sexta-feira, 2 de novembro de 2018

O botão de acender a vida

Enquanto isso as nuvens são brancas e o céu é todo azul. Para que tanto Deus. Por que não um pouco para os homens. Ela nascera com maus antecedentes e agora parecia uma filha de um não-sei-o-quê com ar de se desculpar por ocupar espaço. No espelho distraidamente examinou de perto as manchas no rosto. Em Alagoas chamavam-se “panos”, diziam que vinham do fígado. Disfarçava os panos com grossa camada de pó branco e se ficava meio caiada era melhor que o pardacento. Ela toda era um pouco encardida pois raramente se lavava. De dia usava saia e blusa, de noite dormia de combinação. Uma colega de quarto não sabia como avisar-lhe que seu cheiro era morrinhento. E como não sabia, ficou por isso mesmo, pois tinha medo de ofendê-la. Nada nela era iridescente, embora a pele do rosto entre as manchas tivesse um leve brilho de opala. Mas não importava. Ninguém olhava para ela na rua, ela era café frio.
E assim se passava o tempo para a moça esta. Assoava o nariz na barra da combinação. Não tinha aquela coisa delicada que se chama encanto. Só eu a vejo encantadora. Sé eu, seu autor, a amo. Sofro por ela. E só eu é que posso dizer assim: “que é que você me pede chorando que não lhe dê cantando”? Essa moça não sabia que ela era o que era, assim como um cachorro não sabe que é cachorro. Daí não se sentir infeliz. A única coisa que queria era viver. Não sabia para quê, não se indagava. Quem sabe, achava que havia uma gloriazinha em viver. Ela pensava que a pessoa é obrigada a ser feliz. Então era. Antes de nascer ela era uma idéia? Antes de nascer ela era morta? E depois de nascer ela ia morrer? Mas que fina talhada de melancia.
Há poucos fatos a narrar e eu mesmo não sei ainda o que estou denunciando.
Agora (explosão) em rapidíssimos traços desenharei a vida pregressa da moça até o momento de espelho do banheiro. Nascera inteiramente raquítica, herança do sertão – os maus antecedentes de que falei. Com dois anos de idade lhe haviam morrido os pais de febres ruins no sertão de Alagoas, lá onde o diabo perdera as botas. Muito depois fora para Maceió com a tia beata, única parenta sua no mundo. Uma outra vez se lembrava de coisa esquecida. Por exemplo a tia lhe dando cascudos no alto da cabeça porque o cocuruto de cabeça devia ser, imaginava a tia, um ponto vital. Dava-lhe sempre com os nós dos dedos na cabeça de ossos fracos por falta de cálcio. Batia mas não era somente porque ao bater gozava de grande prazer sensual – a tia que não se casara por nojo – é que também considerava de dever seu evitar que a menina viesse um dia a ser uma dessas moças que em Maceió ficavam nas ruas de cigarro aceso esperando homem. Embora a menina não tivesse dado mostras de no futuro a ser vagabunda de rua. Pois até mesmo o fato de vir a ser uma mulher não parecia pertencer à sua vocação. A mulherice só lhe nasceria tarde porque até no capim vagabundo há desejo de sol. As pancadas ela esquecia pois esperando-se um pouco a dor termina por passar. Mas o que doía mais era ser privada da sobremesa de todos os dias: goiabada com queijo, a única paixão na sua vida. Pois não era que esse castigo se tornara o predileto da tia sabida? A menina não perguntava por que era sempre castigada mas nem tudo se precisa saber e não saber fazia parte importante de sua vida.
Esse não-saber pode parecer ruim mas não é tanto porque ela sabia muita coisa assim como ninguém ensina cachorro a abanar o rabo e nem a pessoa a sentir fome; nasce-se e fica-se logo sabendo. Assim como ninguém lhe ensinaria um dia a morrer: na certa morreria um dia como se antes tivesse estudado de cor a representação do papel de estrela. Pois na hora da morte a pessoa se torna brilhante estrela de cinema, é o instante de glória de cada um e é quando como no canto coral se ouvem agudos sibilantes. Quando era pequena tivera vontade intensa de criar um bicho. Mas a tia achava que ter um bicho era mais uma boca para comer. Então a menina inventou que só lhe cabia criar pulgas pois não merecia o amor de um cão. Do contacto com a tia ficara-lhe a cabeça baixa. Mas a sua beatice não lhe pegara: morta a tia, ela nunca mais fora a uma igreja porque não sentia nada e as divindades lhe eram estranhas.
Pois a vida é assim: aperta-se o botão e a vida acende. Só que ela não sabia qual era o botão de acender. Nem se dava conta de que vivia numa sociedade técnica onde ela era um parafuso dispensável. Mas uma coisa descobriu inquieta: já não sabia mais ter tido pai e mãe, tinha esquecido o sabor. E, se pensava melhor, dir-se-ia que havia brotado da terra do sertão em cogumelo logo mofado. Ela falava, sim, mas era extremamente muda. Uma palavra dela eu às vezes consigo mas ela me foge por entre os dedos.
Apesar da morte da tia, tinha certeza de que com ela ia ser diferente, pois nunca ia morrer. (É paixão minha ser o outro. No caso a outra. Estremeço esquálido igual a ela).
Clarice Lispector, in A hora da estrela

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