entre si. Portanto, se não quisermos não precisaremos supervalorizar esse “movimento”. Aliás, ele não atingiu as massas, ficando circunscrito à tênue e frágil camada dos intelectuais, desprezada pela camada de pessoas que graças a Deus voltou a dominar, aquelas que têm uma cosmovisão indestrutível, apesar de todas as variantes. Mesmo assim, embora não tenha chegado a ser um acontecimento histórico, foi um acontecimentozinho, e os dois amigos, Walter e Ulrich, quando jovens tinham vivido um seu reflexo. Através daquela confusão de crenças perpassou alguma coisa, naquele tempo, como quando muitas árvores se dobram a um só vento; foi um espírito de seitas e de reformadores, a feliz consciência de uma irrupção e de um início, um pequeno renascimento e reforma, como só acontecem nos melhores períodos; e quando naquele tempo se entrava no mundo, já se sentia, na primeira esquina, o sopro do espírito no rosto.
Robert Musil, in O Homem Sem Qualidades

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