terça-feira, 13 de novembro de 2018

Judas

Ontem, como acontece todos os anos em igual época, os garotos das ruas excitaram-se no ardor de arrancar as tripas de um pobre boneco de palha e trapo.
É uma vingança tardia e inócua que a ralé toma periodicamente contra um cidadão que há tempos se chamou Iehouda de Kerioth, vulgarmente conhecido por Judas Iscariotes, homem de maus bofes, segundo a tradição, apóstolo diletante, provavelmente traidor. Provavelmente, digo eu, mas não exijo que ninguém dê crédito ao que aqui fica, pois seria difícil apurar o grau de verdade que existe nessa trapalhada de coisas antigas.
Possuímos uma certa quantidade de noções que julgamos verdades inconcussas, embora nunca tenhamos tomado a mais insignificante informação sobre elas. Quem vai lá tocar em coisas antigas, cobertas de uma grossa camada de mofo tradicional, polvilhadas da venerável poeira de milênios? Ficaríamos assombrados se nos viessem dizer que elas estão falhadas, rachadas, que há soluções de continuidade por baixo da espessa crosta que as reveste.
Longe de mim a ideia de defender o Iscariotes. Todos nós estamos convencidos de que ele foi um tratante. Deixemo-lo tal qual está, até que os esmerilhadores das pedras do Oriente nos venham demonstrar que ele foi um ótimo rapaz.
Por ora não vejo mal nenhum em que o consideremos o mais acabado representante da infâmia. Se ele não foi tão mau como se diz, naturalmente há de perdoar-nos a má opinião que temos a respeito de sua pessoa. É possível que o nosso juízo sobre ele não esteja muito distante da verdade.
Judas suicidou-se, o que é motivo bastante para que o detestemos. O suicida não está muito longe do assassino. A diferença que há entre os dois é que o primeiro rouba a vida a uma pessoa e o segundo pode fazer o mesmo a muitas. Questão de número apenas.
Continuemos, pois, a dizer que Judas foi um patife. Não há nada de extraordinário em semelhante julgamento. Mais difícil é admitir a santidade de uma criatura. Os santos são raros, e o mundo está cheio de malvados. Eu ficaria pasmo se entre os discípulos de Jesus não houvesse aparecido nenhum birbante. Até me espanta que só um tivesse aberto exceção à monótona bondade que naquelas almas cândidas se encerrava. O que era razoável era surgirem pelo menos quatro ou cinco traidores entre os companheiros do Mestre. Só houve um, o que é lisonjeiro para a humanidade daqueles tempos remotos.
Se o doce Jesus viesse hoje ao mundo, talvez não lhe fosse fácil encontrar tantos espíritos fiéis. A proporção agora seria, pelo menos, de cinquenta por cento de safados.
Quem é santo nestes tempos prosaicos em que o dólar governa o mundo? As consciências tornaram-se mercadoria vulgar. As almas vendem-se e vendem-se caro.
Judas hoje não se enforcaria. Já nenhum traidor se enforca. Trinta dinheiros eram, talvez, uma quantia insignificante, capaz de levar um homem ao desespero de passar uma corda ao pescoço. Atualmente é possível obter somas tentadoras, que dão rendimentos consideráveis a um traidor que se respeita.
Nenhum Iscariotes se suicida. Se os contemporâneos seguissem o exemplo do antigo, não haveria no mundo figueiras que bastassem para pendurar tantos laços…
Graciliano Ramos, in Garranchos

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