sexta-feira, 2 de novembro de 2018

Capítulo 12: Navegação lenta – Pegando coisas emprestadas – Subindo a bordo do vapor naufragado – Os conspiradores – “Num é boa moral” – Em busca do bote


Devia ser perto de uma hora quando finalmente a gente passou além da ilha, e a balsa parecia ir muito devagar. Se um barco aparecesse, a gente ia ter que pegar a canoa e partir pra margem de Illinois; e ainda sorte que um barco não apareceu, porque a gente nem tinha pensado em colocar a espingarda na canoa, uma linha de pescar ou alguma coisa pra comer. A pressa e o sufoco tinham sido grandes demais pra pensar em tanta coisa. Não foi uma boa ideia colocar tudo na balsa.
Se os homens fossem pra ilha, eu esperava que eles achassem a fogueira que eu tinha feito e vigiassem ali a noite toda esperando a chegada de Jim. De qualquer modo, eles ficavam longe de nós, e se a minha fogueira não enganasse eles, não era culpa minha. Tentei enganar eles da forma mais matreira que pude.
Quando a primeira risca de luz começou a se mostrar, a gente amarrou a balsa numa ilha de areia e vegetação numa grande curva no lado de Illinois, e cortou ramos de choupos com a machadinha e cobriu a balsa com eles pra dar a impressão que tinha ocorrido um desmoronamento ali na ribanceira. Uma ilha de areia e vegetação é um banco de areia que tem por cima choupos tão cerrados como dentes de rastelo.
A gente tinha montanhas na costa do Missouri e mata cerrada no lado de Illinois, e o canal descia pela costa do Missouri naquele lugar, então a gente não tava com medo de alguém topar conosco. A gente ficou ali todo o dia e viu balsas e barcos a vapor descendo pela costa do Missouri e barcos a vapor rumo ao norte lutando com o grande rio lá no meio. Contei a Jim tudo sobre a conversa que tive com aquela mulher, e Jim disse que ela era esperta e que, se ela própria fosse sair atrás de nós, não ia ficar sentada vigiando uma fogueira – não, sinhô, ela ia arrumar um cachorro. Então, disse eu, por que ela não mandou o marido arrumar um cachorro? Jim disse que tinha certeza que ela pensou nisso quando os homens tavam prontos pra partir e acreditava que eles tinham ido até a cidade pra arrumar o cachorro, e então perderam todo esse tempo, pois do contrário a gente não tava aqui numa ilha de areia vinte e cinco ou vinte e seis quilômetros além da vila – não, com certeza, a gente estaria naquela velha cidade de novo. Então eu disse que não queria saber por que eles não tinham nos pegado, desde que não nos pegassem.
Quando tava começando a escurecer, a gente colocou a cabeça pra fora do matagal de choupos e olhou pra cima, pra baixo e pro outro lado do rio, nada à vista. Então Jim pegou algumas das tábuas da parte de cima da balsa e construiu uma tenda bem confortável, onde a gente podia se enfiar em tempo de solaço e de chuva e manter as coisas secas. Jim fez um chão para a barraca, trinta centímetros ou mais acima do nível da balsa, por isso agora os cobertores e todos os tarecos tavam fora do alcance das ondas dos barcos a vapor. Bem no meio da barraca a gente fez uma camada de barro de uns treze ou quinze centímetros de fundura com uma moldura ao redor pra manter o barro no lugar – era pra construir um fogo em tempo molhado ou frio – e a barraca não deixava o fogo à vista. A gente fez também um remo do leme extra, porque um dos outros podia quebrar num tronco embaixo d’água ou nalguma coisa assim. E a gente montou um pau forcado curto pra dependurar a velha lanterna, porque a gente tinha que acender a lanterna sempre que via um barco a vapor vir correnteza abaixo pra não ser atropelados; mas a gente não precisava acender a lanterna pros barcos rio acima, a não ser quando a gente via que tava no que eles chamam “encruzilhada das correntes”, porque o rio ainda tava bem alto, as margens muito baixas ainda um pouco cobertas pela água, então os barcos rumo do norte nem sempre passavam pelo canal, mas procuravam as águas tranquilas.
