Mas,
como tudo é mesmo muito pequeno, e o sertão ainda é menor, houve
que passou por lá um conhecido velho de Nhô Augusto — o Tião da
Thereza — à procura de trezentas reses de uma boiada brava, que se
desmanchara nos gerais do alto Uru cuja, estourando pelos cem
caminhos sem fim do chapadão.
Tião
da Thereza ficou bobo de ver Nhô Augusto. E, como era casca-grossa,
foi logo dando as notícias que ninguém não tinha pedido: a mulher,
Dona Dionóra, continuava amigada com seu Ovídio, muito de-bem os
dois, com tenção até em casamento de igreja, por pensarem que ela
estava desimpedida de marido; com a filha, sim, é que fora uma
tristeza: crescera sã e se encorpara uma mocinha muito linda, mas
tinha caído na vida, seduzida por um cometa, que a levara do
arraial, para onde não se sabia... O Major Consilva prosseguia
mandando no Murici, e arrematara as duas fazendas de Nhô Augusto...
Mas o mais mal-arrumado tinha sido com o Quim, seu antigo camarada, o
pobre do Quim Recadeiro — “Se alembra?” — Pois o Quim tinha
morrido de morte-matada, com mais de vinte balas no corpo, por causa
dele, Nhô Augusto: quando soube que seu patrão tinha sido
assassinado, de mando do Major, não tivera dúvida: ...jurou
desforra, beijando a garrucha, e não esperou café coado! Foi cuspir
no canguçu detrás da moita, e ficou morto, mas já dentro da
sala-de-jantar do Major, e depois de matar dois capangas e ferir mais
um...
— Pára,
chega, Tião! ... Não quero saber de mais coisa nenhuma! Só te peço
é para fazer de conta que não me viu, e não contar p’ra ninguém,
pelo amor de Deus, por amor de sua mulher, de seus filhos e de tudo o
que para você tem valor!... Não é mentira muita, porque é a mesma
coisa em como se eu tivesse morrido mesmo... Não tem mais nenhum Nhô
Augusto Estêves, das Pindaíbas, Tião...
— Estou
vendo, mesmo. Estou vendo...
E
Tião da Thereza pôs, nos olhos, na voz e no meio-aberto da boca,
tanto nojo e desprezo, que Nhô Augusto abaixou o queixo; e nem
adiantou repetir para si mesmo a jaculatória do coração manso e
humilde: teve foi de sair, para trás das bananeiras, onde se
ajoelhou e rejurou: — P’ra o céu eu vou, nem que seja a
porrete!...
E
foi bom passo que nesse dia um homem chamado Romualdo, morador à
beira da cava, precisou de ajuda para tirar uma égua do atoleiro, e
Nhô Augusto teve trabalho até tarde da noite, com fogueira acesa e
tocha na mão.
Mas,
daí em seguida, ele não guardou mais poder para espantar a
tristeza. E, com a tristeza, uma vontade doente de fazer coisas
mal-feitas, uma vontade sem calor no corpo, só pensada: como que, se
bebesse e cigarrasse, e ficasse sem trabalhar nem rezar, haveria de
recuperar sua força de homem e seu acerto de outro tempo, junto com
a pressa das coisas, como os outros sabiam viver.
Mas,
a vergonheira atrasada? E o castigo? O padre bem que tinha falado: —
“Você, em toda sua vida, não tem feito senão pecados muito
graves, e Deus mandou estes sofrimentos só para um pecador poder ter
a ideia do que o fogo do inferno é!...”
Sim,
era melhor rezar mais, trabalhar mais e escorar firme, para poder
alcançar o reino-do-céu. Mas o mais terrível era que o desmazelo
de alma em que se achava não lhe deixava esperança nenhuma do jeito
de que o Céu podia ser.
— Desonrado,
desmerecido, marcado a ferro feito rês, mãe Quitéria, e assim tão
mole, tão sem homência, será que eu posso mesmo entrar no céu?!...
— Não
fala fácil, meu filho!... Dei’stá: debaixo do angu tem molho, e
atrás de morro tem morro.
