Enquanto
isso as nuvens são brancas e o céu é todo azul. Para que tanto
Deus. Por que não um pouco para os homens. Ela nascera com maus
antecedentes e agora parecia uma filha de um não-sei-o-quê com ar
de se desculpar por ocupar espaço. No espelho distraidamente
examinou de perto as manchas no rosto. Em Alagoas chamavam-se
“panos”, diziam que vinham do fígado. Disfarçava os panos com
grossa camada de pó branco e se ficava meio caiada era melhor que o
pardacento. Ela toda era um pouco encardida pois raramente se lavava.
De dia usava saia e blusa, de noite dormia de combinação. Uma
colega de quarto não sabia como avisar-lhe que seu cheiro era
morrinhento. E como não sabia, ficou por isso mesmo, pois tinha medo
de ofendê-la. Nada nela era iridescente, embora a pele do rosto
entre as manchas tivesse um leve brilho de opala. Mas não importava.
Ninguém olhava para ela na rua, ela era café frio.
E
assim se passava o tempo para a moça esta. Assoava o nariz na barra
da combinação. Não tinha aquela coisa delicada que se chama
encanto. Só eu a vejo encantadora. Sé eu, seu autor, a amo. Sofro
por ela. E só eu é que posso dizer assim: “que é que você me
pede chorando que não lhe dê cantando”? Essa moça não sabia que
ela era o que era, assim como um cachorro não sabe que é cachorro.
Daí não se sentir infeliz. A única coisa que queria era viver. Não
sabia para quê, não se indagava. Quem sabe, achava que havia uma
gloriazinha em viver. Ela pensava que a pessoa é obrigada a ser
feliz. Então era. Antes de nascer ela era uma idéia? Antes de
nascer ela era morta? E depois de nascer ela ia morrer? Mas que fina
talhada de melancia.
Há
poucos fatos a narrar e eu mesmo não sei ainda o que estou
denunciando.
Agora
(explosão) em rapidíssimos traços desenharei a vida pregressa da
moça até o momento de espelho do banheiro. Nascera inteiramente
raquítica, herança do sertão – os maus antecedentes de que
falei. Com dois anos de idade lhe haviam morrido os pais de febres
ruins no sertão de Alagoas, lá onde o diabo perdera as botas. Muito
depois fora para Maceió com a tia beata, única parenta sua no
mundo. Uma outra vez se lembrava de coisa esquecida. Por exemplo a
tia lhe dando cascudos no alto da cabeça porque o cocuruto de cabeça
devia ser, imaginava a tia, um ponto vital. Dava-lhe sempre com os
nós dos dedos na cabeça de ossos fracos por falta de cálcio. Batia
mas não era somente porque ao bater gozava de grande prazer sensual
– a tia que não se casara por nojo – é que também considerava
de dever seu evitar que a menina viesse um dia a ser uma dessas moças
que em Maceió ficavam nas ruas de cigarro aceso esperando homem.
Embora a menina não tivesse dado mostras de no futuro a ser
vagabunda de rua. Pois até mesmo o fato de vir a ser uma mulher não
parecia pertencer à sua vocação. A mulherice só lhe nasceria
tarde porque até no capim vagabundo há desejo de sol. As pancadas
ela esquecia pois esperando-se um pouco a dor termina por passar. Mas
o que doía mais era ser privada da sobremesa de todos os dias:
goiabada com queijo, a única paixão na sua vida. Pois não era que
esse castigo se tornara o predileto da tia sabida? A menina não
perguntava por que era sempre castigada mas nem tudo se precisa saber
e não saber fazia parte importante de sua vida.
Esse
não-saber pode parecer ruim mas não é tanto porque ela sabia muita
coisa assim como ninguém ensina cachorro a abanar o rabo e nem a
pessoa a sentir fome; nasce-se e fica-se logo sabendo. Assim como
ninguém lhe ensinaria um dia a morrer: na certa morreria um dia como
se antes tivesse estudado de cor a representação do papel de
estrela. Pois na hora da morte a pessoa se torna brilhante estrela de
cinema, é o instante de glória de cada um e é quando como no canto
coral se ouvem agudos sibilantes. Quando era pequena tivera vontade
intensa de criar um bicho. Mas a tia achava que ter um bicho era mais
uma boca para comer. Então a menina inventou que só lhe cabia criar
pulgas pois não merecia o amor de um cão. Do contacto com a tia
ficara-lhe a cabeça baixa. Mas a sua beatice não lhe pegara: morta
a tia, ela nunca mais fora a uma igreja porque não sentia nada e as
divindades lhe eram estranhas.
Pois
a vida é assim: aperta-se o botão e a vida acende. Só que ela não
sabia qual era o botão de acender. Nem se dava conta de que vivia
numa sociedade técnica onde ela era um parafuso dispensável. Mas
uma coisa descobriu inquieta: já não sabia mais ter tido pai e mãe,
tinha esquecido o sabor. E, se pensava melhor, dir-se-ia que havia
brotado da terra do sertão em cogumelo logo mofado. Ela falava, sim,
mas era extremamente muda. Uma palavra dela eu às vezes consigo mas
ela me foge por entre os dedos.
Apesar
da morte da tia, tinha certeza de que com ela ia ser diferente, pois
nunca ia morrer. (É paixão minha ser o outro. No caso a outra.
Estremeço esquálido igual a ela).
Clarice
Lispector, in A hora da estrela
Nenhum comentário:
Postar um comentário