Nessa segunda noite, a gente navegou umas sete ou oito horas, com uma corrente que tava numa velocidade de mais de seis quilômetros por hora. A gente pegou peixes, falou e nadou de vez em quando pra afastar o sono. Era uma coisa meio solene, descer à deriva o grande rio tranquilo, deitados de costas olhando pras estrelas, sem ter nunca vontade de falar alto, e não era muito comum rir, só dar uns risinhos. No geral o tempo tava muito bom, e nada aconteceu com a gente naquela noite, nem na outra, nem na outra.
Toda noite a gente passava por cidades, algumas bem lá no alto das encostas negras, só um canteiro brilhante de luzes, não dava pra ver nenhuma casa. Na quinta noite passamos por St. Louis, e foi como se o mundo inteiro tivesse se iluminado. Em St. Petersburg eles diziam que tinha vinte ou trinta mil pessoas em St. Louis, mas nunca acreditei nisso até que eu vi aquela imensidão maravilhosa de luzes às duas horas daquela noite quieta. Não tinha nenhum barulho, todo mundo dormindo.
Toda noite agora eu dava um jeito de chegar até a costa, perto das dez horas, nalguma pequena vila, e comprava dez ou quinze centavos de farinha, toicinho ou outra coisa pra comer; e às vezes eu pegava um frango que não tava confortável no poleiro e carregava ele junto comigo. Papai sempre dizia, pega um frango quando tiver chance, porque se ocê não quer o frango pra si, é fácil encontrar alguém que quer, e a gente nunca esquece uma boa ação. Nunca vi papai não querendo o frango pra si, mas é o que ele dizia mesmo assim.
De manhã, antes da luz aparecer, eu entrava meio escondido no campo de trigo e pegava emprestado uma melancia, um melão, uma abóbora ou um pouco de trigo fresco ou coisas desse tipo. Papai sempre dizia que não fazia mal pegar as coisas emprestadas, se a gente pretendia pagar mais tarde, um dia, mas a viúva dizia que isso não passava de um nome bonito pra roubar, e nenhuma pessoa decente ia fazer uma coisa dessas. Jim disse que ele achava que a viúva tava certa em parte e papai tava certo em parte; então, o melhor a fazer era escolher duas ou três coisas da lista e dizer que a gente não ia mais pegar elas emprestado – mas ele achava que não fazia mal tomar emprestado as outras. A gente falou disso uma noite inteira, descendo à deriva pelo rio, tentando decidir se ia jogar fora as melancias, os cantalupos, os melões ou sei lá o que mais. Mas perto do amanhecer a gente chegou numa solução satisfatória e decidiu abrir mão das maçãs ácidas e dos cáquis. A gente não tava se sentindo muito bem antes disso, mas agora tava tudo legal. Fiquei contente também com a solução, porque as maçãs ácidas nem sempre são boas, e os cáquis ainda iam levar dois ou três meses pra madurar.
De vez em quando a gente atirava numa ave aquática, que se levantava cedo demais de manhã ou não ia dormir bem cedo de noite. Pensando bem, a gente tava tendo um vidão.
Na quinta noite, mais pra lá de St. Louis, teve uma grande tempestade depois da meia-noite, com trovões e raios fortes, e a chuva caía num lençol d’água sólido. A gente ficou na barraca e deixou a balsa cuidar de si mesma. Quando o raio clareava tudo, a gente podia ver um grande rio reto na frente e penhascos altos nos dois lados. Dali a pouco, digo eu, “Ei, Jim, olha ali!”. Era um barco a vapor que tinha se destruído numa rocha. A gente tava seguindo reto na direção dele. O raio mostrava o barco bem nítido. Tava adernado, com parte do convés superior acima da água, e quando vinham os clarões dos relâmpagos dava pra ver todos os cabos da chaminé bem delineados, e uma cadeira ao lado do grande sino, com um chapéu velho de aba larga e caída pendurado atrás dela.
Bem, já era noite avançada, e tempestuosa, e tudo tão misterioso, por isso senti exatamente o que qualquer outro menino ia sentir vendo aqueles destroços espalhados ali tão fúnebres e solitários no meio do rio. Queria subir a bordo e andar por ali um pouco, ver o que tinha no barco. Então eu disse:
Vamos abordar o barco, Jim.
Mas Jim tava mortalmente contra essa ideia no início. Ele disse:
Num quero mexê em destroço de navio. A gente tá ino muito bem, e é mió deixá o diabo em paiz, como diz o bom menino. Aposto que tem um vigia nesse barco distruído.