— Isso
sim... Cada um tem a sua vez, e a minha hora há-de chegar!...
E,
enquanto isso tudo, Nhô Augusto estava no escuro e sozinho, cercado
de capiaus descalços, vestidos de riscado e seriguilha tinta, sem
padre nenhum com quem falar. E essa era a consequência de um estouro
de boiada na vastidão do planalto, por motivo de uma picada de vespa
na orelha de um marruás bravio, combinada com a existência, neste
mundo, do Tião da Thereza. E tudo foi bem assim, porque tinha de
ser, já que assim foi.
Apenas,
Nhô Augusto se confessou aos seus pretos tutelares, longamente,
humanamente, e foi essa a primeira vez. E, no fim, desabafou: que era
demais o que estava purgando pelos seus pecados, e que Nosso Senhor
se tinha esquecido dele! ‘A mulher, feliz, morando com outro... A
filha, tão nova, e já na mão de todos, rolando por este mundo, ao
deus-dará... E o Quim, o Quim Recadeiro — um rapazinho miúdo, tão
no desamparo — e morrendo como homem, por causa do patrão... um
patrão de borra, que estava p’r’ali no escondido, encostado, que
nem como se tivesse virado mulher!...
— O
resto é peso p’ra dia, mãe Quitéria... Mas, como é? Como é que
eu vou me encontrar com o Quim lá com Deus, com que cara?!... E eu
já fui zápede, já pus fama em feira, mãe Quitéria! Na festa do
Rosário, na Tapera... E um dia em que enfrentei uns dez, fazendo
todo-o-mundo correr... Desarmei e dei pancada, no Sergipão Congo,
mãe Quitéria, que era mão que desce, mesmo monstro matador!... E a
briga, com a família inteira, pai, irmão, tio, da moça que eu
tirei de casa, semana em antes de se casar?!
— Vira
o demônio de costas, meu filho... Faz o que o seu padre mandou!
— E
é o diabo mesmo, mãe Quitéria... Eu sei... Ou então é castigo,
porque eu vou me lembrar dessas coisas logo agora, que o meu corpo
não está valendo, nem que eu queira, nem p’ra brigar com homem e
nem p’ra gostar de mulher...
— Rezo
o credo!
Mas
Nhô Augusto, que estava de cócoras, sentou-se no chão e continuou:
— Tem horas em que fico pensando que, ao menos por honrar o Quim,
que morreu por minha causa, eu tinha ordem de fazer alguma
vantagem... Mas eu tenho medo... Já sei como é que o inferno é,
mãe Quitéria... Podia ir procurar a coitadinha da minha filha, que
talvez esteja sofrendo, precisando de mim... Mas eu sei que isso não
é eito meu, não é não. Tenho é de ficar pagando minhas culpas,
penando aqui mesmo, no sozinho. Já fiz penitência estes anos todos,
e não posso ter prejuízo deles! Se eu quisesse esperdiçar essa
penitência feita, ficava sem uma coisa e sem outra... Sou um
desgraçado, mãe Quitéria, mas o meu dia há-de chegar!... A minha
vez...
E
assim nesse parado Nhô Augusto foi indo muito tempo, se acostumando
com os novos sofrimentos, mais meses. Mas sempre saía para servir
aos outros, quando precisavam, ajudava a carregar defuntos, visitava
e assistia gente doente, e fazia tudo com uma tristeza bondosa, a
mais não ser.
Até
que, pouco a pouco, devagarinho, imperceptível, alguma cousa pegou a
querer voltar para ele, a crescer-lhe do fundo para fora, sorrateira
como a chegada do tempo das águas, que vinha vindo paralela: com o
calor dos dias aumentando, e os dias cada vez maiores, e o
joão-de-barro construindo casa nova, e as sementinhas, que
hibernavam na poeira, esperando na poeira, em misteriosas incubações.
Nhô Augusto agora tinha muita fome e muito sono. O trabalho
entusiasmava e era leve. Não tinha precisão de enxotar as
tristezas.
Guimarães
Rosa, in A hora e vez de Augusto Matraga
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