Fotograma do filme As vinhas da ira
No
terreiro e no celeiro moviam-se os círculos luminosos das lanternas,
os homens juntavam todos os objetos que iriam levar na viagem e os
empilhavam ao lado do caminhão. Rosa de Sharon trouxera para fora
todas as roupas que a família possuía: os macacões, as botinas de
solado grosso, as botas de borracha, os melhores ternos, os suéteres
e os casacos de pele de carneiro. E ela meteu todas essas coisas num
caixote e entrou no caixote também, pisando tudo muito bem para
arranjar mais espaço. Depois trouxe os vestidos de chita, os xales,
as meias pretas de algodão e as roupinhas das crianças — pequenos
macacões e vestidinhos de chita —, botou tudo no caixote e pisou
tudo muito bem, outra vez.
Tom
foi ao depósito e apanhou todas as ferramentas que valia a pena
levar — um serrote, um jogo de chaves de fenda, um martelo, um
sortimento de pregos de diversos tamanhos, dois alicates, uma lima
plana e duas curvas.
Rosa
de Sharon trouxe para fora um grande rolo de encerado e desenrolou-o
no chão, atrás do caminhão. Lutou para atravessar a porta com os
colchões, três colchões de casal e um de solteiro. Empilhou-os
sobre o encerado e trouxe depois velhos cobertores dobrados e
colocou-os também um por cima dos outros.
A
mãe e Noah trabalhavam rapidamente no preparo da carne de porco, e o
cheiro da carne grudada aos ossos se apoderava da cozinha. As
crianças já haviam adormecido, agora que a noite avançava.
Winfield dormia enrolado, na poeira defronte à porta, e Ruthie, que
se tinha sentado sobre um caixote na cozinha, de onde viu
esquartejarem o porco, deixou-se cair de encontro à parede.
Respirava tranquilamente e tinha os lábios ligeiramente
entreabertos.
Tom
terminou de arrumar as ferramentas e entrou na cozinha com a lanterna
na mão; o reverendo Casy seguia-o.
— Deus
do céu! — exclamou ele. — Que cheiro formidável! Ouve só como
estala!
A
mãe ainda estava ocupada em colocar os pedaços de carne salgada nas
barricas e espargia sal nos espaços entre cada um deles, untava-lhes
com bastante sal as superfícies e apertava-as bem contra o fundo da
barrica. Ela levantou a vista para Tom e sorriu-lhe um pouco, mas
seus olhos estavam cansados e sérios.
— É
bom a gente ter ossos de porco para o almoço — falou ela.
O
pregador chegou-se a ela.
— Deixe
que eu salgue esta carne — falou. — Eu sei fazer isso. E a
senhora tem outras ocupações.
Ela
interrompeu o seu trabalho e lançou um olhar singular ao pregador,
como se este tivesse sugerido algo de extraordinário. Suas mãos
estavam untadas de sal molhado e avermelhadas pelo sangue da carne
fresca.
— Não,
isso é trabalho de mulher — disse, afinal. — É trabalho —
replicou o pregador.
— E
temos muito o que fazer para firmar diferença entre trabalho de
homem e de mulher. A senhora tem muitas outras coisas a resolver.
Deixe que eu salgue esta carne.
Durante
mais alguns segundos, ela o encarou e depois entornou um balde d’água
numa tina e lavou nela as mãos. O pregador foi pegando os tijolinhos
de carne de porco e os foi untando com sal. Depois foi colocando-os
na barrica, como a mãe fizera antes. Somente depois que ele terminou
uma camada inteira e a cobriu cuidadosamente com sal foi que ela
ficou tranquilizada. Então, enxugou as mãos ásperas e vermelhas.
Tom
disse:
— Mãe,
que é que a gente vai levar daqui da cozinha?
Ela
olhou rapidamente em torno.
— O
balde — falou. — Tudo que precisaremos pra comer: os pratos e
copos, as colheres, garfos e facas. Bota tudo na gaveta e leva a
gaveta pro caminhão. E também aquela frigideira, a chaleira e a
cafeteira. Quando a grelha esfriar, tira ela do fogão. Sempre a
gente pode precisar dela, quando fizer carne assada. Por mim, também
levava a tina, mas acho que não tem tanto lugar assim. Vou ter que
lavar a roupa no balde. As outras coisinhas nem vale a pena a gente
carregar. Pode-se cozinhar coisas pequenas em vasilhas grandes, mas
não se pode cozinhar coisas grandes em vasilhas pequenas. O que
convém é levar todas as fôrmas de pão. Elas entram uma na outra.
— Ficou parada a olhar demoradamente a cozinha. — Bom, Tom, pega
as coisas que te disse. Eu vou ver o resto, a lata grande de pimenta,
o sal, a noz-moscada e o ralador. — Pegou uma lamparina e
dirigiu-se pesadamente para o quarto de dormir, e seus pés nus não
produziam som algum ao pisar no chão.
— Ela
parece que está cansada — disse o pregador.
— As
mulheres sempre se cansam — aduziu Tom. — Elas são assim mesmo.
Só não ficam cansadas quando estão no culto.
— Sim,
mas ela está cansada demais. Como se estivesse doente até.
A
mãe ainda não tinha fechado a porta atrás de si e ouvira estas
palavras. Lentamente, o relaxamento dos músculos de suas faces
sumiu-se, para dar lugar à antiga expressão de energia. Seus olhos
brilharam e os ombros se endireitaram. Lançou um olhar ao quarto
desnudo. Nada havia ali dentro, a não ser trastes sem o menor valor.
Os colchões, que tinham sido postos no chão, foram levados para
fora. As mesas tinham sido vendidas. Um pente quebrado estava jogado
ao chão, tendo ao lado uma caixa de talco vazia e um montículo de
fezes de rato. Ela colocou a lamparina no chão. Pôs a mão atrás
de um caixote que servira de cadeira e tirou de lá uma caixa de
papel de carta, já bastante velha, suja e quebrada nos cantos.
Sentou-se e abriu a caixa, onde havia cartas, recortes, fotografias,
um par de brincos, um anel de sinete muito pequeno, de ouro, uma
corrente de cabelos trançados e entremeados por fios de ouro. Ela
tocou as cartas com os dedos, tocou-as de leve, e alisou um recorte
de jornal que tratava do julgamento de Tom. Longo tempo ficou a
segurar a caixa, olhando-a; depois seus dedos espalharam o maço de
cartas e tornaram a ordená-lo. Mordeu o lábio inferior, pensativa,
recordando coisas. Afinal tomou uma decisão. Tirou da caixa o anel,
a corrente, os brincos, meteu a mão por baixo do maço de cartas e
achou o elo de uma pulseira de ouro. Tirou uma carta de um envelope e
pôs nele todos esses pequenos objetos. Fechou o envelope e guardou-o
no bolso do vestido. Depois, delicada, cuidadosamente, tornou a pôr
a tampa na caixa e acariciou-a com dedos carinhosos. Seus lábios
entreabriram-se. A seguir, levantou-se, pegou a lamparina e voltou à
cozinha. Ergueu uma das tampas de ferro do fogão e enfiou, devagar,
a caixa para dentro do braseiro. Depressa o calor chamuscou a caixa
de papelão. Tornou a fechar o fogão, e instantaneamente a caixa foi
consumida pelas chamas.
John
Steinbeck, in As vinhas da ira
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