Vigia tua vó! – falei –, não tem nada pra vigiar a não ser o tombadilho e a casa do leme. E ocê acha que alguém ia arriscar a vida por um tombadilho e uma casa do leme numa noite dessas, quando eles tão a ponto de se quebrar e ser carregados pelo rio a qualquer minuto? – Jim não podia dizer nada contra isso, então ele nem tentou. – E além disso – falei –, a gente podia tomar emprestado alguma coisa de valor do camarote do capitão. Charutos, tenho certeza, e eles custam cinco centavos cada um, dinheiro vivo. Os capitães dos barcos a vapor são sempre ricos, ganham sessenta dólares por mês, e eles não dão a menor bola pra quanto custa uma coisa, sabe, quando querem ela. Enfia uma vela no teu bolso, não vou descansar, Jim, até a gente fazer uma revista minuciosa no barco. Ocê acha que Tom Sawyer ia deixar uma coisa dessas passar? Por nada deste mundo, não deixava. Ele ia chamar essa revista do barco uma aventura, é o nome que ele ia dar pra coisa, e ele ia abordar esse barco destruído nem que fosse a última coisa a fazer na vida. E não ia fazer tudo com classe? Não ia se superar, e tudo mais? Ora, ocê ia pensar que ele era Cristóvão Colombo descobrindo o Outro-Mundo. Queria que Tom Sawyer tivesse aqui.
Jim ele resmungou um pouco, mas concordou. Disse que a gente não devia falar mais do que o necessário e devia falar muito baixinho. O raio nos mostrou os destroços de novo, bem a tempo, e a gente alcançou a grua de estibordo e se amarrou ali.
O convés tava bem pra fora naquele lugar. A gente desceu sorrateiros o declive até o lado esquerdo do barco, no escuro, na direção do tombadilho, abrindo lentamente o caminho com os pés e espraiando bem as mãos pra afastar os cabos, pois tava tão escuro que não dava para ver nem sinal deles. Logo a gente deu com a ponta dianteira da claraboia e subiu pra cima dela; e o próximo passo nos deixou na frente da porta do capitão, que tava aberta, e Santo Deus, lá longe no corredor do tombadilho a gente vê uma luz e, tudo no mesmo segundo, teve a impressão de escutar vozes vindo de lá!
Jim sussurrou e disse que tava se sentindo muito mal, e me mandou voltar junto com ele. Eu disse, tudo bem, e tava começando a ir pra balsa, mas bem nesse momento escutei uma voz choramingando dizer:
Oh, por favor, rapazes, juro que não vou contar!
Outra voz disse bem alto:
Tá mentindo, Jim Turner. Ocê já fez isto antes. Sempre querendo mais que sua parte no butim, e sempre conseguindo, porque ocê jurava que sem essa parte ia contar tudo. Mas desta vez ocê falou demais. Ocê é o patife mais perverso e mais traiçoeiro desse país.
A esta altura Jim já tinha sumido na direção da balsa. Eu tava fervendo de curiosidade e falei pra mim mesmo, Tom Sawyer não ia recuar agora, e eu também não, vou ver o que tá acontecendo aqui. Então caí sobre as mãos e os joelhos, na pequena passagem, e me arrastei pra trás no escuro, até que não tinha mais que um camarote entre eu e o corredor transversal do tombadilho. Ali dentro vejo um homem estirado no chão, de mãos e pés atados, e dois homens de pé acima dele, e um deles tinha uma lanterna fraca na mão, e o outro tinha uma pistola. Este apontava a pistola pra cabeça do homem no chão e dizia:
Ah, como eu queria! E devia, também, um reles canalha! O homem no chão tentava levantar se contorcendo e dizia:
Oh, por favor não, Bill, não vou contar.
E toda vez que ele falava isso, o homem com a lanterna ria e dizia:
Claro que não vai! Ocê nunca falou coisa mais certa. – E uma vez ele disse: – Escuta ele implorar! Mas se a gente não tivesse dominado e amarrado o patife, ele tinha nos matado, nós dois. E pra quê? Pra nada. Só porque a gente defendeu os nossos direitos... só por isso. Mas aposto que ocê num vai ameaçar mais ninguém, Jim Turner. Guarda esta pistola, Bill.
Bill diz:
Não quero, Jake Packard. Tô a fim de matar ele... e ele não matou o velho Hatfield do mesmo jeito... e não merece?
Mas não quero ele morto e tenho as minhas razões pra isso.
Deus te abençoe por essas palavras, Jake Packard! Num vou esquecer nunca em toda a minha vida! – diz o homem no chão, meio choramingando.
Packard não prestou atenção, mas pendurou a lanterna num prego e partiu pra onde eu tava, ali no escuro, e fez sinal pra Bill vir junto. Recuei o mais rápido que pude, uns dois metros, mas o barco se inclinou tanto que não consegui ser muito ligeiro; então, pra evitar ser atropelado e pego, entrei rastejando num camarote no lado de cima. O homem veio tateando no escuro e, quando Packard chegou no meu camarote, ele disse:
Aqui... entra aqui.
Ele entrou, e Bill atrás dele. Mas antes de entrarem, eu já tava no beliche de cima, encurralado, lamentando que eu tinha decidido ir. Então eles ficaram ali, com as mãos na saliência do beliche, conversando. Eu não podia ver eles, mas sabia onde tavam, pelo uísque que tinham tomado. Tava contente que eu não tomava uísque, mas não ia fazer muita diferença de qualquer maneira, porque eles não podiam me pegar – eu nem tava respirando. Tava assustado demais. Além disso, ninguém podia respirar ouvindo aquela conversa. Eles falavam baixo e sério. Bill queria matar Turner. Ele disse:
Ele falou que vai contar, e vai mesmo. Mesmo se a gente entregar pra ele as nossas duas partes agora, isso não ia fazer a menor diferença depois da briga e da surra que a gente deu nele. Tão certo quanto você ter nascido, ele vai dar com a língua nos dentes. Agora escuta. Sou a favor de pôr um fim nos problemas dele.
Eu também – disse Packard muito quieto.
Raios, eu tinha começado a pensar que ocê não tava a fim. Vamos lá acabar com isso.
Espera um minuto, ainda não disse tudo o que tenho pra dizer. Escuta. Matar com um tiro é bom, mas tem maneiras mais silenciosas, se a coisa tem que ser feita. O que eu acho é o seguinte: não adianta ficar flertando com a forca se a gente pode conseguir o que quer de um jeito tão bom quanto e, ao mesmo tempo, sem grande risco. Não acha?
Mas como é que ocê vai fazer dessa vez?
A minha ideia é a seguinte: vamos nos mexer e pegar tudo que a gente deixou de roubar nos camarotes, e tocar pra praia e esconder o butim. Aí a gente espera. Ora, eu digo que não vai levar mais que duas horas pra esse vapor naufragado se quebrar todo e ser carregado pelo rio. Entende? Ele vai se afogar, e não vai ter ninguém pra culpar, só ele mesmo. Acho que é muito melhor que matar ele. Sou contra matar um homem quando posso dar outro jeito. Não faz sentido, não é boa moral. Não tenho razão?
Sim... acho que sim. Mas e se o navio não quebrar e não for carregado pelo rio?
Bem, podemos esperar duas horas pelo menos e ver o que acontece, não?
Tudo bem então, vamos. Assim eles partiram, e eu escapei, suando frio, e segui em frente engatinhando. Tava escuro como breu ali, mas eu disse, sussurrando meio rouco:
Jim!
E ele respondeu, bem perto de mim, com um meio gemido, e eu disse:
Rápido, Jim, a gente não tem tempo pra perder e gemer. Tem um bando de assassinos aqui, e se a gente não procurar o bote deles pra soltar à deriva pelo rio, porque assim esses sujeitos não vão poder abandonar os destroços do vapor, tem um deles que vai ficar numa sinuca de bico. Mas se a gente encontrar o bote, a gente pode colocar todos eles numa sinuca de bico... porque o xerife vai pegar eles. Ligeiro... te apressa! Vou procurar no lado esquerdo, ocê procura a estibordo. Ocê parte com a balsa, e...
Oh! Meu sinhozinho, sinhozinho! Balsa? Num tem mais balsa, ela quebrô, se soltô e sumiu! E aqui tamo nóis!
Mark Twain, in As aventuras de Huckleberry Finn

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